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quarta-feira, 5 de junho de 2013

O soldado Xie Weijin contra Franco

Não havia mais tempo, tinha câncer, e por isso puxou a cortina que separava sua cama das dos outros pacientes e começou, apesar das ameaças de enfermeiras e médicos, a organizar febrilmente duas grandes caixas: papéis, jornais, fotos com outros soldados, livros... Dia e noite.

"São mais valiosas que a própria vida", disse Xie Weijin a sua filha quando as entregou a ela, como herança particular, em um dia de 1976 em Pequim. Era tudo o que conservou de sua passagem como combatente na Guerra Civil espanhola. Um material que havia carregado durante 38 anos por dois continentes, sobrevivendo ao conflito, a dois campos de internamento na França, à guerra chinesa contra o Japão, à revolução e à repressão da Revolução Cultural...

Xie Weijin é uma bela e triste metáfora. Desde 1965, quando o governo comunista recomendou que se aposentasse para curar-se de seu "velho revisionismo", transformou em um álbum de fotos gigante seu pequeno quarto na remota Nanchong, a 500 quilômetros da capital, onde se refugiou com as provas de uma aventura esquecida pela história: a presença chinesa nas Brigadas Internacionais.

"Se não fosse termos pela frente o inimigo japonês, iríamos com toda certeza integrar-nos a suas tropas", escreveu Mao Tsetung em uma carta aberta à população espanhola em 15 de maio de 1937... Mas alguns acabaram indo. Hwei-Ru Tsou e Len Y. Tsou, um casal taiwanês residente nos EUA, encontraram por acaso a foto de um soldado oriental em um livro sobre os 50 anos das Brigadas Internacionais (BI). Ficaram surpresos. Com a perseverança de doutores em química que são, e depois de dez anos pesquisando em três continentes, localizaram uma centena de chineses na guerra espanhola. O resultado é "Los Brigadistas Chinos en la Guerra Civil" (ed. Catarata), a primeira grande monografia sobre o tema, que o acaso quis que fosse publicada simultaneamente na China e na Espanha.

Mao tinha razão, em parte. Dentre os localizados, só Chen Agen vinha diretamente da China. Explica-se: era perseguido pelo Kuomintang (em feroz disputa com os comunistas) por ter criado um sindicato. No navio que o levou à Europa, um cozinheiro vietnamita lhe falou tanto sobre a nobre luta antifascista na Espanha que o idealista Chang foi para Astúrias depois de desembarcar na Galícia. Caiu prisioneiro em 1937 e, entre presídios e trabalhos forçados, só recuperou a liberdade em 1942, em Madri, onde se perde seu rastro.

Só dois chineses já estavam na Espanha quando eclodiu o conflito. Um deles, Zhang Zhangguan, dedicava-se desde 1926 ao comércio ambulante em Barcelona. O outro, Zhang Shusheng, como dominava o idioma, foi incluído em uma tropa plenamente espanhola, a 195ª brigada da 50ª divisão. Os demais foram chegando dos EUA e de toda a Europa, em especial da França. Eram "huagong", operários que tinham sido recrutados pelas potências ocidentais na China para trabalhar depois da Primeira Guerra Mundial, na maioria militantes comunistas, como muitos dos quase 35 mil membros de 53 países que formaram as BI, nascidas por uma decisão política da União Soviética e da Internacional Comunista.

O calado e misterioso Bi Daowen foi outro exemplo do compromisso antifascista dos orientais. Médico indonésio de pais chineses, que mantinha contatos com grupos pró-independência de seu país já na Holanda, onde estudou, chegou à Espanha em setembro de 1937, enviado pela Internacional Comunista, para a qual trabalhou como ligação até os 60 anos, aparecendo e desaparecendo na China, Rússia, Checoslováquia e sua Indonésia natal, onde o destino acabou por cruzá-lo com Suharto.

Outra prova de forte convicção foi a decisão dos chineses de ir lutar na Espanha e não em seu país, invadido pelos japoneses. "Identificaram a agressão fascista na Espanha com a que ocorria na China; além disso, assim tinham suas famílias mais perto", resume as causas da escolha Laureano Ramírez, professor na Universidade Autônoma de Barcelona, que traduziu parte do volume e ajudou a encontrar um editor para ele.

Duvidavam e sofriam, como mostra sua correspondência. Combinam que iriam lutar em casa quando acabassem na Espanha. Mas o Partido Comunista Chinês tinha outros interesses, consciente do valor propagandístico de sua presença no conflito espanhol. "Mao Tsetung, Wang Ming e outros dirigentes de nosso partido me escreveram expressamente, pedindo-me para lhes transmitir que continuem incorporados à frente, combatendo contra o inimigo", diz uma carta que Weijin, já líder do pequeno grupo por ter a patente mais alta entre eles (era comissário político), transmitiu a seus companheiros.

Ramírez também atribui ao alto idealismo internacionalista que a maior parte dos combatentes chineses tivesse idade avançada. "Muitos oscilavam entre os 44 e 50 anos, e o mais jovem tinha 24", contabiliza. O resultado prático, apesar de haver rastros de seu sangue na defesa de Madri ou na batalha do Ebro, é que muitos foram vetados na frente de combate. Assim, um engenheiro de minas formado em Berkeley como Zhang Ji, 37 anos, foi caminhoneiro na Brigada Lincoln. Zhang Ruishu e Liu Xiaobo Jingtian (sete anos como soldado na China) queriam se incorporar à companhia de metralhadoras, mas, já passados dos 44 anos, serviram como enfermeiros. Ruishu, corajoso como poucos, ferido três vezes por recolher companheiros na primeira linha, acabou sendo tão querido que foi capa do semanário "Estampa" em setembro de 1937.

"Ver o apoio de pessoas que vinham de tão longe era uma injeção de moral para os republicanos", argumenta Ramírez. Se não gozaram de mais popularidade talvez seja porque não acabaram formando um destacamento próprio, como queriam, e demonstra que Mao e Zhou Enlai lhes enviassem uma insígnia vermelha de seda para distingui-los, hoje no Museu da Revolução em Pequim.

Os brigadistas chineses perderam duas vezes. Quando as BI se retiraram, a maior parte viveu um calvário: muitos foram parar (até oito meses) em campos de internamento franceses (Argelès e Gurs), sem ajuda (ou tardia e desconfiada) de seu governo. Sem demora, combateram nessa China que desde 1949, com a vitória de Mao e depois da Revolução Cultural, assediou os que haviam tido contato com estrangeiros. O herói Ruishu, que rejeitava as licenças para não abandonar a frente, acabou alcoolizado diante da deriva comunista. Weijin, ferido perto de Belchite e que chegou a uma alta patente nas Forças Aéreas, viu-se com 60 anos confinado em Nanchong.

Não parece que houve representação chinesa no emotivo e grandioso (temia-se até um ataque aéreo franquista) desfile de despedida, em 28 de outubro de 1938, com que Barcelona brindou as BI, e que Víctor Hurtado esmiúça em um de seus 50 gráficos espetaculares no recente "Las Brigadas Internacionales" (Dau). Poderiam ter usado a insígnia de Mao ou a bandeira vermelha que lhes enviaram seus compatriotas do jornal "Jiuguo Shibao", editado em Paris, e que tinha bordada uma frase em que os brigadistas chineses acreditaram de maneira cega e generosa: "O mundo é nosso lar".

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