Milhares de egípcios tomam a célebre praça Tahir, no Cairo, para marcar um ano da revolta que tirou do poder o ex-presidente egípcio Hosni Mubarak |
Após um ano de convulsão social sem fim e regime militar, o Egito enfrenta uma crise econômica que poderá abalar a sua transição política e se constituir em um desafio decisivo para os islamistas que estão ascendendo ao poder.
Devido às dívidas que se acumulam, ao crescimento econômico pífio e à redução das reservas de moeda estrangeira, os governantes militares e o novo parlamento liderado pelos islamitas deparam-se agora com escolhas difíceis, a começar por uma praticamente inevitável desvalorização ainda maior da moeda do Egito, algo que poderá fazer com que os preços dos alimentos e de outros produtos disparem.
O governo pode em breve ser também obrigado a reformar o vasto sistema de subsídios de energia, que atualmente responde por um quinto dos gastos públicos. No passado, o aumento dos preços dos alimentos e reduções de subsídios já provocaram rebeliões populares neste país.
“A situação é crítica”, afirma Magda Kandil, diretora-executiva do Centro Egípcio de Estudos Econômicos, que classificou alguns dos indicadores recentes de “alarmantes”.
Em um sinal da gravidade da situação, o conselho militar que governa o país mudou de posição na semana passada e retomou as negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre as condições vinculadas a um empréstimo de US$ 3,2 bilhões. Anteriormente os generais haviam rejeitado o mesmo acordo por considerá-lo uma afronta à soberania nacional, mas agora autoridades do governo liderado pelas forças armadas dizem que poderão tentar obter um empréstimo ainda maior.
Além do mais, a Irmandade Muçulmana, o grupo islamita que passou um grande período na ilegalidade, e que agora controla a metade das cadeiras do novo parlamento, também deu a entender que aceita o auxílio financeiro na sua reunião separada com os representantes do FMI. A posição da Irmandade Muçulmana se constitui em uma reviravolta ainda mais surpreendente, após oito décadas de denúncias do colonialismo ocidental e da dependência árabe.
Os líderes da Irmandade Muçulmana reconheceram prontamente que conduzir o Egito através da crise representará um teste da capacidade do grupo para governar. Enquanto isso, os ativistas que estão exigindo que os líderes militares do Egito abandonem o poder dizem que os problemas econômicos se transformaram em um grande obstáculo para a causa deles já que muitos egípcios desejam um retorno à estabilidade.
Outros observam com desânimo que as frustrações que contribuíram para alimentar os protestos que derrubaram o presidente Hosni Mubarak há um ano só se tornaram mais intensas, especialmente para a legião de jovens desempregados ou subempregados.
Um dos setores nos quais os problemas econômicos são mais evidentes é o de casamentos, que no Egito são um dispendioso rito de passagem, marcando o ingresso na vida adulta, e que geram uma renda similar à ajuda financeira que os Estados Unidos concedem ao país.
Em um bairro do Cairo que está sendo bastante atingido pela crise, firmas organizadoras de casamentos dizem que os casais reduziram as despesas, que antes da revolução poderiam chegar a US$ 300, para apenas cerca de US$ 100. As joalherias informam que as quantias gastas pelos noivos com presentes tradicionais feitos em ouro para as suas noivas diminuíram bastante, e os promotores de festas atualmente só realizam dois ou três recepções de casamento por mês, quando a média antes da revolução era de dez.
“Depois da revolução ninguém está mais se casando”, queixa-se Amr el-Khodary, 37, que foi obrigado a fechar as portas da sua locadora de automóveis para casamentos.
Ibrahim Mohamed, um motorista de táxi de 26 anos de idade, que tem diploma universitário, é um exemplo típico da situação atual do Egito. Ele conta que a queda drástica do número de clientes o impediu de juntar os cerca de US$ 7.000 para um apartamento, mobília, uma pequena festa de casamento e os presentes tradicionais na forma de joias. Ele diz que sem isso não dá para se casar.
“Se não fosse pela revolução, eu poderia ter me casado”, lamenta Mohamed.
Os motivos para isso vêm se acumulando há um ano: uma interrupção dos investimentos estrangeiros, um declínio de 30% das visitas turísticas e a estagnação do crescimento econômico. O índice oficial de desemprego é de 12%, mas entre os jovens o índice real chega a pelo menos o dobro desse número.
