Às 10h da manhã de quarta-feira passada (5), a Otan e a Moncloa informaram simultaneamente sobre uma viagem imprevista do presidente do governo a Bruxelas naquele mesmo dia. Só se antecipou, criticamente, que Zapatero anunciaria, junto ao secretário geral da Aliança do Atlântico, Anders Fogh Rasmussen, e o novo chefe do Pentágono, Leon Panetta, um acordo sobre desenvolvimento de capacidades de defesa da Aliança. Poucos minutos depois, a edição digital do “El País” revelou que a Espanha havia oferecido a base de Rota (Cádiz) como sede do componente naval do escudo antimísseis da Otan. Em termos práticos, isso significa o emprego de quatro navios de guerra dotados com o sistema de combate Aegis e de 1.200 militares, bem como 100 civis. Em resumo, a Espanha deixará de ser um ponto de apoio logístico e de trânsito para as tropas norte-americanas no Iraque ou Afeganistão, e passará a abrigar uma das unidades mais potentes e tecnologicamente avançadas da Marinha.
O anúncio foi recebido com espanto generalizado. Por que um presidente que inaugurou seu mandato retirando as tropas do Iraque decidiu o maior aumento da presença militar norte-americana em solo espanhol nas últimas décadas, a apenas um mês e meio das eleições gerais? E, além disso, com tanta urgência. Dois dias depois, na sexta-feira passada (7), o Conselho de Ministros deu sinal verde para o envio dos quatro navios, ao mesmo tempo que pediu aos departamentos de Defesa e Assuntos Exteriores a negociação, através do Comitê Conjunto Hispano-Americano, de um acordo que fixe as condições do mesmo.
Embora o governo tenha mantido um silêncio absoluto até o último minuto, as negociações já haviam se iniciado nove meses antes. Em janeiro, por conta da visita do secretário a Washington do geral de Política de Defesa, Luis Cuesta, à frente de uma delegação de alto nível. O Pentágono sondou pela primeira vez a instalação, na Espanha, de componentes essenciais do escudo antimísseis; ou seja, do sistema de sensores e interceptores dirigido para neutralizar a ameaça da proliferação de mísseis balísticos num número cada vez maior de países e, em particular, em dois cujos regimes se caracterizam por suas ambições nucleares e hostilidade contra o Ocidente: o Irã e a Coreia do Norte.
Em setembro de 2009, o presidente dos EUA, Barack Obama, decidiu por um ponto final ao faraônico programa de defesa antimísseis herdado de seu antecessor, George W. Bush, que por sua vez não era nada além de uma versão descafeinada da Guerra nas Estrelas idealizada nos anos 80 por Ronald Reagan. Ele o fez por um custo exorbitante (mais de 20 milhões de dólares) e também pelos receios que o projeto despertava no Kremlim, com cuja colaboração a Casa Branca esperava contar no Afeganistão ou Irã.
Mas esta decisão, apesar da irritação que provocou em países do leste da Europa que ainda veem Moscou como uma ameaça, não supunha que os EUA e a Otan renunciassem erguer um escudo antimísseis, mesmo que modesto: já não se tratava de derrubar em voo mísseis intercontinentais que só existem nos arsenais das grandes potências, mas sim neutralizar mísseis de curto e médio alcance em mãos de um crescente número de países. Para isso não seria necessário recorrer a projetos ainda em desenvolvimento e de resultado incerto, mas sim aproveitar tecnologias suficientemente testadas: radares AN TPY-2 e mísseis Standard SM-3. A cúpula da Otan, realizada em novembro de 2010 em Lisboa, aprovou o novo Conceito Estratégico, que incluía como um dos eixos centrais da defesa aliada “o desenvolvimento da capacidade de defender nossas populações e territórios frente a ataques com mísseis balísticos”. Em junho passado, os ministros da Defesa da Otan aprovaram o Plano de Ação de Defesa Antimísseis, que deve começar a operar em 2018. Trata-se de passar do programa de defesa que a Aliança desenvolve desde 2001 para proteger bases e tropas sobre o território, para outro que sirva de guarda-chuva para os 28 (os países da Otan).
Por isso, o secretário geral de Política de Defesa não se surpreendeu com o pedido que escutou no Pentágono. Os Estados Unidos haviam escolhido do lugar do componente terrestre do escudo: radares na Turquia e interceptores na Romênia e Polônia. Faltava determinar o porto de base para os navios, equipados com o sistema de combate Aegis (escudo protetor, na mitologia grega) e também com mísseis SM-3, como os que foram instalados em terra.
