Rebeldes pousam para foto ao lado do cadáver de Khaddafi |
Muammar Gaddafi, o ditador errático e provocador que governou a Líbia por 42 anos, esmagando rivais potenciais em casa ao mesmo tempo em que cultivava um guarda-roupa e um visual que lembrava o de um velho astro do rock, morreu na quinta-feira (20), quando sua última fortaleza caiu para as forças líbias que o derrubaram do poder, disseram autoridades do governo de transição líbio.
Por todo seu governo, Gaddafi, 69 anos, sancionou ondas de violência medonha e caos frequente, ao mesmo tempo em que buscava transformar a imensa riqueza de petróleo de seu país em um papel pessoal descomunal.
Ele abraçou uma série de títulos ao longo dos anos: “líder irmão”, “guia para a era das massas”, “rei dos reis da África” e – o seu preferido – “líder da revolução”.
Mas os rótulos impostos a ele por outros eram os que costumavam ficar. O ex-presidente Ronald Reagan o chamava de “cachorro louco do Oriente Médio”. O ex-presidente do vizinho Egito, Anwar Sadat, o declarou “o líbio maluco”.
Mesmo enquanto seu domínio sobre a Líbia ruía com velocidade surpreendente, ele se recusava a aceitar o fato de que a maioria dos líbios o desprezava. Ele atribuiu o levante à intervenção estrangeira – uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, que visava defender os civis, se transformou na base contenciosa para ataques aéreos da Otan contra suas tropas.
“Eu digo aos cruzados covardes: eu vivo em um lugar onde vocês não podem me pegar”, ele provocou em um de seus muitos pronunciamentos desafiadores, após o início do levante contra seu governo em fevereiro. “Eu moro nos corações de milhões.”
Gaddafi era um oficial subalterno de 27 anos quando liderou o golpe sem derramamento de sangue que depôs o monarca da Líbia em 1969. Logo depois, ele adotou o estilo de filósofo nômade do deserto, publicando de 1976 a 1979 os três volumes de seu “Livro Verde”, que oferecia sua “terceira teoria universal” para melhorar o capitalismo e o socialismo. Ele recebia os dignitários em sua ampla tenda branca, que erguia onde quer que fosse: Roma, Paris e, após muita controvérsia, Nova York em 2009.
Dentro, suas paredes acolchoadas apresentavam estampas de motivos tradicionais, como palmeiras e camelos, ou bordados com seus próprios dizeres.
Gaddafi declarou que seu sistema político de revolução permanente varreria o capitalismo e o socialismo. Mas ele garantiu suas apostas ao financiar e armar uma cornucópia de organizações violentas, incluindo o Exército Republicano Irlandês e os grupos guerrilheiros africanos, e se tornou um pária internacional depois que seu governo foi associado a ataques terroristas mortais, particularmente o atentado a bomba contra um jato da Pan Am sobre Lockerbie, Escócia, em 1988, que matou 270 pessoas.
Depois da invasão liderada pelos Estados Unidos ao Iraque, Gaddafi anunciou que a Líbia estava abandonando seus esforços para obter armas não convencionais, incluindo um nascente programa nuclear secreto, dando início a uma nova era de relações com o Ocidente. Mas, na Líbia, ele governava por meio de um círculo cada vez menor de conselheiros, incluindo seus filhos, e continuava destruindo qualquer instituição que pudesse desafiá-lo.
No final, a Líbia não tinha um Parlamento, um comando militar unificado, partidos políticos, sindicatos, sociedade civil e nem mesmo organizações não governamentais. Seus ministérios eram vazios, com a notável exceção da companhia estatal de petróleo. Gaddafi sobreviveu a inúmeras tentativas de golpe e assassinato, seguidas por duras repressões, alienando tribos líbias importantes. Ele importava soldados de suas aventuras malsucedidas em lugares como o Sudão, Chade e Libéria, transformando as milícias desorganizadas da Líbia no que chamou de sua legião africana ou islâmica.
“A habilidade de Gaddafi em sobreviver por tanto tempo se deve à sua posição conveniente de não se comprometer com uma única ideologia e pelo uso da violência de modo teatral”, disse Hisham Matar, autor de “In the Country of Men”, um romance que descreve a devastação da vida normal sob Gaddafi. “Ele tentou deliberadamente criar uma campanha que aterrorizaria a população, que a traumatizaria tanto que nunca mais pensaria em expressar seu pensamento política ou socialmente.”
Segundo todos os relatos, Gaddafi nasceu de pais beduínos analfabetos em uma tenda, perto da cidade costeira de Sirte, em 1942. (Algumas fontes dão a data como sendo 7 de junho.) Seu pai tinha um rebanho de camelos e ovelhas.
Seus pais se esforçaram para que ele tivesse educação, primeiro com um clérigo local e depois em um colégio. Lá ele passou a idolatrar o presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser, que pregava a união árabe e o socialismo, após depor o rei em um golpe em 1952. Ele demonstrou ser promissor o suficiente para entrar na Academia Militar Real em Benghazi, no leste da Líbia, e em 1966 foi enviado para a Inglaterra para um curso de comunicações militares. Ele aprendeu inglês.
