Ahmad Tourson passou oito anos na prisão de Guantánamo, apesar de ser inocente. Em 2009, ele foi enviado para Palau, uma minúscula nação insular. A sua nova situação é insustentável, mas o governo dos Estados Unidos não parece disposto a fazer nada quanto a isso
Manifestantes pedem o fechamento da prisão de Guantánamo, um das promessas do presidente dos EUA, Barack Obama |
No seu sexto aniversário, Muslima tinha um desejo: ver o seu “dada”. Naquele dia, Ahmad Tourson, o pai dela, estava tentando dormir. Mas dormir era um luxo na caixa de metal sem janelas na qual ele ficava confinado 22 horas por dia, e às vezes 24 horas. No dia do sexto aniversário de Muslima, Ahmad estava preso na Baía de Guantánamo, em Cuba. Ele também estava lá nos cinco aniversários anteriores da filha.
Porém, pouco após o sexto aniversário dela, parecia que o desejo de Muslima poderia se tornar finalmente realidade. Em junho de 2008, a luz do sol brilhou dentro da câmara de aço na qual Ahmad ficava preso. Após seis anos de batalhas judiciais e condições carcerárias cruéis, as centenas de homens que o poder executivo dos Estados Unidos decidiu encarcerar por tempo indefinido obtiveram o direito de pedir um habeas corpus, questionando a legalidade da detenção. O caso de Ahmad foi avaliado por um juiz federal dos Estados Unidos.
Como consequência, o governo dos Estados Unidos recuou das acusações de que Ahmad seria um “combatente inimigo”, e admitiu que não havia nenhuma base para manter detidos este homem e os seus 16 compatriotas de etnia uigur, todos eles da China. Com a suspensão das acusações, a remediação da situação passou a ser a única questão pendente. Os uigures buscaram a única remediação possível: a liberdade nos Estados Unidos.
No dia da audiência, o juiz federal Ricardo Urbina contestou as afirmações dos principais advogados do então presidente George W. Bush de que o executivo exerceria um poder total. Ele convidou os advogados do presidente – diversas vezes – a explicar quais seriam os riscos de segurança para os Estados Unidos caso os uigures fossem libertados no país. “Vocês tiveram sete anos para estudar essa questão”, advertiu o juiz. Mas o governo dos Estados Unidos não foi capaz de apresentar nenhum exemplo de risco representado pelos uigures.
Às portas da liberdade
O juiz Urbina concluiu que a detenção dos uigures era ilegal. Ao perceber que os homens não poderiam ser enviados de volta à China, país que poderia torturar ou até mesmo executar os membros do grupo étnico minoritário, e que falharam as tentativas diplomáticas junto a quase 100 países para fazer com que estes se dispusessem a receber esses indivíduos por uma questão humanitária, o juiz Urbina ordenou que os 17 detentos fossem libertados nos Estados Unidos. A libertação teria que ocorrer dentro de 72 horas.
A perspectiva de liberdade, anteriormente algo impensável, estava agora ao alcance de Ahmad. Os uigures, cujas faces ficaram enrugadas devido aos anos de detenção por tempo indefinido, imaginaram-se embarcando em um avião para a liberdade. Policiais federais dos Estados Unidos seguiram para Guantánamo a fim de escoltar os homens para um novo lar. Ahmad estava às portas da liberdade.
Mas, 42 horas antes do prazo determinado para que Ahmad fosse libertado, o governo dos Estados Unidos obteve um recurso para postergar a libertação dos uigures até que o caso fosse revisto por um tribunal de alçada mais elevada. O Tribunal Federal de Apelações do Distrito de Colúmbia determinou que os tribunais federais norte-americanos com jurisdição de habeas corpus não poderiam libertar prisioneiros de Guantánamo cuja prisão era declaradamente ilegal. A instituição do habeas corpus foi violada. Segundo o tribunal do Distrito de Colúmbia, a liberdade não tinha nenhum guardião.
Ahmad entrou no seu oitavo ano de detenção por tempo indefinido porque juízes norte-americanos concluíram que não tinham o poder para acabar com essa detenção. E dois presidentes concordaram com isso. Na terra orwelliana de Guantánamo, onde as palavras têm significados diferentes, Ahmad não se encontrava detido, disse Bush; as forças armadas dos Estados Unidos o estavam “abrigando” (dentro de uma cerca de grades envolta por arame farpado) porque ele “escolheu” não retornar à China (um país cujo governo o teria executado com um tiro na cabeça). E o presidente respeitaria essa escolha devido à caridade do poder executivo (já que os Estados Unidos alegaram não ter nenhuma obrigação legal de repatriá-lo para um país que pratica torturas), até que uma nação segura lhes concedesse refúgio (contanto que o presidente de tal nação não morasse na Avenida Pennsylvania). E, assim que assumiu o cargo, o presidente Barack Obama repetiu a mesma história.
Um refúgio não duradouro
No verão norte-americano de 2009, o Departamento de Estado dos Estados Unidos negociou a transferência de Ahmad com a República de Palau, uma ilha isolada e pobre situada no meio do Pacífico Sul. Após vários anos tentando fazer com que Ahmad fosse transferido para outro país, os Estados Unidos descobriram uma ilha remota, a única nação, segundo eles, que lhe ofereceu refúgio (todos os países que haviam cogitado conceder asilo a Ahmad mudaram de ideia quando diplomatas chineses os ameaçaram com a suspensão das relações econômicas. Palau, no entanto, integra um pequeno grupo de países que mantêm relações diplomáticas com Taiwan).