O Pentágono, segundo as fontes consultadas, estudou várias localizações na Grécia e Itália. Mas Rota era de longe a mais vantajosa. Não só por causa das instalações, que acabam de ser ampliadas com fundos da Otan, mas sobretudo por sua situação estratégica: na porta de entrada do Mediterrâneo, a meio caminho entre os EUA e o Oriente Próximo, e com fácil acesso para a África. Os especialistas dão por certo que um dos quatro navios (provavelmente de guerra da classe Arleigh Burke) patrulhará permanentemente o Mediterrâneo oriental, outro poderia patrulhar o Mediterrâneo central, um terceiro ficaria em alerta e o último em reparo e manutenção. Realizar a mesma missão desde a costa leste dos Estados Unidos exigiria, no mínimo, dois navios a mais, para cobrir os trânsitos pelo Atlântico.
Quando a negociação ficou madura o bastante, antes do verão, Zapatero informou ao líder do PP, Mariano Rajoy, e obteve o respaldo do primeiro partido da oposição e claro favorito nas pesquisas para as próximas eleições gerais. Esta garantia foi decisiva, segundo fontes diplomáticas, para que os EUA preferissem Rota e descartassem outras opções.
A negociação poderia ter se prolongado ainda mais se Washington não tivesse pressionado Madri para obter o quanto antes uma resposta. A votação do orçamento do governo Obama de 2012 deve acontecer em novembro; e a parte destinada a preparar a base para a chegada dos primeiros navios, em outubro de 2013, não poderia ser incluída nele sem que a Espanha dissesse sim.
Embora o governo tenha defendido publicamente que não é necessário modificar o convênio com os EUA, vigente desde 1988, a nota divulgada pelo Conselho de Ministros da sexta-feira é deliberadamente ambígua: refere-se à “adequação do convênio a esta nova forma de cooperação [o escudo antimísseis]” e acrescenta que o resultado das negociações “será informado aos Tribunais Gerais no momento e da maneira apropriados”.
A questão não é insignificante, pois o convênio com os EUA tem para a Espanha status de tratado internacional e qualquer modificação do mesmo deve ser aprovada pelos Tribunais, atualmente dissolvidos, como foram as emendas pactuadas pelo governo de José María Aznar com o governo Bush em 2002.
Fontes da Defesa assinalam que o conteúdo do acordo que for firmado com os EUA determinará se o mesmo pode ser objeto de um mero documento de caráter administrativo – como o que proibiu as operações de reabastecimento em voo sobre solo espanhol em janeiro passado – ou de um anexo, que como tal será incorporado ao convênio e que exigirá aprovação parlamentar.
A Defesa sustenta que os efetivos reais dos EUA na Espanha representam apenas 30% dos previstos no convênio – 4.750 em caráter permanente e 2.285 temporários -, e assim poderiam incorporar a Rota os 1.200 militares que participarão no componente naval do escudo antimísseis sem ultrapassar os limites máximos. O certo, entretanto, é que o convênio – que consta de 69 artigos, oito anexos e dez cartas ou notas verbais – é tão detalhado e exaustivo – regula desde o fornecimento de combustíveis até as relações trabalhistas, passando pelos serviços médicos – que dificilmente pode-se entender que uma mudança tão substancial como o emprego permanente de quatro navios antimísseis ficasse fora do mesmo.
Em todo caso, o governo que for eleito nas próximas eleições ficará encarregado de concluir a negociação e informar os novos Tribunais. Está quase certo que não será possível fechar um acordo antes do Natal, quando está prevista a transferência de poderes.
Desde o primeiro anúncio, Zapatero insistiu no “impacto econômico muito positivo” que esta decisão terá sobre a deprimida baía de Cádiz. O presidente falou de mil postos de trabalho direitos e indiretos – embora o terceiro vice-presidente, Manuel Chavez, esclareceu que serão 60 empregos fixos e 100 temporários, além de 722 indiretos – e de um benefício estimado em 51 milhões de euros anuais. Washington se comprometeu em realizar a manutenção e o reparo dos quatro navios de guerra nos estaleiros de San Feranando, por 8,4 milhões de euros anuais. Além disso, ainda se deve somar o consumo gerado pelos 3.400 cidadãos norte-americanos – entre militares e suas famílias – que morarão nas imediações da base.
O próprio ministro francês da Defesa, Gerard Longuet, classificou o envio dos navios de guerra a Rota como um “gesto” dos EUA em prol da economia espanhola. Mas, como recorda o general Miguel Ángel Ballesteros, diretor do Instituto Espanhol de Estudos Estratégicos, o alcance da decisão “não pode ser medido pelos postos de trabalho que ela gere, por mais importantes que eles sejam”, mas sim, sobretudo, porque “é uma aposta política clara que transformará a Espanha num aliado leal e confiável para a Otan e para os EUA”.
