terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
Classe média síria deixa o luxo para depender de caridade no exílio
Eles eram influentes, tiravam férias na Grécia, compravam objetos de arte e móveis de design. Hoje, esta família síria está exilada e se vê forçada a depender da caridade. É uma história típica do êxodo da grande classe média do país.
Farah Schemi quer muito dizer uma coisa: caso os leitores da história dela em algum ponto de suas vidas tenham que fugir de sua terra natal, ela quer que eles saibam o que botar na mala. "Passaportes, ouro, registros bancários e de propriedade, muito importante", diz ela. Quase mais importante são todas as coisas que aquecem. "Cobertores, roupas quentes, sapatos fortes", diz a senhora de 54 anos. É melhor usar um casacão, mesmo no alto verão.
Uma coisa a senhora Schemi aprendeu: "Você nunca volta para casa tão cedo quanto esperava". Inevitavelmente, chega o primeiro inverno em uma terra fria. E naquelas primeiras noites frias, quando todas as esperanças somem e você aceita o fato que tudo está perdido, pés quentes são, no mínimo, um pequeno consolo.
A senhora Schemi nunca sonhou que um dia fosse se tornar especialista em como fazer as malas de fuga –não quando o mundo dela ainda estava em ordem.
Antes do início da revolução na Síria, ela só fazia as malas quando a família viajava nas férias de verão para uma ilha grega ou para a costa turca. Em sua antiga vida, Farah Schemi trabalhava como nutricionista, dando conselhos de nutrição para pacientes particulares que pagavam bem. Ela se especializou em dietas para pacientes de câncer para ajudar no processo de cura.
Um paciente de câncer se torna vítima da guerra
Dois anos e uma guerra depois, isso tudo ficou na lembrança. O marido de Farah Schemi, Helmi, sofre de câncer, mas seu seguro de saúde da Síria não cobre o tratamento no Líbano, onde a família se estabeleceu depois de fugir da guerra em sua pátria.
Então os Schemi, alojados com suas duas filhas adultas na sala de trás de uma mesquita libanesa, observam Helmi ficar mais fraco a cada dia. Ele deveria estar administrando sua gráfica em Damasco, mas está fadado a se tornar outra vítima da guerra civil da Síria.
Enquanto isso, até um milhão de sírios fugiram para os países vizinhos, de acordo com estimativas das principais organizações de assistência. Cerca de 300 mil estariam no Líbano. Mas como o governo libanês tem laços com o regime sírio de Bashar al-Assad, as agências oficiais relutam em oferecer assistência a refugiados sírios. Não há campos de refugiados operados por organizações assistenciais no Líbano.
Aqueles que têm sorte ficam na casa de parentes ou têm dinheiro suficiente para alugar um apartamento. Todos os outros refugiados sírios no Líbano são forçados a depender da ajuda de estranhos: das mesquitas que oferecem sopa, dos fazendeiros que deixam que durmam em seus estábulos ou dos proprietários de prédios que os deixam montar tendas na laje. O atendimento médico para os desabrigados é totalmente inadequado.
Crianças passam fome e congelam de frio
A primeira parada para os refugiados é a cidade de fronteira do Líbano, Majdal Anjar. Cercada de montanhas cobertas de neve e a apenas uma hora de carro de Damasco, a pequena cidade já foi reduto de contrabandistas.
Hoje funciona como uma espécie de campo de recepção. Nos últimos meses, dezenas de milhares de sírios fizeram sua primeira pausa aqui, depois de fugirem pela fronteira.
Milhares permaneceram na cidade. Desde então, Majdal Anjar –como muitas outras cidades libanesas- opera em estado de emergência: só há água e eletricidade esporadicamente e simplesmente não há o suficiente para atender a população em franca expansão. As aulas nas escolas ocorrem em dois turnos: crianças libanesas de manhã, sírias à tarde.
Os Schemi também fizeram sua primeira parada em Majdal Anjar, depois de fugirem do distrito de Kuseija, em Damasco, durante um cessar-fogo em julho último. Os pais viajaram com três de seus quatro filhos adultos (o mais velho estuda em uma universidade nos EUA) e buscaram ajuda em uma mesquita.
O muezzin disse que poderiam dormir em seu escritório por uma noite. Aquela noite se tornou seis meses. Quando as tempestades de inverno atravessam as montanhas, as temperaturas na sala caem abaixo de zero. Quando o tempo abre novamente, a neve derretida pinga das paredes de seu alojamento.
"Mas não queremos reclamar. Ainda estamos em boa situação. Muitos refugiados vivem do lado de fora com seus filhos, no meio da neve", diz Mariam, que aos 31 anos de idade é a filha mais velha dos Schemi. Ela e sua irmã Rula, as duas professoras, encontraram trabalho em uma escola libanesa e usam seus salários para alimentar a família. Depois que acabam o trabalho à tarde, elas dão aulas para as crianças refugiadas sírias, voluntariamente. "Olho para as crianças e penso na situação ruim dos pais", diz Mariam. Alguns de seus alunos são altamente agressivos, outros, apáticos devido às suas experiências de guerra.
No início, os Schemi achavam que seu exílio terminaria logo e que em breve retornariam para casa. Mas essas esperanças logo foram quebradas. Apenas um mês depois da sua fuga, um vizinho ligou de Damasco: o prédio onde moravam no terceiro andar tinha sido incendiado. Além disso, os soldados pilharam os apartamentos.
Potenciais genros padecem
Mariam e Rula conseguiram voltar a Damasco. Elas queriam trazer as posses da família para a segurança –mas não havia mais nada para salvar. Em seu smartphone, Rula mostra fotos dos destroços que antes eram sua casa: os quartos estavam pretos de fuligem. O que não estava queimado estava destruído, e os computadores tinham buracos de tiros. "No primeiro andar do prédio, um médico e um veterinário tinham seus consultórios", conta Rula. Aparentemente, os dois trataram dissidentes feridos, e o exército se vingou do prédio inteiro. Fora uma família vizinha, todos os moradores do prédio fugiram do país: o êxodo da classe média abastada impressionantemente grande da Síria.
Os Schemi e seus vizinhos estão entre os que tinham algo a perder e perderam rapidamente.
Rula tem outras fotografias em seu celular, imagens de tempos mais felizes. Um vídeo mostra a família no aniversário do pai há dois anos: em uma sala de estar cheia de móveis antigos, tias com cabelo armado rindo para a câmera e crianças sendo passadas de um colo ao outro. Há bolo e flores em uma cômoda de mogno, de baixo de um quadro moderno. Subitamente, Rula aparece dançando na cena, com os cabelos soltos e uma camisa curta azul brilhante. "Outros tempos", diz ela e desliga o celular. Hoje, Rula e sua irmã usam macacões e não removem seus lenços brancos, mesmo dentro de casa –afinal, contam com a boa vontade do guardião da mesquita.
"As fotos estão entre as coisas que você não lembra a princípio", diz Farah Schemi. Nenhuma foto de seus filhos quando bebê foi levada. As fotos de seu casamento, boletins, aniversários –tudo acabou. Seu conselho para quem tiver que rapidamente empacotar os itens essenciais: "Não esqueça seu álbum de fotografias!"
A perspectiva que a guerra na Síria possa encurtar a vida de seu marido não é a única preocupação da senhora Schemi. Ela também se preocupa com o futuro das filhas. "As meninas estão em uma idade que deveriam se casar e ter seus próprios filhos", diz ela. "Mas com quem vão se casar?" Cinquenta mil rapazes morreram na Síria no curso da revolução; 70.000 foram presos. "Os homens com quem minhas filhas deveriam se casar caíram com a revolução".
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