Debate do futuro será entre muçulmanos mais tradicionais e mais liberais para definir linha dos governos após a Primavera Árabe
Residentes se reúnem para celebrar fim do Ramadã (mês sagrado dos muçulmanos) em Trípoli, Líbia, em 31 de agosto de 2011 |
No Egito, um impulso semelhante começou a dividir a Irmandade Muçulmana conforme um número crescente de políticos e partidos defende um modelo inspirado pela Turquia, onde um partido político com raízes no Islã tem prosperado num sistema antes secular. Alguns alegam que a monarquia absoluta da puritana Arábia Saudita, na verdade viola a lei islâmica.
Uma reação se seguiu desse movimento dos tradicionalistas de flertar com conceitos islâmicos mais antigos como a imposição de serviços bancários sem juros e impostos religiosos obrigatórios e a censura do discurso não religioso.
Os debates são tão profundos que muitas pessoas na região acreditam que as disputas mais importantes já não irão ocorrer entre islâmicos e seculares, mas sim entre os próprios muçulmanos, colocando os mais puritanos contra os mais liberais.
"Essa é a luta do futuro", disse Azzam Tamimi, um estudioso e autor de uma biografia de um tunisiano islâmico, Rachid Ghannouchi, cujo partido Ennahda deve dominar as eleições do próximo mês para a escolha de uma assembleia que irá elaborar uma Constituição. "A verdadeira luta do futuro será sobre quem é capaz de cumprir os desejos de um público devoto. Vai ser sobre quem é islâmico e quem é mais islâmico, mais do que sobre seculares contra islâmicos”.
O momento é tão dramático quanto qualquer outro nas últimas décadas no mundo árabe, conforme autocracias desmoronam e, de repente, partidos começam a construir uma nova ordem, começando com as eleições na Tunísia, em outubro, depois o Egito, em novembro. Embora a região tenha testemunhado exemplos de empreendimentos islâmicos na política, as eleições no Egito e na Tunísia, as tentativas na Líbia de construção de um Estado quase do zero e a formação de uma alternativa à ditadura na Síria são a sua entrada mais forte no ainda embrionário corpo político da região.
"É um ponto de virada", disse Emad Shahin, um estudioso de lei islâmica e política na Universidade de Notre Dame que estava no Cairo.
No centro dos debates está um novo tipo de político que nasceu em um meio islâmico, mas aceita um Estado essencialmente secular, uma persona que alguns estudiosos já passaram a identificar como "pós-islamita".
Entre eles estão, primeiramente, o Partido de Justiça e do Desenvolvimento do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan na Turquia, cujos intelectuais falam de uma experiência compartilhada e uma herança comum com alguns dos membros mais jovens da Irmandade Muçulmana no Egito e com o Partido Ennahda na Tunísia. Como a Turquia, a Tunísia enfrentou décadas de uma laicidade forçada pelo Estado que nunca totalmente se reconciliou com uma população conservadora.
"Eles se sentem em casa um com o outro", disse Cengiz Çandar, um colunista turco de língua árabe. "Eles adotam termos semelhantes de referência, e conseguem se comunicar facilmente."
Ghannouchi, o islamista tunisino, sugeriu uma ambição comum, propondo o que alguns dizem que partido de Erdogan conseguiu alcançar: um Estado muçulmano próspero e democrático, liderado por um partido que é profundamente religioso, mas opera dentro de um sistema que deve proteger as liberdades individuais. Essa é a ideia, pelo menos – os críticos de Erdogan o acusam de um amplo autoritarismo.
"Se o espectro islâmico vai de Bin Laden a Erdogan, qual deles é o Islã?", Ghannouchi perguntou em um debate recente com um crítico secular. "Por que nos colocamos no mesmo lugar com um modelo que está longe de nosso pensamento, como o Taleban ou o modelo da Arábia Saudita, enquanto há outros modelos islâmicos bem sucedidos perto de nós, como o turco, o malaio e os modelos da Indonésia, que são modelos que combinam o Islã e a modernidade?"