Os governantes militares também contribuíram para os problemas, ao administrarem o país durante um período de crise financeira. A inflação disparou para índices de dois dígitos, e a taxa de câmbio da moeda nacional, a libra egípcia, se encontra sob forte pressão. As reservas de moeda estrangeira despencaram, já que o governo está gastando cerca de US$ 2 bilhões por mês em uma batalha perdida para estimular a libra egípcia. Essas reservas caíram de cerca de US$ 36 bilhões antes da revolta para os atuais US$ 10 bilhões.
Os governantes militares contribuíram para agravar os problemas ao desprezarem uma oferta de empréstimo por parte do FMI em junho do ano passado, quando isso poderia ter proporcionado ao país um montante crucial de moeda estrangeira e um atestado de aprovação financeira que poderia ter contribuído para acalmar os investidores estrangeiros e os fornecedores de auxílio estrangeiro.
No entanto, o conselho militar tentou sustentar os déficits governamentais crescentes com empréstimos internos, enquanto o empresariado enfrentava enormes obstáculos para obter os empréstimos dos quais precisava para expandir e revitalizar a economia.
Agora o governo militar parece ter esgotado também as suas fontes domésticas. Na última segunda-feira, o governo só conseguiu vender aos bancos egípcios cerca de um terço de uma planejada oferta de títulos no valor de US$ 580 milhões, ainda que as operações tivessem sido realizadas a uma nova taxa de juro inédita de quase 16% (após aplicar-se um ajuste para uma taxa de inflação de 10% a 12%, isso é o equivalente a uma taxa de juros de 4% a 6%).
“Os empréstimos nos mercados internos se constituem literalmente em uma política de falência”, critica Ragui Assaad, um economista egípcio da Universidade de Minnesota, que se encontra atualmente no Cairo.
Segundo ele, mesmo com as novas fontes de moeda estrangeira do FMI, o Egito será em breve obrigado a aceitar uma queda ainda maior da taxa de câmbio – que poderá ser gradual, se o governo tiver sorte.
“É claro que isso será doloroso”, afirma Assaad. “Mas não existe outra opção, a não ser desvalorizar a moeda”.
O medo de uma inflação descontrolada já é intenso. “Ninguém coloca o dinheiro que tem no banco por temer que mais tarde ele não valha nada”, diz Hamdy Shaaban, um mecânico de 40 anos de idade. “Por que é que eu colocaria o meu dinheiro no banco? Eu não sei o que virá pela frente”.
Mas a outra solução que agrada a muitos economistas – reformular as políticas econômicas que fizeram com que o Egito gastasse mais de US$ 15 bilhões por ano com subsídios energéticos – parece ser por ora politicamente impossível. Ela se constitui em um sistema regressivo que beneficia mais aqueles que dirigem carros de luxo e moram em mansões com ar condicionado. Outros países com sistema similares o substituíram com sucesso por subsídios mais voltados para os necessitados.
Mas a maioria dos egípcios considera os subsídios um direito adquirido, e poucos acreditam que o governo de transição tenha a credibilidade ou a legitimidade necessária para promover uma grande mudança. “Alguém precisa ser capaz de convencer as pessoas de que elas serão indenizadas”, diz Assaad.
Mesmo assim, muitos economistas alegam que o Egito é capaz de evitar um potencial colapso. Eles observam que o governo militar anunciou recentemente planos para cortar quase US$ 4 bilhões do déficit de mais de US$ 30 bilhões, ou mais de 10% do produto interno bruto. Entre outras coisas, ele começou a cortar os subsídios à energia para a indústria pesada, talvez como preparativo para as mudanças que o FMI poderá exigir.
Além disso, Ahmed Galal, diretor-gerente do Fórum de Pesquisas Econômicas, com sede no Cairo, diz que os economistas estão se mostrando cada vez mais otimistas em relação às políticas econômicas da Irmandade Muçulmana. O grupo deixou claro que apoia a liberdade de mercado, e ele já começou a falar sobre a urgência de uma reforma das políticas de subsídios. Os parlamentares da Irmandade Muçulmana começaram a redigir propostas para lidar com o problema quando eram membros da minoria oposicionista durante o governo de Mubarak.
“Esses indivíduos desejam ter sucesso”, afirma Galal, referindo-se aos parlamentares da Irmandade Muçulmana. “Eles estão apresentando um discurso que é de fato bastante moderado, civilizado e inclusivo. Além disso, eles estão se espelhando em países como a Turquia, e não no Irã ou no Afeganistão”.
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