Alexandr Litvinenko |
Aquela entrevista e o brutal assassinato de Litvinenko, envenenado com o isótopo nuclear polônio 210, que alguém despejou em sua xícara de chá, acabaram se transformando no corpo central do documentário "Rebelião: O caso Litvinenko", protagonizado por Nekrasov e dirigido por ele mesmo e Olga Konskaya.
Nekrasov havia combinado com este correspondente de conversar em Londres sobre seu documentário, aproveitando que viajaria ao Reino Unido para participar de um festival de cinema. Nossa entrevista teve de se realizar, finalmente, por telefone, porque Nekrasov foi detido em 31 de outubro passado, quando participava de uma manifestação em sua cidade, São Petersburgo, e a polícia apreendeu seu passaporte - talvez um indício de que as denúncias que o cineasta reflete no filme têm base. Nessas manifestações, que se realizam desde maio de 2009 todos os dias 31 dos meses que têm esse número de dias, querem reivindicar o artigo 31 da Constituição, que na teoria garante o direito de reunião.
Como Litvinenko, e como a também assassinada jornalista Anna Politkovskaya, Nekrasov começou a questionar a situação política na Rússia ao perceber os abusos cometidos no combate ao terrorismo e ao secessionismo da Chechênia. Sobre isso, e em particular sobre um polêmico atentado contra apartamentos de Moscou em 1999, que Litvinenko e muitos outros afirmaram que na realidade foram obra do serviço secreto russo, tratava seu primeiro documentário de sucesso, "Incredulidade".
"Isso foi algo como o nosso 11 de Setembro (atentados terroristas nos EUA em 2001). Os chechenos sempre reivindicavam seus atentados com certa arrogância, mas nunca aceitaram a responsabilidade por aqueles atentados. Eu investiguei tudo, fiz um filme que foi muito popular na Rússia. E isso foi em 2004. Então Putin ainda estava no governo, mas era possível vender o filme legalmente tomando certo cuidado. Com o de Litvinenko foi impossível. As pessoas têm medo. Ninguém quis distribuí-lo. Têm medo até de levar o DVD. As coisas estão piores. Por um lado têm a aparência liberal, mas na realidade as coisas em muitos aspectos estão piores na Rússia", afirma.
Quando preparava "Rebelião", Nekrasov queria falar "sobre personagens carismáticos que escolheram não ser conformistas, não cooperar com o regime, mas que não são políticos profissionais", como Politkovskaya e Litvinenko. "O que mais me assombrava nele é que era muito normal, um russo comum que esteve trabalhando para a KGB. Para ele, a KGB não era algo sinistro como a viam os ocidentais ou os dissidentes russos. Ao contrário, parecia-lhe que era arriscar a vida para servir a seu país. E através de sua própria experiência, não através de livros escritos por outros, viu que o sistema estava podre, que seus superiores não eram grandes heróis, mas manipuladores e pessoas que utilizavam a força do serviço, às vezes de forma muito primitiva, para ameaçar as pessoas em seus negócios e lhes tirar dinheiro. Ele não podia acreditar. E viu que essa corrupção levava a um regime autoritário porque não havia uma verdadeira divisão entre a economia e a política", explica.
"Ele viu como o serviço de segurança, a organização mais secreta, com um grande poder de intimidação, era a raiz da maioria dos problemas da Rússia. E infelizmente isso não mudou. Continuou assim durante os anos 90 e depois nos tempos de Putin. E com Politkovskaya aconteceu o mesmo, à sua maneira. Ela poderia ter uma vida muito cômoda, mas por uma questão de consciência e de honestidade foi descobrindo gradualmente, passo a passo, que a Rússia era uma máquina de matar brutal e indiscriminada nessa região supostamente selvagem do Cáucaso. Interessava-me a transformação de pessoas que simplesmente não conseguem mentir."
Na Rússia, o assassinato de Litvinenko nunca teve o impacto que teve na Europa, "mas as pessoas lembram disso porque muito poucas duvidam de que ele tenha sido assassinado 'por nós', como se costuma dizer, por russos", explica Nekrasov. "O trágico é que as pessoas pensam que ele o merecia. Mas essa é a grande diferença: em outros casos as pessoas dizem 'oh, bem, mas não fomos nós', enquanto neste caso dizem 'fomos nós'. Essa é a diferença. E por isso ele sempre será lembrado. E quando a Rússia for realmente um país livre tudo isso voltará. Essa morte nunca será esquecida porque é muito simbólica. E por vocês, ocidentais, pelos que o governo nega. Oficialmente dizem que não fizeram isso. Mas na Rússia quase não negam. Há um entendimento tácito de que Litvinenko era um traidor, e que é isso que acontece com os traidores", conclui com pesar.
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