Os governos dos Estados Unidos de Palau admitiram que a ilha remota não se constituía em refúgio duradouro. Segundo eles, a transferência de Ahmad para lá era uma medida provisória, uma forma de possibilitar que ele deixasse Guantánamo, uma solução temporária até que outro país oferecesse a ele um asilo sustentável. Assim, Ahmad aceitou essa oportunidade única de ir embora de Guantánamo, com a esperança de um dia encontrar um refúgio permanente.
Mas essa esperança foi diminuindo. Hoje, dois anos após a sua libertação e dez anos após ter se tornado um preso sob a custódia dos Estados Unidos, Ahmad continua vivendo em um limbo em Palau. Apesar das intensas tentativas dele e do Departamento de Estado dos Estados Unidos, Ahmad não conta com nenhuma perspectiva razoável de uma futura transferência de país. E a ilha remota está longe de ser um paraíso.
Ahmad tem um diploma de uma faculdade técnica da China. Ele tem experiência como técnico de gerenciamento em uma refinaria de petróleo e como dono de restaurante. Ahmad também fala fluentemente inglês. Mas, em Palau, ele não consegue um emprego que lhe pague o suficiente para sobreviver. Segundo as leis de Palau, ele não pode ter acesso às mesmas oportunidades de emprego que estão disponíveis para os cidadãos do país. Além do mais, ele não está coberto pela lei de salário mínimo de Palau, que é de apenas US$ 2.50 por hora. Ahmad não tem como se tornar cidadão; segundo a constituição de Palau, a cidadania só pode ser concedida a indivíduos que sejam descendentes de nativos do arquipélago. E mesmo que Ahmad tivesse acesso a um emprego que lhe pudesse pagar um salário decente, os empregadores de Palau não o contratariam. Muitos dizem que temem perder clientes, outros chamam os uigures de terroristas. Com uma população de apenas 20 mil habitantes, a ilha inteira conhece os uigures. Os ex-prisioneiros não têm como se misturar em meio a uma massa. Eles se destacam de uma forma única, algo que não ocorreria na maioria das outras nações.
Procurando refúgio em Cabul
Mas a situação dele é ainda mais delicada. Anos atrás, Ahmad teve a perna amputada abaixo do joelho. Antes de ser enviado para Guantánamo, ele vivia como refugiado em Cabul. Os uigures são alvos de torturas e de prisões arbitrárias na China e Ahmad diz que foi espancado com cabos elétricos e que a sua mulher sofreu a ameaça de ser submetida a um aborto forçado. Por ter poucos recursos, ele procurou asilo nos países vizinhos, mas a maior parte das nações da Ásia Central tem acordos com a China para a deportação de refugiados uigures.
O Afeganistão, no entanto, não deportava os uigures. Assim, em 2000, Ahmad, juntamente com o filho de dois anos de idade e a mulher grávida, refugiou-se em Cabul, um ano antes de os Estados Unidos e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) terem dado início às operações de combate no Afeganistão. Aviões de carga norte-americanos lançaram panfletos oferecendo recompensas significativas aos moradores locais pela captura de “inimigos” - e Ahmad acabou vendido às forças armadas dos Estados Unidos por US$ 5.000. Ele foi levado para uma prisão afegã onde teve a perna esfacelada por um ataque a bomba. Ao chegar a Guantánamo, Ahmad teve a perna amputada abaixo do joelho. Com pouco mais de 30 anos de idade, ele foi obrigado a usar um andador para se locomover.
Pessoas que sofrem amputações necessitam de tratamentos prostéticos, que geralmente estão disponíveis em vários países. Mas em Palau não existe nenhum tratamento desse tipo. De fato, o sistema de saúde é tão limitado no país que os seus moradores têm que viajar ao exterior para receber tratamento médico especializado ou de emergência. Mas Ahmad não pode deixar Palau – nem mesmo para tratamento médico. Ele não conta com meios para tentar obter documentos de viagem ou permissão para entrar em um outro país. Segundo ortopedistas, sem acesso a essa assistência prostética essencial, Ahmad não poderá ter mobilidade integral e dificilmente conseguirá um emprego. Para ele, a vida na ilha é, e continuará sendo, insustentável.
Ilhada em Palau
Segundo o Manual do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, uma transferência de país como solução duradoura precisa ser acompanhada de perspectivas significativas de integração local, que envolvem mais do que segurança. A integração local inclui direitos legais, econômicos, de saúde e sociais, nenhum dos quais está disponível para Ahmad em Palau. De fato, é exatamente pelo fato de as condições de Palau serem limitadas que a ilha não foi proposta como uma solução duradoura. A transferência de Ahmad para lá deveria ter um caráter temporário.
Ahmad deseja esquecer os anos que passou na prisão em Guantánamo sem nenhuma acusação formal, mas ele não consegue. O tremendo isolamento de Palau, que não conta com nenhuma população de refugiados, faz com que ele se recorde sinistramente de Guantánamo. E algo que ele não consegue esquecer são os 171 homens que continuam detidos em Guantánamo, incluindo cinco compatriotas dele.
O único episódio alegre para Ahmad durante essa década negra ocorreu em 2010, quando ele reuniu-se à sua família. Muslima, que nasceu após a captura de Ahmad, abraçou o seu “dada” pela primeira vez na vida pouco antes de fazer nove anos de idade. Mas a menina de rosto corado, cujo sorriso radiante não foi obscurecido pelas dificuldades, não tem um país. Ela é considerada refugiada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Mas, sem nenhuma perspectiva razoável de obter asilo em outra nação, ela poderá ficar ilhada em Palau pelo resto da vida.
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