Mas ganhar amigos costuma gerar inimigos na mesma medida. E o Ministério de Assuntos Exteriores russo respondeu ao anúncio de Zapatero com um comunicado duro no qual classificou como “inaceitável” que os EUA pratiquem a política de fatos consumados e adotem decisões “capazes de influenciar a estabilidade e segurança euro-atlântica sem levar em conta a opinião de todos os países interessados”. Temerosa de que a decisão possa desencadear uma crise com a Rússia, a diplomacia espanhola se mobilizou para informar os representantes russos antes que o acordo fosse levado a público e tentou convencê-la, sem muito sucesso, de que a participação de Rota no escudo antimísseis “não vai de encontro a segurança da Rússia”, nem prejudica seu poder de dissuasão. Em 5 de dezembro, se não for suspensa na última hora, está prevista uma visita do presidente russo, Dmitri Medvedev, a Madri. E é quase certo que ele aproveitará para expor suas queixas.
O almirante Ángel Tafalla, ex-segundo chefe do Comando Naval da Otan no Mediterrâneo, assegura que não há motivo para que Moscou se inquiete, já que os interceptores não têm capacidade para alcançar os mísseis estratégicos; “exceto se o estado de suas forças convencionais for tão deficiente que confie sua segurança às armas nucleares. E cogite usá-las”.
Além da contribuição dos EUA – prova de que Washington compreende a política do Velho Continente – o programa de defesa antimísseis contará com contribuições de outros aliados como Holanda, que modernizará quatro navios de defesa antiaérea para integrá-los no dispositivo da Otan.
Em tese, a Armada espanhola é melhor preparada para participar no escudo antimísseis, já que conta com fragatas F-100 equipadas com sistema de combate Aegis, o mesmo usado nos navios dos EUA destinados para esta função. Entretanto, nem os EUA nem a Otan pediram à Espanha que contribua com as F-100, segundo fontes consultadas. E tampouco a Espanha as ofereceu. O primeiro motivo é que a Armada só conta com cinco fragatas desse tipo – uma delas em construção – e cedê-las para o escudo antimísseis significaria não poder usá-las. Além disso, a transformação das fragatas antiaéreas F-100 em navios antimísseis exigiria, segundo os especialistas, uma adaptação custosa: modificar o software do radar, mudar o lançador e, sobretudo, substituir os mísseis SM-2 por SM-3, que são muito mais caros. Esses custos seriam inviáveis sem financiamento da Otan.
Em junho passado, o Conselho de Ministros aprovou a Estratégia Espanhola de Segurança, coordenada por Javier Solana, na qual se assegurou que “a participação da Espanha no programa de Defesa Antimísseis da Otan constitui uma medida adequada de respaldo aos esforços realizados contra a proliferação de mísseis balísticos […]. A Espanha participará na configuração do programa mencionado […] e colherá seus benefícios”. O parágrafo era ambíguo o bastante para que se pudesse interpretar que a Espanha entraria com as F-100 ou acolheria os navios dos EUA. Em todo caso, a participação no escudo antimísseis não é a única função que terão os quatro navios de guerra norte-americanos baseados em Rota. Isso foi deixado claro em Bruxelas pelo chefe do Pentágono, que disse que também participarão em grupos permanentes marítimos da Otan, em exercícios navais, visitas a portos e outras atividades de cooperação. Leon Panetta também acrescentou que poderão prestar “um apoio de resposta rápida” aos comandos militares norte-americanos Africom (que cobrem a maior parte da África) e Cetcom (que abarca 22 países, desde o Chifre da África ao Paquistão). Ou seja, os navios farão qualquer tipo de missão, tanto da Otan como exclusivamente norte-americana. Por isso, segundo o secretário geral de Política de Defesa da Espanha, o acordo que for negociado agora com os EUA deverá detalhar, além dos apoios em território espanhol, as missões que podem cumprir. “E estas deverão se ajustar sempre à legalidade internacional”, lembra Cuesta. O convênio com os EUA permite ao governo espanhol negar o uso de seu território ou de seu espaço aéreo para missões que sejam contrárias à política exterior espanhola. Assim aconteceu com o bombardeio de Trípoli (Líbia) ordenado em 1986 por Reagan. A diferença é que até agora nenhum navio da Marinha tinha base permanente na Espanha. A instalação do componente naval do escudo antimísseis em Rota aumenta seu peso na Otan e, por isso, sua condição de alvo potencial de grupos terroristas. O general Ballesteros sustenta, entretanto, que isso não supõe uma mudança substancial, pois “os Estados Unidos são um alvo permanente do terrorismo internacional, e a Espanha também”. Embora nem sempre se lembre disso.
Porta do Mediterrâneo, varanda para a África
A base de Rota está localizada em frente a Cádiz, na entrada do estreito de Gibraltar. Tem uma extensão de 23 mil hectares e um perímetro de 26 quilômetros. O porto, recém ampliado, tem capacidade para 24 navios. Em sua pista aconteceram 45 mil movimento aéreos no ano passado. O convênio autoriza um máximo de 4.250 militares e mil civis norte-americanos. Também pode ter 18 aviões de patrulha marítima, 13 de reconhecimento e 18 de patrulha dos EUA. Abriga o Quartel General da Frota espanhola e os maiores navios (porta-aviões, fragatas etc.).
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