A noção de um mundo árabe pós-islamismo não se limita à Tunísia. Na Líbia, Ali Sallabi, o mais importante líder político islâmico, cita Ghannouchi como uma grande influência. Abdel Moneim Abou el-Fotouh, ex-líder da Irmandade Muçulmana que está concorrendo à presidência no Egito, se juntou a vários novos partidos políticos separatistas na argumentação de que o Estado deve evitar interpretar ou aplicar a lei islâmica que regula os impostos religiosos ou restrição de uma pessoa de concorrer à presidência com base no sexo ou na religião.
Manifestantes rezam em um letreiro em desuso durante protesto pela renúncia do presidente do Iêmen, Ali Abdullah Saleh, em Sanaa (30/9) |
O Partido do Centro egipcio, um grupo que lutou durante 16 anos para conseguir uma licença do governo deposto, pode ir mais longe na elaboração da noção pós-islamita. Seu fundador, Abul-Ela Madi, há muito é procurado para mediar as forças religiosas e liberais, e chegou a criar um conjunto de princípios comuns no mês passado. Como o Partido Ennahda na Tunísia, ele também nega o termo "islamita", e como outros ativistas islâmicos progressivos, descreve seu grupo como equivalente mais próximo do partido de Erdogan.
"Nós somos seculares, tampouco islamita", disse ele. "Estamos no meio". Muitas vezes, se ouve na Turquia que o sistema político do país, até pouco tempo atrás dominado pelos militares, modera as correntes islâmicas no país. Lotfy disse que espera que os islâmicos do Egito passem por uma semelhante evolução impulsionada pelas eleições, embora os próprios ativistas tenham advertido contra uma comparação. "Eles foram para as ruas e aprenderam que o público não estava apenas preocupado com o hijab" – o véu – "mas também com a corrupção", disse ele. "Se todas as mulheres na Turquia usassem o hijab, esse não seria um grande país. É preciso desenvolvimento econômico."
Em comparação com a situação na Turquia, as apostas dos debates podem ser ainda mais altas no mundo árabe, onde grupos fracos e divididos são pequenos diante da organização e da popularidade de ativistas islâmicos.
Na Síria, os debates ainda geram raiva entre os ativistas sobre a possibilidade de um estado civil ou islâmico que siga a ditadura de Bashar al-Assad, caso ele seja derrubado do poder. O surgimento de salafistas, grupo mais inflexível no Islã político, no Egito, Tunísia e Síria, é um dos desenvolvimentos políticos mais notáveis nessas sociedades. ("O Corão é a nossa Constituição", eles dizem.)
E o grupo mais poderoso no Egito, a Irmandade Muçulmana, tem resistido teimosamente a algumas das mudanças no discurso. Quando Erdogan expressou a esperança de "um Estado secular no Egito", que significa um Estado equidistante de todas as crenças, os líderes da Irmandade imediatamente atacaram, dizendo que a Turquia de Erdogan não ofereceu nenhum modelo para o Egito ou para os seus islamitas.
Um porta-voz da Irmandade, Mahmoud Ghozlan, acusou a Turquia de violar a lei islâmica ao não criminalizar o adultério. "No sistema secular, isto é aceito, e as leis protegem o adúltero", disse ele, "mas na lei Sharia isso é um crime."
Tão recentemente quanto 2007, uma plataforma proposta pela Irmandade buscava proibir mulheres ou cristãos de buscar a presidência do Egito, e apelou para um painel de estudiosos da religião para se pronunciarem sobre o cumprimento de qualquer legislação com a lei islâmica. O grupo nunca repudiou o documento. Sua retórica de tolerância do Islã pelas minorias, muitas vezes soa condescendente com a minoria cristã do Egito, que quer cidadania igualitária e não proteções especiais. O novo partido da Irmandade pediu uma sobretaxa especial sobre os muçulmanos para impor a caridade.
De fato, Tamimi argumentou que alguns grupos tradicionais, como a Irmandade, estão sentindo a pressão de círculos eleitorais cada vez mais assertivos e conservadores, que ainda pedem implacavelmente pela censura e procedimentos bancários sem juros.
"A democracia é a voz da maioria?", perguntou Mohammed Nadi, um estudante de 26 anos de idade, em um protesto salafista no Cairo. "Nós, como islâmicos somos a maioria. Por que eles querem impor os pontos de vista das minorias – dos liberais e dos secularistas? Isso é tudo o que eu quero saber."
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