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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Estado abandonado e territórios controlados por milícias dificultam ações na Somália

Como enfrentar uma situação de emergência humanitária em um país sem autoridade estatal? É esse o desafio enfrentado pelas ONGs que combatem a fome em um território onde tudo se compra, se vende e se manipula.

A contradição é implacável: a Somália é um dos países do mundo cuja população mais necessita da ajuda internacional... mas é também um dos lugares mais perigosos do planeta para trabalhadores humanitários. A fome que volta a assolar esse país, colocando-o novamente nos radares da opinião internacional, evidencia a necessidade de se resolver, ou pelo menos de se administrar essa situação. Como levar meios de subsistência a populações que vivem em um território controlado por milícias islâmicas – os shebab – hostis a qualquer presença ocidental e, de uma forma mais ampla, em um país desprovido há vinte anos de qualquer autoridade estatal?

Na prática, as agências das Nações Unidas (Programa Alimentar Mundial, Unicef, etc.), assim como as poucas ONGs ainda presentes – Ação Contra a Fome (ACF), Médicos Sem Fronteiras (MSF) - , retiraram há vários anos seu último expatriado e têm operado com a ajuda de equipes compostas unicamente por somalis. Paralelamente, as organizações filantrópicas islâmicas financiadas pelos países do Golfo ganharam muito poder, construindo escolas e hospitais enquanto exaltam a sharia (código de leis islâmicas).

“A Somália é o único lugar do mundo onde somos obrigados a trabalhar à distância, às cegas, por assim dizer”, admite Romy Brauman, cofundador da MSF, que teve três funcionários mortos nesse país em um atentado em 2008. “Nós contamos localmente com pessoas muito boas, mas que não escapam do controle das forças políticas locais”. Um outro dirigente humanitário explica, sob anonimato: “Uma parte dos orçamentos de ajuda é usada para pagar as taxas que os grupos armados nos impõem. Nós pagamos porque avaliamos que a balança entre essa transgressão ao nosso princípio de neutralidade e a ajuda levada às populações pende a favor desta última”. “Preferiríamos colocar esse dinheiro em outro lugar, mas, no final, ele serve para salvar ou para ajudar muita gente”, resume Brauman.

A equipe e a logística humanitárias são, portanto, administradas à distância, principalmente a partir do vizinho Quênia. Os contatos são feitos por telefone e e-mails, bem como durante passagens-surpresa e de curtíssima duração, por razões de segurança, de chefes de ONGs na Somália.

A “bunkerização” das agências da ONU “passa uma ilusão de presença local” e “permite somente uma compreensão truncada da situação”, acredita François Grünewald, ex-diretor do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no Chifre da África, que dirige o Urgência, Reabilitação e Desenvolvimento (URD), um grupo de pesquisas sobre a ação humanitária. “A motivação diminui e a eficácia do trabalho é muito pequena”. No entanto, uma implantação muito antiga no local, como no caso do CICV, permite limitar esses inconvenientes.

Continuar a trabalhar na Somália com um mínimo de segurança pressupõe, primeiramente, não somente ser aceito, mas “apoiado pelas populações locais”. São elas que, por se beneficiarem das intervenções humanitárias, “conduzem de fato as autoridades a nos deixarem trabalhar”, explica Eric de Monval, responsável pelo Chifre da África na ACF, presente na Somália desde 1992. Um apoio desse tipo não dispensa, no entanto, “contatos extremamente numerosos com todas as partes, sobretudo com os diferentes elos das cadeias de comando dos grupos armados”.

A ausência de um Estado na Somália, difícil de imaginar vista da Europa, significa que ninguém detém legitimidade para fazer julgamentos, cobrar impostos ou fazer um uso legítimo da violência. Mas, como ressaltam todos os envolvidos, a ausência de um Estado não significa de maneira alguma que há um vazio completo. “Existe a autoridade, mas exercida por atores diversos com os quais é preciso fazer acordos se quisermos agir”, analisa Brauman, que menciona ironicamente uma espécie de “paraíso liberal” somali.

Além disso, as ONGs só são toleradas quando convencem os chefes de guerra islâmicos sobre sua perfeita independência, não somente em relação a seu país de origem, mas também do sistema da ONU, considerado pró-ocidental. Isso exige que se tenha uma verdadeira autonomia logística (não utilizar os aviões da ONU, por exemplo).

O modus operandi das Nações Unidas, que apoiam uma solução política – o Governo Federal de Transição (GFT) combatido pelos shebabs – ao mesmo tempo em que querem levar alimentos e cuidados médicos a todos, torna difícil o trabalho de suas agências humanitárias.

Por outro lado, Grünewald critica certas declarações de dirigentes políticos que podem colocar em risco os humanitários. Como em 2009, quando Karel De Gucht, comissário europeu para o desenvolvimento e a ação humanitária na época, pediu para que se apoiasse o GFT para “combater a Al Qaeda”, esquecendo-se de que humanitários europeus trabalhavam em zona controlada pelos shebabs, leais a Osama Bin Laden.

Mas as organizações humanitárias na Somália também pagam por erros cometidos no passado, e elas sabem disso. Em vez de aceitar a complexidade do sistema de clãs somali, nos anos 1990 os ocidentais escolheram como interlocutores chefes de partido que, em audiência junto aos clãs, na realidade defendem seus próprios interesses de predadores econômicos.

“As organizações humanitárias, em busca de ‘proteção dos clãs’ [para garantir sua segurança], caíram então na armadilha da máfia das milícias políticas. A comunidade da ajuda ainda está pagando o preço desse erro”, escreve Grünewald. O reinado da lei do mais forte exacerbou os conflitos relativos a terras e roubo de gado. Ela provavelmente tem a ver com a repetição dos episódios de fome. Os conflitos também estão sendo atiçados pelo jogo dos países vizinhos, como a Eritreia, que financiam os shebab adversários da Etiópia, seu inimigo declarado.

A insistência dos ocidentais em quererem reconstruir do zero um Estado centralizado, como se a Somália não tivesse nem história nem estrutura social, nada resolveu. Não mais do que o maniqueísmo associado à palavra de ordem americana da “guerra contra o terrorismo”, que impediu a compreensão do apoio popular que beneficiou os islamitas. Estes últimos, embora desconheçam as tradições locais de um islamismo tranquilo, se sentem capazes, assim como os talebans no Afeganistão, de trazer a ordem instaurando a sharia.

Nesse contexto pernicioso onde tudo se compra, se vende e se manipula, o sofrimento das vítimas da fome e o poder de autorizar as organizações humanitárias a lhes prestar socorro são objetos tanto de negociações políticas quanto financeiras. A trágica situação da ajuda aos somalis dificilmente poderá ser resolvida abstraindo-se esse “jogo” complexo e explosivo.

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