O premiê turco, Recep Tayyp Erdogan, chamou França de "racista" por aprovar lei que condena genocídio armênio |
Em 16 de dezembro de 2005, diante dos olhos do mundo, um tribunal de Istambul realizou uma audiência penal na qual foi submetido a julgamento o escritor Orhan Pamuk, que posteriormente seria agraciado com o Prêmio Nobel. A promotoria o acusava de ter declarado que "um milhão de armênios foram assassinados nestas terras entre 1915 e 1917, e ninguém se atreve a dizê-lo". O processo, fundamentado em uma norma que criminaliza os insultos à nação, à etnia ou às instituições turcas, causou grande revolta e protestos em muitos países. Finalmente, diante de forte pressão externa, a acusação penal foi arquivada.
Dentro de poucos dias, na França, quem negar que os armênios sofreram um genocídio (ou qualquer outro genocídio reconhecido como tal pelo Parlamento) enfrentará um ano de prisão. Nicolas Sarkozy prevê promulgar a lei, aprovada na semana passada pelo Senado francês, no início de fevereiro.
Os dois episódios se situam nas antípodas no mapa das possíveis relações entre Estado e memória. Mas, apesar da admirável intenção de defender as vítimas diante de repugnantes episódios de negacionismo, o texto francês também despertou perplexidades jurídicas, políticas e diplomáticas.
A disputa entre os que veem nele uma nobre defesa da memória e aqueles que o consideram um perigoso corte da liberdade de opinião se inscreve, neste caso, no quadro de um vibrante conflito diplomático com a Turquia. Ancara reconhece que o Império Otomano matou centenas de milhares de armênios, mas, com diversos argumentos, rejeita que se tratou de um genocídio, isto é, de uma tentativa de extermínio dessa população.
Como pano de fundo de toda a polêmica, se evidencia o perfil de uma Europa que recorre cada vez mais ao direito penal como guardião da memória, como último baluarte diante da sensação de uma deriva, diante da proliferação de episódios indignantes - como o baile de ultradireitistas organizado na sexta-feira passada em Viena no dia da memória do Holocausto - aos quais a rede mundial e as novas tecnologias concedem uma repercussão perigosa. Diante de tal cenário, muitos querem remediar através do Estado, do direito, que define e reprime. "No fundo, nos encontramos diante de um debate ligado à identidade europeia, que está se dissipando, e portanto, talvez em um sintoma de fraqueza, estamos nos ancorando ao direito penal", observa Emanuela Fronza, professora da Universidade de Trento que publicou estudos com a ideia da lei penal como guardiã da memória.
Nesse território se inscreve exatamente a primeira ordem de críticas à lei francesa, que concede ao legislador o poder de definir quais episódios históricos foram genocídios. Muitos historiadores se rebelam diante dessa situação. "Em um Estado livre, não compete às autoridades políticas definir a verdade histórica e restringir a liberdade dos pesquisadores sob ameaça penal", diz o manifesto do grupo Liberdade para a História, um movimento de acadêmicos que se opõem à lei. Vários países (entre eles a Alemanha) condenam o negacionismo do Holocausto, mas conceder ao legislador poder para definir quais atos foram genocídio é claramente um passo além.
Uma segunda ordem de críticas concerne as circunstâncias específicas do caso. "O negacionismo do genocídio armênio é uma política pública, de Estado. Por isso provoca particular perplexidade o uso do direito penal, que se concentra nos indivíduos, em vez de encarar o tema de um ponto de vista político", diz Fronza. Com essa lei, não só poderia ser julgado na França o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, por expressar o ponto de vista oficial do país; também o seria qualquer estudante maior de idade que repetisse a lição aprendida na escola.
Uma terceira ordem de críticas se refere à ampla formulação do texto, que permitirá levar ao banco dos réus qualquer pessoa que argumente que não se tratou de genocídio, sem distinguir entre os que negam com a intenção de fomentar o ódio e a violência e aqueles que argumentam objeções com relação às vítimas, que não negam os fatos, mas, com base em pesquisas acadêmicas, sua qualificação jurídico-histórica.
Nesse sentido, é interessante a jurisprudência espanhola. O Código Penal espanhol incluía uma norma muito parecida com a francesa, mas o Tribunal Constitucional ordenou em 2007 eliminar a penalização da simples negação de genocídio. "Por outro lado, a criminalização da justificativa do genocídio foi salva pelo Constitucional, mas só quando esta constitui uma provocação indireta à comissão de crimes", explica o professor Bernardo Feijoo, da Universidade Autônoma de Madri. "Assim que o ponto de equilíbrio do Constitucional é claro: o limite para a liberdade de expressão começa no ponto em que esta é usada para organizar um clima favorável a que se atente contra um determinado grupo étnico, religioso, etc. Isso é, por exemplo, o que aconteceu com a Rádio Ruanda, que lançava mensagens incendiárias antes que começasse o massacre."
Assim, na Espanha, as autoridades agiram pela via penal contra o dono da livraria Europa de Barcelona, que divulgava textos antissemitas e que justificavam o Holocausto. Mas seria inadmissível um processo penal contra o prestigioso historiador Bernard Lewis, que, com argumentos acadêmicos, afirma que o massacre de armênios na Anatólia não pode ser classificado como genocídio.
"Mas a sentença do Constitucional espanhol vai contra a tendência, é praticamente a única nesse sentido. Na Europa se amplia a aceitação da penalização da negação, que é reclamada pelas próprias instituições europeias", salienta Fronza.
Esse é um dos argumentos dos promotores da lei francesa: cumprir as decisões europeias. Os detratores indicam que esta vai muito além do pedido de Bruxelas, ao não exigir esse vínculo entre negação e perigo social.
Valérie Boyer, a deputada que promoveu a lei, defendeu assim o espírito da norma, em um artigo publicado na revista "Atlantico": "Os franceses de origem armênia têm direito a ser protegidos em seu território das terríveis propagandas que sujam a memória de seus parentes massacrados. [...] Para eles, peço a proteção da República contra essa insuportável agressão moral". Boyer afirma também que "negar genocídios comprovados significa prolongar a intenção genocida sobre as gerações seguintes e atentar contra sua dignidade humana".
Boyer milita na conservadora formação UMP; mas a lei rompeu as linhas políticas, colhendo votos a favor e contra no seio de praticamente todos os partidos. Os críticos indicam que a lei, a três meses das eleições presidenciais, tem um sabor eleitoral: na França há cerca de 500 mil eleitores de origem armênia.
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