quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012
Rivalidade entre sunitas e xiitas emperra revoltas na Síria e em Bahrein
A divisão entre seitas aumenta os temores de um conflito regional.Por que a Primavera Árabe estagnou na Síria e em Bahrein? Nos dois países a população deixou claro seu descontentamento sem que a repressão tenha conseguido silenciá-la. Mas também em ambos uma parte significativa se opõe à mudança, convencida de que os atuais governantes protegem seus interesses. Os observadores apontam as diferenças de seitas. A brecha entre sunitas e xiitas atravessa o Oriente Médio e agita de novo o Iraque. Alguns temem que se cristalize em um conflito.
A identidade religiosa ajuda a explicar a lealdade da comunidade sunita à dinastia dos Al Khalifa em Bahrein, ou das minorias sírias ao presidente Bashar el Assad. Embora os manifestantes de Bahrein insistam no caráter laico de suas reivindicações, concretizá-las significaria uma mudança que situaria a maioria xiita no poder. Pela mesma regra de três, a democracia levaria os sunitas sírios ao governo, hoje nas mãos de uma elite principalmente alauíta (um ramo xiita), com o apoio de cristãos, drusos e outros credos minoritários.
No Oriente Médio, "a afiliação sectária determina a comunidade, e as comunidades têm seus próprios interesses e competem pelo poder", indica o diretor do Centro de Pesquisa Global em Assuntos Internacionais (Gloria) de Israel, Barry Rubin. Sunitas e xiitas "têm uma visão do mundo diferente em assuntos políticos e lideranças diferentes. Assim que a afiliação religiosa não é como no Ocidente na atualidade, com a recente exceção da Irlanda", aponta.
A rivalidade entre sunitas e xiitas remonta aos primórdios do islamismo, quando surgiram duas interpretações opostas sobre a sucessão de Maomé. A Primavera Árabe as trouxe à superfície ao derrubar regimes que se baseavam no nacionalismo árabe e no laicismo. O islamismo que se anuncia como seu substituto volta a tornar central a identidade religiosa, e em consequência evidencia as brechas. Inclusive nos países onde a homogeneidade sunita facilitou o consenso surgem fissuras: por exemplo, no Egito, entre muçulmanos e cristãos.
Para Mehran Kamrava, diretor do Centro de Estudos Internacionais e Regionais da Universidade Georgetown no Catar, o peso do sectarismo depende em boa parte de como o utilizem as elites governantes. "Na Síria os alauítas e os cristãos temem que se El Assad cair ocorrerá um conflito de seitas. Como Assad manipulará esses temores influirá na percepção das tensões na Síria. De todo modo, em que medida [o primeiro-ministro Nuri] Al Maliki e seus adversários recorram aos sentimentos sectários de seus respectivos seguidores determinará essa brecha no Iraque".
O caso de Bahrein é paradigmático. "A monarquia sunita tentou, até certo ponto com êxito, transformar os sentimentos antiautoritários da população em divisões sectárias entre sunitas e xiitas, e acusar os xiitas de ser fantoches do Irã, o que não são", explica Kamrava.
As mesmas monarquias árabes que acorreram em apoio ao rei de Bahrein ameaçam levar El Assad diante do Conselho de Segurança da ONU. Eles apoiam o "status quo" ou a Primavera Árabe? É tentador deduzir que a aparente contradição é fruto da solidariedade sectária. Como a maioria dos governantes árabes, os reis e emires da península Arábica são sunitas. Mas também existem, e talvez principalmente, interesses geoestratégicos.
"Há diferentes níveis de apoio entre os países do Conselho de Cooperação do Golfo [CCG]", explica Greg Nonneman, decano da Escola de Serviço Exterior de Georgetown em Catar. "Omã e Kuwait, por exemplo, não participaram da operação militar, mas todos têm interesse na sobrevivência da monarquia de Bahrein. Também consideram que o problema de Bahrein pode ser contido", afirma, antes de acrescentar que todos eles, "incluindo a Arábia Saudita, estão ao mesmo tempo animando o regime para que faça algum compromisso".
A sombra do Irã é chave nessas percepções. Desde a vitória da revolução de 1979 que deu lugar ao primeiro governo xiita em um país muçulmano, os regimes árabes, defensores da ortodoxia sunita, recearam seu vizinho persa. Aquele fato acrescentou imediatismo político à querela histórico-religiosa. A guerra entre Irã e Iraque durante os anos 1980 refletiu esse antagonismo. A ajuda de seus vizinhos permitiu que Saddam Hussein mantivesse à distância os iranianos, mas também a maioria xiita de seu país.
Por isso a transferência de poder que a invasão americana propiciou em 2003 não foi bem recebida no mundo árabe. O temor que causou entre os governantes sunitas ficou graficamente refletido na denúncia de "um arco xiita" que fez o rei Abdallah da Jordânia. O governo de Bagdá dava aos xiitas continuidade geográfica desde Teerã até um Líbano dominado pelo Hizbollah, passando pela Síria. É significativo que a Arábia Saudita, a inimiga sunita do Irã, continue sem reabrir sua embaixada no Iraque. Para os sunitas mais radicais o avanço xiita é uma ameaça, e o tom desafiador dos dirigentes iranianos não ajuda a diluir esses medos.
A onda de atentados que sacudiu o Iraque desde a retirada das tropas americanas em 18 de dezembro passado ressuscitou o fantasma da guerra sectária que o país viveu entre 2006 e 2008. Ninguém crê que seja casual que todos ocorram em zonas de maioria xiita. Embora a reativação do terrorismo tenha diversas causas, a crise política entre o governo do xiita Al Maliki e o principal bloco apoiado pelos sunitas, Iraqia, fornece um perigoso caldo de cultivo para o descontentamento. A ponto de que o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, sunita, advertiu seu homólogo que caso se desencadeie um conflito sectário Ancara não vai permanecer calada.
Esse ressurgimento das tensões entre sunitas e xiitas faz alguns analistas temerem que as revoltas deslanchem uma guerra religiosa.
"Estamos vendo o nível mais alto de conflito em séculos", adverte Rubin. Theodore Karasik, do Instituto de Estudos Estratégicos Inegma, em Dubai, vai além. "Se a Síria cair, haverá uma guerra sunita-xiita desde o Líbano até o Iraque." Nonneman não acredita que haja uma guerra entre as duas seitas, mas admite que "um conflito armado entre o Irã e os países árabes sunitas, no contexto de uma explosão no Golfo, é possível (mas não muito provável)".
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