Enquanto os líderes apelavam aos seus combatentes para não se vingarem contra “os irmãos líbios”, muitos rebeldes voltavam sua fúria contra os imigrantes da África sub-Saara, prendendo centenas pelo crime de combaterem como “mercenários” para Muamar Gaddafi, sem nenhuma evidência fora a cor de sua pele.
Muitas testemunhas disseram que quando Gaddafi perdeu o controle de Trípoli nos primeiros dias da revolta, unidades experientes de combatentes de pele escura, aparentemente de outros países africanos, chegaram à cidade para ajudar a subjugá-la. Mas desde que os jornalistas estrangeiros começaram a chegar à cidade poucos dias depois, eles não encontraram evidência desses mercenários estrangeiros.
Mas em um país com uma longa história de violência racial, se tornou fato aceito entre aqueles que apoiam os rebeldes líbios que mercenários africanos compõem as fileiras dos seguidores do governo. E desde a queda de Gaddafi, a caça aos suspeitos de serem mercenários se tornou uma grande preocupação.
Defensores de direitos humanos dizem que a transformação dos negros em bodes expiatórios pelos rebeldes aqui segue uma campanha semelhante, que acabou incluindo linchamentos, após os rebeldes terem tomado o controle da cidade de Benghazi, no leste, há mais de seis meses. A recente captura de africanos, entretanto, ocorre em um momento delicado, em que o novo governo provisório está tentando estabelecer sua credibilidade. Seu tratamento aos detidos está despontando como um teste chave tanto do compromisso do governo provisório com o estado de direito e sua capacidade de controlar seus milhares de combatentes livremente organizados. E ele também espera atrair de volta os milhares de trabalhadores estrangeiros de que precisa para ajudar na reconstrução da Líbia.
Muitos moradores de Trípoli –incluindo alguns líderes rebeldes locais– agora usam a palavra em árabe para “mercenários” ou “combatentes estrangeiros” como um termo genérico para se referirem a qualquer membro da grande classe baixa de trabalhadores imigrantes africanos da cidade. Cadeias rebeldes improvisadas nos arredores da cidade mantêm os imigrantes africanos segregados em cercados quentes e fétidos por até duas semanas, sob acusações que seus captores frequentemente reconhecem ser pouco mais que suspeitas.
Os imigrantes superam em muito o número de prisioneiros líbios, em parte porque os rebeldes dizem que permitiram que muitos dos líbios que apoiavam Gaddafi voltassem para suas casas, caso estivessem dispostos a entregar suas armas.
As detenções refletem “o profundo racismo e sentimento antiafricano na sociedade líbia”, disse Peter Bouckaert, um pesquisador do Human Rights Watch que visitou várias prisões. “Está muito claro para nós que a maioria dos detidos não era soldado e nunca empunhou uma arma na vida.”
Em um hangar de concreto mal iluminado abrigando cerca de 300 detidos de pele escura e olhos sem expressão em um bairro, vários disseram ter apenas 16 anos. Em uma delegacia de polícia próxima reaberta, os rebeldes detinham Mohamed Amidu Suleiman, um imigrante de 62 anos de Níger, sob acusação de bruxaria. Para apoiar as acusações, eles apresentaram um longo cordão de contas que disseram ter encontrado com ele.
Ele era mantido em uma cela segregada com aproximadamente 20 outros prisioneiros, todos imigrantes africanos, exceto um. “Nós não temos água no banheiro!” gritou um prisioneiro para o guarda. “Nós também não!” respondeu o guarda. Grande parte da cidade está sem água corrente para banho, descarga nos vasos sanitários ou lavar roupa desde o colapso no sistema de fornecimento de água ocorrido por volta do momento da fuga de Gaddafi. Mas o fedor, e o medo, dos imigrantes é tamanho que os guardas entregaram máscaras hospitalares aos visitantes antes de entrarem nas celas.
