O assassinato, na sexta-feira (10), em Damasco, do general de brigada e médico Issa al-Khouli, diretor do hospital militar Ahmad Hamish, levantou a hipótese de que jihadistas estariam entrando em disputa na Síria, o que seria preocupante para o movimento de insurreição pacifista e pró-democrata. Por um lado, isso poderia levar a comunidade internacional, que já se mostrou pusilânime à ideia de condenar a brutalidade da repressão do regime, a dar mais um passo para trás.
Por outro, daria ao governo o pretexto do qual ele precisa para justificar o uso cada vez maior de violência. Até o momento, o assassinato de Issa al-Khouli ainda não foi reivindicado. A imprensa oficial afirmou, alinhada com os argumentos de Damasco, que “grupos terroristas armados” originários de Homs, Hama e Deraa estariam por trás da operação - o que permitiria, no caso, legitimar a repressão desses três bastiões do movimento de revoltas. Embora essa alegação seja criticada pela maior parte dos meios sírios de oposição, que acusam o regime de fabricar atentados para distorcer suas revoltas, a ameaça deve ser levada a sério. Por quê?
No dia da execução de Al-Khouli, americanos declararam a jornalistas do grupo de imprensa McClatchy que eles estavam certos de que a Al-Qaeda seria responsável pelos dois atentados ocorridos em Damasco e pelo ataque suicida de sexta-feira em Alep. Segundo um relatório dos serviços de inteligência americanos, a organização jihadista terrorista estaria buscando aumentar sua influência, ofuscada pela morte de seu ex-líder Ossama Bin Laden, no Paquistão, em maio de 2011.
Dois dias mais tarde, o líder da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, substanciou essas declarações ao lançar um apelo aos muçulmanos do mundo inteiro para apoiarem a rebelião síria e a se envolverem mais no combate armado “contra o regime canceroso e pernicioso”. Esse apelo, divulgado em um vídeo que tem circulado pelo YouTube desde domingo, constitui a primeira incitação explícita da organização a se assumir uma parte ativa no levante sírio. Até o hoje, ela vinha se mantendo à margem da “primavera árabe”.
O mais surpreendente é que as particularidades do assassinato de Al-Khouli lembram os métodos empregados pelos jihadistas da Vanguarda Combatente para eliminar centenas de personalidades próximas do regime. Essa organização, certa de que somente o “jihad armado na via de Deus” podia derrubar o “regime infiel do tirano Assad” (pai), instaurou inúmeros atentados contra símbolos do poder entre 1976 e 1982. Sua primeira operação, lançada em fevereiro de 1976, era exatamente um “assassinato direcionado”.
Na linha de mira estava Muhammad Gharra, militar alawita e baathista - os três critérios de seleção estabelecidos pelos jihadistas - , líder do braço de serviços de inteligência de Hama. O modus operandi: ele foi assassinado na frente de sua casa por uma célula de três homens, chamada “ousra” (família), liderada por um emir (príncipe) encarregado de executar o alvo enquanto os dois outros dividiam entre si as missões de vigilância e retirada. Issa al-Khouli, alawita, baathista e oficial do exército sírio, atendia aos “critérios de seleção” dos jihadistas da Vanguarda Combatente.
Segundo a agência oficial de notícias Sana, ele foi assassinado por um grupo composto por três homens. A informação foi confirmada pelo opositor Nizar Nayyouf, que não pode ser suspeito de ter simpatia pelo regime. Em sua revista online “Al-Haqiqa” (“A verdade”), esse sobrevivente das prisões do Baath, que ele conseguiu deixar por motivos de saúde - ele quase morreu de câncer - , relata as declarações de testemunhas oculares que afirmam que a vítima foi abatida na frente de sua residência, diante do olhar de sua esposa e de seus filhos, por um grupo de três homens que se dividiram entre os papeis de execução, vigilância e retirada.
O mais desconcertante é que a operação ocorreu duas semanas após o anúncio da criação da Frente da Vitória do Povo Sírio, organização jihadista dirigida por um certo Abou Muhammad al-Golani. Contrário à ingerência dos ocidentais, que “se mostram como os salvadores do povo oprimido, sendo que matam muçulmanos em toda parte”, dos turcos vistos como “os novos aliados dos americanos”, da Liga Árabe descrita como um instrumento dos americanos para “dar uma chance ao regime de resolver a crise, mesmo que isso signifique matar todos os cidadãos sírios” e do Irã “que procura restaurar o Império persa”, esse movimento acredita que “o único meio de salvar a nação da perdição é a volta dos jihadistas”.
Lembremos que a ação armada dos jihadistas da Vanguarda Combatente serviu de pretexto para o regime de Hafez al-Assad não somente para aniquilar todos os rivais inconvenientes do Baath - a Irmandade Muçulmana, os nasserianos e os comunistas, etc. - , mas também para arrebanhar para sua causa as minorias paralisadas pelo discurso sectário dos jihadistas, e boa parte da maioria sunita contrária a seu discurso extremista. Se ela quiser preservar sua “revolução pacífica”, a oposição, tanto civil quanto militar, deverá se distanciar desse movimento, ou até combatê-lo da mesma forma que o regime, correndo o risco de ser jogada no mesmo saco dos jihadistas, como no passado.
*Nora Benkorich, doutoranda na Escola de Estudos Superiores em Ciências Sociais (EHESS), é representante de pesquisa e de ensino na cadeira de história contemporânea do mundo árabe Henry-Laurens do Collège de France.
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