Policias e soldados russos em Grozny, Chechênia |
No início, era apenas um boato. As pessoas da região russa do norte do Cáucaso começaram a contar histórias sobre como o governo da longínqua Alemanha, esse país de prosperidade lendária, estava abrindo suas portas, especialmente aos refugiados provenientes da Tchetchênia, a república russa que tem autonomia limitada. As pessoas falavam sobre um "corredor" aberto para 40 mil tchetchenos.
Jornalistas que trabalham para um jornal de propriedade do governo tchetcheno chegaram a telefonar para a embaixada alemã em Moscou. Mas o diplomata alemão que atendeu ao telefone negou que houvesse qualquer "corredor" aberto para que refugiados entrassem na Alemanha. Na Tchetchênia, porém, os boatos às vezes são capazes de superar a palavra de um diplomata, especialmente quando um jornalista que faz parte da folha de pagamento do governo está do outro lado da linha.
Os resultados desses boatos podem ser vistos agora nas estatísticas sobre os requerentes de asilo na Alemanha. Durante meses, as autoridades federais alemãs vêm registrando um aumento brusco no número de candidatos a asilo provenientes da Rússia. O Ministério do Interior da Alemanha informou que, nos primeiros seis meses de 2013, russos apresentaram 9.957 pedidos de asilo, enquanto que apenas 3.202 fizeram solicitação semelhante durante todo o ano de 2012. Em comparação, durante o primeiro semestre deste ano apenas 4.517 pedidos de asilo por parte de sírios foram apresentados à Alemanha. Detalhe: a Síria continua sendo devastada pela guerra civil.
As autoridades alemãs dizem que não compilam informações relacionadas às origens étnicas dos requerentes de asilo. Elas também relutam muito em divulgar qualquer informação relacionada a esse tipo de dado e ressaltam que nunca é possível ter certeza de que os candidatos a refugiados estão dizendo a verdade. Falando confidencialmente, no entanto, as autoridades confirmam que a esmagadora maioria dos requerentes de asilo russos vem da Tchetchênia.
Uma decisão e um boato
O que provocou esse aumento nos pedidos de asilo da Tchetchênia? As autoridades alemãs admitem que não têm uma resposta para essa pergunta. Mas pessoas próximas do governo da chanceler Angela Merkel dizem que há uma possibilidade de que os aumentos nos pagamentos de benefícios concedidos desde 2012 tenham contribuído para o aumento do número de requerentes de asilo russos. Em julho de 2012, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha decidiu que os requerentes de asilo e refugiados têm direito de receber mais ou menos os mesmos benefícios que os beneficiários da previdência social do país, independentemente de seu país de origem.
Svetlana Gannushkina, especialista em refugiados do grupo russo Memorial, de defesa dos direitos humanos, tem uma ideia melhor do que está por trás desse fluxo. Primeiro, em abril passado, colegas de trabalho dela comentaram sobre os boatos provenientes da Tchetchênia. Ela diz que as pessoas dessa região estavam dizendo que a Alemanha planejava dar a cada refugiado tchetcheno € 4 mil (ou US$ 5,3 mil), além de um terreno.
Gannushkina também diz que os traficantes profissionais de seres humanos iniciaram os rumores, e que ela sabe de aldeias onde os residentes de ruas inteiras embarcaram em ônibus em direção ao oeste.
O boato pousou em solo fértil no norte do Cáucaso. A Tchetchênia acabou de sair de duas guerras recentes. A partir de 1994 e, em seguida, em 1999, as tropas russas lutaram contra grupos separatistas da autoproclamada República Tchetchena de Ichkeria. Durante a segunda guerra tchetchena, os soldados de Vladimir Putin esmagaram brutalmente os rebeldes. Apesar de soldados e funcionários do setor de inteligência da Rússia terem abusado e sequestrado civis na Tchetchênia, eles não conseguiram pacificar o país. Em 2004, rebeldes islâmicos plantaram uma bomba que matou o presidente tchetcheno, Akhmad Kadyrov, enquanto ele assistia ao desfile do Dia da Vitória Soviética em um assento VIP de um estádio de futebol. Mas, em seguida, veio o filho de Akhmad, Ramzan, que é o atual mandante do país.
