Presidente da Rússia, Vladimir Putin (direita), cumprimenta o ator francês Gerard Depardieu, durante encontro na casa de Putin em Sochi, na Rússia |
Era junho de 1935 e Romain Rolland, um famoso autor francês, havia acabado de fazer uma longa entrevista em Moscou, com Stalin. No dia seguinte, Aleksandr Arossev, funcionário soviético que havia atuado como guia e tradutor de Rolland, despachou uma nota de adulação ao seu todo-poderoso chefe, informando-lhe o sucesso que ele havia feito com Rolland.
"Romain Rolland, para ser bem honesto, ficou pessoalmente encantado com você", escreveu Arossev em uma carta a Stalin com data de 29 de junho de 1935. "Ele disse isso várias vezes. E também afirmou que não esperava por isso, que nunca teria imaginado que Stalin fosse dessa maneira".
A nota, marcada por Stalin com um lápis vermelho – com os dizeres "para os meus arquivos" – foi exposta, ao lado das 21 páginas da transcrição original da entrevista de Rolland, em uma mostra recente em Paris, intitulada "Intelligentsia". A coleção de documentos originais que registram as ligações tortuosas entre intelectuais franceses e russos durante a era soviética inclui o decreto original, de 1974, que enviou o escritor dissidente Aleksandr Solzhenitsyn para o exílio e o destituiu de seu passaporte.
A exposição mostrou as mais variadas histórias de idealismo cego e despertares duros, resultado do poder hipnótico do comunismo e da brutalidade cínica do regime soviético.
A mostra também expos como figuras relacionadas ao mundo da cultura foram manipuladas para fins políticos – uma história familiar e que, hoje em dia, ganhou um eco estranho, embora bobo, no tratamento ao estilo "tapete vermelho" dado ao ator francês Gerard Depardieu pelo presidente Vladimir V. Putin, da Rússia.
As palhaçadas de Depardieu na Rússia tornaram-se uma fonte aparentemente interminável de piadas e charges, e são debatidas por políticos e especialistas que especulam sobre os motivos do ator – depressão, ressentimento ou evasão fiscal – para aceitar um passaporte russo emitido às pressas. (Blogueiros russos afirmam que a foto amplamente divulgada de Depardieu ao lado Putin foi tirada em 2007.)
A aparição do ator na região de Mordóvia, onde mulheres usando lenços na cabeça amarraram um cinto em torno de sua ampla bata ao estilo camponês, acrescentou um toque folclórico ao episódio.
O governo russo ofereceu a Depardieu, em uma rápida sucessão, o cargo de ministro da Cultura da Mordóvia, um emprego em um teatro na cidade siberiana de Tyumen, o título de "Urdmurt Honorário" (por parte de outra região da Rússia) e um convite do Partido Comunista Russo para que ele se junte a suas fileiras.
De sua parte, Depardieu aceitou totalmente a acolhida, elogiando o "lindo e emotivo povo" da Rússia e "sua grande democracia". Em uma referência velada e mal disfarçada à sua querela pública com o primeiro-ministro francês – que chamou de "patéticas" as reclamações de Depardieu sobre uma proposta para aumentar para 75% a alíquota do imposto de renda pago pelos cidadãos mais ricos da França – o ator elogiou a magnanimidade da Rússia. "Aqui, não há mesquinhez", disse ele. "Existem apenas sentimentos grandiosos".
Houve também uma observação pessoal. "Eu realmente adoro o seu presidente", disse Depardieu, "e esse sentimento é mútuo".
Ele ficou encantado, do mesmo modo que Rolland.
Mas não se pretende, de modo algum, colocar Depardieu na mesma categoria de Rolland, um pacifista e admirador de Mohandas K. Gandhi, que foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1915 – muito menos comparar Putin com Stalin.
Mas o episódio fornece mais um exemplo de diplomacia cultural utilizada como propaganda.
"A cultura é um eixo da diplomacia que já foi usada por vários regimes autocráticos, por Hitler e por Stalin", disse Lorena de Meaux, curadora, juntamente com um colega, da exposição "Intelligentsia", que ficou em cartaz até a semana passada na École des Beaux Arts.
Ela riu com a menção do caso Depardieu, que descreveu como "engraçado e original", mas não irrelevante. "Se ele aceitar o cargo de ministro da Cultura da Mordóvia, talvez possa ajudar a descobrir a história dos campos de prisioneiros da região", disse ela.
Certamente, o regime de Putin aproveitou o episódio para se promover. Depardieu é bem conhecido na Rússia (ele já apareceu em anúncios de um banco russo e de uma marca de ketchup), e sua carta efusiva louvando a alma russa foi lida no principal canal de TV do país, de alcance nacional.
Autoridades russas chegaram a sugerir que o voo de Depardieu em direção à baixa alíquota do imposto de renda praticada na Rússia – de 13% – pode iniciar uma tendência. "O Ocidente não conhece muito bem nosso sistema fiscal diferenciado", escreveu no Twitter Dmitri O. Rogozin, vice-primeiro-ministro. "Quando eles souberem sobre nosso sistema fiscal, acredito que teremos uma migração maciça de europeus ricos para a Rússia".
Ou não. Depardieu recebeu seu novo passaporte num momento em que Putin, reagindo às críticas relacionadas às práticas de direitos humanos da Rússia, em especial por parte dos Estados Unidos, estava começando uma campanha para conter as influências externas sobre o país. No parlamento russo, foi apresentada uma grande quantidade de projetos de lei para, por exemplo, limitar o número de filmes estrangeiros nos cinemas russos ou para proibir que estrangeiros – incluindo aqueles com passaportes russos –critiquem o governo na televisão.
Como Rolland descobriu, não demora muito tempo para que uma atitude encantadora azede. Depois de sua entrevista no Kremlin, ele tentou contatar Stalin repetidas vezes para obter permissão para publicar o material.
As cartas de Rolland ficaram cada vez mais urgentes à medida que os relatos sobre abusos por parte do regime soviético aumentavam em número e intensidade. Em 1937, ele pediu clemência em nome de figuras como Nikolai Bukharin, um revolucionário bolchevique que foi executado logo depois. Em outra carta, ele protestou contra a prisão de Arossev, o homem que disse a Stalin que Rolland o achou sedutor.
Rolland nunca recebeu a permissão de Stalin para publicar a transcrição da entrevista de 1935. Dois anos depois, ele ainda não havia recebido uma resposta.
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