Em 1º de setembro de 1969, ele liderou um grupo de jovens oficiais – muitos, como ele, do corpo de comunicações – na tomada do governo em apenas poucas horas, enquanto o rei Idris estava no exterior. Eles dissolveram o Parlamento e estabeleceram um Conselho do Comando Revolucionário com 12 membros para governar a Líbia, tendo como exemplo o Egito de Nasser. Ele foi promovido a coronel e comandante das forças armadas. O Egito era o modelo para Gaddafi e ele proclamou que a recém-batizada República Árabe Líbia avançaria segundo o slogan nacionalista árabe, “socialismo, unidade e liberdade”.
Mas em um país onde o rei deposto, Idris, vinha de uma longa linhagem de figuras religiosas (eles chefiavam a ordem sanusi do islamismo sufista), Gaddafi se sentiu compelido a reforçar suas credenciais islâmicas. Ele proibiu o álcool e fechou os bares, boates e cassinos. Ele proibiu o ensino do inglês nas escolas públicas. As placas de trânsito e propagandas que não eram em árabe foram cobertas com tinta.
Décadas depois, apenas uma boate funcionava em toda Trípoli, em um prédio sem placa coberto de slogans revolucionários e exibindo a imagem obrigatória do líder, que parecia observar de todas as paredes na Líbia.
A Líbia era desesperadamente pobre até a descoberta do petróleo em 1959. Uma década depois, os líbios mal tinham tocado em sua riqueza.
O golpe de 1969 mudou isso. O novo governo líbio forçou as grandes companhias de petróleo a ceder o controle em troca da continuidade de acesso aos campos de petróleo do país, e passou a exigir uma maior participação nos lucros. O padrão foi copiado por todos os países produtores de petróleo, mudando profundamente o relacionamento deles com as gigantes do petróleo.
Com o aumento da receita, Gaddafi passou a construir estradas, hospitais, escolas e moradias. E os líbios, que sofreram durante a ocupação italiana antes da Segunda Guerra Mundial, foram autorizados a celebrar um sentimento anticolonial, nacionalista árabe, que era reprimido sob a monarquia, disse o professor Ali Ahmida, um especialista no período colonial que leciona na Universidade da Nova Inglaterra.
A expectativa de vida, que era em média de 51 anos em 1969, atualmente passa de 74. A alfabetização saltou para 88%. A renda anual per capita cresceu acima de US$ 12 mil nos últimos anos, apesar de ser um número acentuadamente mais baixo do que os encontrados em muitos países ricos em petróleo.
Mas o longo esforço de Gaddafi para eliminar o governo deixou a Líbia em pedaços, com sua infraestrutura decadente não condizente com sua riqueza em petróleo. Isso nunca pareceu incomodá-lo.
“Assim que se viu em uma posição autossustentada, o fato de nada melhorar na Líbia passou a ser algo que ele não percebia”, disse Lisa Anderson, a presidente da Universidade Americana no Cairo.
À medida que Gaddafi envelhecia, o oficial atraente, impecável, com cabelo preto curto, deu lugar a alguém mais excêntrico. Brocados e medalhas passaram a encher seus uniformes militares, como se fosse um almirante de Gilbert & Sullivan, enquanto seus cabelos encaracolados passaram se tornar longos e despenteados. Após a adoção da África como sua causa, ele passou a preferir as túnicas africanas repletas de cores.
Após deixar para trás seus piores anos de patrocínio do terrorismo, o Ocidente e o restante do mundo árabe passaram a tratá-lo como uma ópera cômica. Gaddafi dizia que as mulheres não eram iguais aos homens porque eram biologicamente diferentes, mas mesmo assim as exibia como um símbolo do sucesso da revolução líbia. Nenhuma tinha maior destaque do que sua falange de guarda-costas do sexo feminino, que usavam uniformes de camuflagem, esmalte vermelho nas unhas e salto alto, além de carregarem metralhadoras.
Mas apesar do lado excêntrico, Gaddafi via seu governo como uma causa sem fim, sem nunca definir o objetivo. “O Estado da Líbia é um Estado em constante revolução, o que sugere que não há meta”, disse Matar, o escritor. “Tudo era falso; era uma forma de manter todos eles ocupados.”
Quando revoluções tiveram sucesso em dois vizinhos árabes, depondo os presidentes da Tunísia e do Egito, Gaddafi foi um dos poucos líderes na região a falar publicamente. Ele dizia que o povo tinha sido influenciado pelas tramas ocidentais. Ele tentou alertar sua população que os tunisianos agora viviam sob temor de serem mortos em casa ou nas ruas. Mas poucos tunisianos morreram.
Mesmo enquanto líbios morriam, Gaddafi exigia o reconhecimento de que foi ele sozinho quem os tornou relevantes. “No passado, os líbios careciam de identidade”, bradou Gaddafi em um discurso em fevereiro. “Quando você dizia Líbia, eles confundiam Líbia, Libéria e Líbano –eles não conheciam a Líbia! Mas hoje quando vocês dizem Líbia, eles dizem Líbia –Gaddafi, Líbia– a revolução!”
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