"As pessoas estão tomadas pelo medo"
Ramzan Kadyrov lutou do lado russo durante a guerra. Certa vez, um ex-guarda-costas o acusou de torturar e assassinar pessoas, e o homem acabou morto a tiros em uma rua de Viena, em 2009. Ramzan Kadyrov conseguiu perseguir, eliminar e expulsar os rebeldes. Enquanto os islâmicos das repúblicas vizinhas do Daguestão e da Inguchétia atacam policiais ou soldados quase todas as semanas, as coisas estão relativamente calmas na Tchetchênia.
Mas Kadyrov governa com mão de ferro. "As mulheres sem véus são alvo de ataques e estudantes do sexo feminino que usam calças jeans ou que tenham exposto os cotovelos não estão autorizadas a participar de aulas nas universidades", diz Gannushkina, a ativista dos direitos humanos. "As famílias já não enviam mais suas filhas para a universidade e as escondem em casa por medo de que os homens da guarda de Kadyrov venham a se engraçar com elas". Gannushkina também diz que os sequestros continuam, mas que ninguém se atreve a reclamar às organizações de direitos humanos a respeito deles. "As pessoas estão tomadas pelo medo", acrescentou ela, "e é por isso que tanta gente acreditou no boato".
O boato está levando dezenas de tchetchenos a abandonarem sua terra natal. A maioria deles foge para a Ucrânia, de onde eles cruzam a fronteira com a União Europeia e entram na Polônia e, em seguida, na Alemanha. Ativistas de defesa dos direitos humanos dizem que a maioria dos refugiados viaja em grupos organizados por traficantes e entra nos países de forma ilegal. Em abril passado, policiais federais de Frankfurt an der Oder, cidade que faz fronteira com a Polônia, disseram que os refugiados eram principalmente famílias com crianças pequenas.
Será que o asilo será concedido?
Mas quais são as chances deles de que seus pedidos de asilo sejam aceitos pela Alemanha? Em resposta a uma solicitação oficial de informações apresentada pelo Partido de Esquerda alemão, de extrema-esquerda, o governo federal da Alemanha disse que 24% dos refugiados russos receberam uma resposta positiva a seu pedido de asilo no primeiro trimestre de 2013. "Se quase 25% deles estão sendo aceitos, estão ocorrendo, obviamente, várias perseguições e amplas violações dos direitos humanos", diz Bernd Mesovic, chefe-adjunto da organização de direitos dos refugiados Pro Asyl.
Na verdade, ele e outros ativistas de defesa dos direitos humanos temem que as autoridades alemãs possam introduzir, a partir de agora, o tipo de procedimento acelerado para a análise de pedidos de asilo para esses refugiados, processo que já está sendo usado para os requerentes de asilo originários dos Bálcãs. Mesovic diz que as autoridades alemãs poderão tentar dar o exemplo tomando decisões aceleradas e recusando um grande percentual de pedidos de asilo.
Em meados de maio, o jornal estatal tchetcheno "Westi Respubliki" reagiu à situação, ridicularizando o fluxo recente de emigrantes. Durante as guerras, segundo eles, os tchetchenos fugiam de "explosões, expurgos em massa e sequestros, mas hoje eles têm outros motivos: eles estão em busca de uma vida boa", diz o artigo. No entanto, nenhum tchetcheno viu a cor dos "subsídios, apartamentos e carros" que, supostamente, estão esperando pelos refugiados na Alemanha, ridiculariza o artigo.
No entanto, não adiantou muito ridicularizar aqueles que buscam asilo na Alemanha. Centenas de tchetchenos já partiram e centenas os seguirão --até que o boato, eventualmente, perca sua força.
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