sexta-feira, 21 de outubro de 2011
Na Líbia, o fim de um tirano
Era um ditador tanto quanto um bobo da corte, o coronel Muammar Gaddafi foi um dos líderes mundiais mais enigmáticos de nossos tempos. Ele era famoso por sua extrema brutalidade e excentricidade ridícula.
Há ditadores que desafiam as anedotas, levam vidas burocráticas ou nunca revelam a pessoa por trás de sua persona pública impassível. E depois tem Muammar Gaddafi, general nascido beduíno em 1942, ditador tão extravagante que é difícil escolher por onde começar a descrevê-lo.
Talvez seja melhor começar com apenas uma de suas lendárias aparições na televisão – quando ele soltou puns durante toda sua entrevista para a BBC. A flatulência era tão alta e aromática que o repórter John Simpson mais tarde disse que os câmeras ficaram estarrecidos e os assistentes de Gaddafi acenderam um incenso. “O líder revolucionário da Líbia tem um problema digestivo incontrolável?”, indagou o jornal alemão “Bild”, na época.
Até hoje, não está claro se as emissões digestivas foram uma provocação. Tal comportamento ao menos não seria incomum. Certa vez durante a Reunião de Cúpula da Liga Árabe, Gaddafi, diante das câmeras, escolheu entrar no banheiro em vez do salão da reunião, como estivesse dizendo o que pensava sobre o evento. O ex-presidente egípcio Hosni Mubarak foi forçado a puxá-lo para a reunião.
Excêntrico e impiedoso
E depois havia sua inexaurível necessidade de se comunicar. Um de seus mais famosos surtos de expressão ocorreu na forma da sua filosofia política registrada no “Livro Verde”, que praticamente tinha status de constituição em seu país. Nele, ele escreveu, com toda a seriedade: “As mulheres são fêmeas e os homens são machos. De acordo com os ginecologistas, as mulheres menstruam a cada mês aproximadamente, enquanto os homens, sendo machos, não menstruam nem sofrem durante o período menstrual”. Ele termina o parágrafo com a frase: “Fim da declaração ginecológica!” Ele também encomendava seus uniformes em Paris.
A lista poderia continuar: é fácil descrever o excêntrico Gaddafi. Ao mesmo tempo, contudo, seria um engano considerá-lo apenas como um excêntrico. Muammar Gaddafi não era um projeto de arte dadaísta, mesmo que parecesse. Para mais de 6 milhões de líbios, ele era acima de tudo o homem que os subjugou diariamente por mais de quatro décadas.
Na quinta-feira (20), após meses de buscas em todo o país, ele foi finalmente capturado – perto da sua cidade natal de Sirte, recentemente ocupada. O Conselho de Transição Nacional confirmou que ele está morto. Não há mais dúvidas que a transferência de poder na Líbia será permanente, e que os temores de atividades terroristas secretas e mercenários contratados em nome do ditador deposto não existem mais.
Inúmeros líbios desapareceram nas décadas de reino de terror de Gaddafi, sequestrados e provavelmente mortos pelas forças de segurança. Nos “tribunais do povo” da Líbia, os réus não tinham acesso a advogados e eram trancafiados por anos sem verem seus entes queridos. Os julgamentos muitas vezes eram feitos a portas fechadas, sem ninguém ter acesso aos registros dos condenados.
Qualquer um que defendesse direitos humanos se colocava em perigo, algumas vezes até arriscando sua vida. Houve diversas denúncias de tortura, incluindo choques elétricos. O filho de Gaddafi, Saif Al-Islam admitiu as denúncias e prometeu uma investigação. Se alguém na Líbia foi condenado por essas ofensas não se sabe.
Não foram apenas os líbios que sofreram por sua falta de escrúpulos. Cerca de 270 pessoas foram mortas na explosão de um jato da Pan Am sobre Lockerbie, na Escócia, em 1988; foi o maior, mas de forma alguma o único ataque terrorista ordenado pelo déspota, que subiu ao poder com 27 anos de idade, em 1969, após depor o rei Idris em um golpe sangrento. Em 1986, a discoteca La Belle em Berlim foi atacada e houve assassinatos e tentativas de golpe em vários países africanos.
De fenômeno inspirador a déspota censurado
Em certa altura nesta primavera, Gaddafi ameaçou caçar os insurgentes “de casa em casa” e matá-los. Essa ameaça induziu a Organização das Nações Unidas a aprovar a intervenção militar na Líbia em março. Com a ajuda de uma aliança internacional, os rebeldes líbios eventualmente tiveram sucesso em depor o regime de Gaddafi.
Se quiséssemos dividir o governo de Gaddafi em segmentos, poderíamos dizer que ele passou de um fenômeno misterioso para um bruto sanguinário e depois um déspota censurado. Sem dúvida, Gaddafi foi um governante com padrões bizarros que pensava que era a única pessoa com todas as respostas. Mas ao mesmo tempo, ele também foi um fator no cenário político. Quando ele chegou ao poder, os árabes se referiam a Gaddafi como “o pequeno Nasser”, porque, como o grande líder no Cairo, ele queria unir os árabes. O pan-arabismo por muito tempo foi o foco central dele e levaria anos até ele finalmente se desiludir e desistir da ideia de um “Estados Unidos da África”.