Fora das celas dos imigrantes, um número semelhante de prisioneiros líbios ocupa uma rede de salas menos lotada. Osama el Zawi, 40 anos, um ex-funcionário da alfândega encarregado da cadeia, disse que seus oficiais permitiram que a maioria dos apoiadores líbios de Gaddafi da região voltasse para casa. “Nós conhecemos uns aos outros”, ele disse. “Eles não representam nenhuma ameaça para nós agora. Eles têm vergonha de sair nas ruas.”
Mas os “combatentes estrangeiros”, ele disse, eram mais perigosos. “A maioria deles nega o que fizeram”, ele disse, “mas encontramos alguns deles com armas”. Um guarda acrescentou: “Se soltarmos os mercenários, as pessoas nas ruas os ferirão”.
No hangar lotado, no bairro de Tajura, o comandante rebelde Abdou Shafi Hassan, 34 anos, disse que estavam detendo apenas poucas dezenas de líbios –informantes locais e prisioneiros de guerra– mas centenas de africanos em cercados segregados. Em um início de noite recente, os cativos líbios podiam ser vistos enrolando os tapetes após as orações do anoitecer em um pátio ao ar livre, a pouca distância de onde os africanos estavam em um piso de concreto no escuro.
Vários disseram ter sido presos enquanto andavam pelas ruas ou em suas casas, sem armas, e alguns disseram ser líbios de pele negra da região sul do país. “Nós não sabemos por que estamos aqui”, disse Abdel Karim Mohamed, 29 anos.
Um guarda –El Araby Abu el Meida, um engenheiro mecânico de 35 anos antes de pegar em armas na rebelião– quase parecia pedir desculpas pelas condições. “Nós todos somos civis e não temos experiência em administrar prisões”, ele disse.
A maioria dos prisioneiros é composta de trabalhadores rurais imigrantes, ele disse. “Eu tenho um trabalhador sudanês na minha fazenda e eu não o prenderia”, ele disse, acrescentando que se o “investigador” esperado concluir que os outros prisioneiros negros não são mercenários, eles serão soltos.
Nos últimos dias, o governo provisório iniciou o esforço para centralizar o processamento e detenção dos prisioneiros. Abdel Hakim Belhaj, o líder do conselho militar de Trípoli, disse na quarta-feira que tinha estendido sua proteção a um grupo de 10 trabalhadores africanos, que procuraram seu quartel-general em busca de refúgio.
“Nós não concordamos com a prisão de pessoas apenas por serem negras”, ele disse. “Nós entendemos o problema, mas ainda estamos em uma zona de batalha.”
Mohamed Benrasali, um membro da equipe de estabilização de Trípoli do governo provisório, reconheceu o problema, mas disse que ele “se resolverá sozinho”, como aconteceu em sua cidade natal, Misrata.
“As pessoas têm medo das pessoas de pele escura, então todas passam a ser suspeitas”, disse Benrasali, notando que os moradores também prenderam os imigrantes de pele escura em Misrata após os rebeldes tomarem o controle. Ele disse que orientou as autoridades em Trípoli a criarem um sistema de soltura para os imigrantes que encontrem líbios que atestem em prol deles.
Com milhares de combatentes rebeldes semi-independentes ainda perambulando pelas ruas à procura de ameaças escondidas, controlar o impulso de prender os imigrantes não será fácil.
Do lado de fora do antigo prédio de inteligência de Gaddafi, os rebeldes mantinham prisioneiros dois homens de pele escura à ponta de faca, amarrados juntos pelos pés e com os braços amarrados nas costas, deitados sobre uma pilha de lixo, cobertos com moscas. Seus captores disseram que eles foram encontrados em um táxi com munição e dinheiro. Os prisioneiros assustados, dois homens de 22 anos de Mali, inicialmente disseram que não tinham nenhum envolvimento com as milícias de Gaddafi e então, enquanto um captor segurava uma faca próxima de suas cabeças, eles começaram a contar a história de convocação forçada para as forças de Gaddafi, que eles pareciam pensar que era a desejada.
Perto dali, combatentes armados permaneciam sobre outros imigrantes agachados contra uma cerca. Seus captores os obrigavam a fazer exercícios sob a mira de armas, em cantos rebeldes como “Deus é Grande” e “Liberdade para a Líbia!”
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