Nos anos 70, ele começou a desenvolver as ideias que registrou em seu famoso “Livro Verde”. Ele proclamou uma “terceira teoria universal”, entre o socialismo e o capitalismo; ele chamou a Líbia de “república das massas” e sugeriu que o conflito no Oriente Médio fosse resolvido pela criação de um novo Estado chamado “Isratina” – uma combinação das palavras Israel e Palestina. Ao mesmo tempo, ele financiou grupos que considerava “anti-imperialistas”, mas a maior parte do mundo via como terroristas, incluindo o IRA da Irlanda, grupos palestinos radicais e o movimento anti-apartheid na África do Sul.
Gaddafi também enviou assassinos pelo mundo. Ao fazê-lo, ele permitiu um aumento do conflito entre a Líbia e os EUA. Em resposta ao ataque líbio à La Belle, uma boate em Berlim frequentada por americanos, o presidente Ronald Reagan bombardeou o quartel-general de Gaddafi em 1986, e o líder líbio por pouco não perdeu a vida. O coronel ditador desenvolveu um programa secreto de armas nucleares e fez experimentos com gás venenoso. Consequentemente, o pária por excelência foi proibido de montar sua tenda beduína na maior parte dos países.
Uma virada de último minuto
Então veio a virada. No ano 2000, ele prestou assistência para a libertação de reféns europeus nas Filipinas. Não muito tempo depois dos ataques terroristas de 11 de setembro, ele pagou os danos por Lockerbie e outros crimes. Ele também renunciou aos programas de armas de destruição em massa de Trípoli. Presumivelmente, foi o medo que motivou suas mudanças –medo que seu nome pudesse vir logo depois de Saddam Hussein na lista de prioridades da guerra ao terror norte-americana.
Na época, a comunidade internacional tomou medidas para ressocializar Gaddafi: laços empresariais foram restabelecidos, e os EUA ficaram satisfeitos com as informações que o serviço secreto líbio forneceu sobre terroristas islâmicos. Na Alemanha também, o chanceler Gerhard Schröder, como outros líderes ocidentais, logo se viu visitando a tenda beduína de Gaddafi.
Ainda assim, as irritações persistiram no que tange as relações externas. Em 2009, Gaddafi discursou na Assembleia Geral da ONU e reprovou o Conselho de Segurança, dizendo que deveria ser chamado de “conselho do terror”. E em 2010, ele declarou “jihad” contra a Suíça. Dentro da Líbia, é claro, nada mudou. Sua virada, afinal, se aplicava apenas à política externa. Os brutamontes de Gaddafi continuavam a torturar e matar aos milhares.
Assim, o “coronel” (ninguém tinha permissão de ter uma patente mais alta) provavelmente teria continuado em seu governo sem ser coibido pelo Ocidente até sua morte por velhice. A maré só virou contra o ditador narcisista quando, inspirada pelos eventos na Tunísia e no Egito, a oposição Líbia se ergueu contra ele. O ditador lutou amargamente por meio ano, inventando teorias absurdas em meio à luta defensiva, tal como a alegação absurda que os insurgentes estavam sob a influência de drogas espalhadas pela Al Qaeda. Não adiantou: eventualmente, os rebeldes tomaram Trípoli, onde não o encontraram inicialmente – e o mataram semanas mais tarde.
O que restará do legado de Gaddafi? Ele deixa um país que poderia ser rico, mas não é. As instituições que montou não têm estabilidade interna; tudo era orientado em torno dele e de sua ideologia bruta. Os líbios o derrotaram – esta é uma oportunidade e um risco ao mesmo tempo. A liberdade chegou. Agora precisa ser moldada.
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O Kadhafi foi assassinado justamente porque não aceitou bancar pagar para que a Europa e os EUA continuem a gozar, queria uma moeda unica para a Africa, estava se preparando para não receber mais dolares em pagamento pelo petróleo da Libia. Como o povo Libio estava se desenvolvendo com 98% de alfabetizados, e com uma rede de saúde e educacional gratuita isso desagrada aos chamados senhores do mundo que querem ver a humanidade na escuridão, para que eles possam continuar roubar. O unico erro de Kadhafi foi aceitar se sentar a mesa com os seus verdadeiros assassinos e abrir mão de armas para defender a Libia. Não puderam chamar ele de corrupto, chamam de excentrico. É isso ai. O mundo gira e espero estar vivo para ver aqueles fazem a guerra pagarem por seus assassinatos e sofrerem em dobro tudo o que causam a humanidade. Haja injustiça, mas a justiça se fará acreditem, pois a história prova que aqueles que fazem guerra acabam se deitando com a morte. Roma que o diga, quando de sua queda.
ResponderExcluirDiscordo de alguns pontos, mas achei seu comentário belíssimo. Parabéns! Continue assim.
ResponderExcluirO engraçado é que alguns meses atrás o Kadaffi era considerado um grande aliado pela europa e EUA.Ele reprimiu a manifestação na Líbia e de um dia para noite ele virou um bandido? Há grande interesse da Europa por trás de tudo isso. O petróleo da Líbia é estratégico para Europa e para os EUA.
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