Barack Obama |
Há épocas de planícies e vales plácidos e épocas acidentadas e abruptas, cortadas por abismos infranqueáveis. Os mais difíceis de superar costumam ser fruto do esforço humano, escavados voluntariamente, graças à obstinação e às vezes à intolerância. A política nos EUA tem a virtude poética das boas metáforas. Aí está o "fiscal cliff", o abismo fiscal, para demonstrar um e outro: a criação artificial de um obstáculo que parece insuperável e a capacidade sintética de resumi-lo em uma expressão redonda.
O abismo fiscal se abrirá sob os pés do governo dos EUA no primeiro dia de 2013, dentro de 11 dias, caso não tenha ocorrido previamente um acordo orçamentário entre a Presidência e o Congresso, no qual é preciso conciliar a defesa do gasto social pelos democratas com a maldição contra os impostos dos republicanos. Ocorrerá por desígnio do próprio Congresso, que aprovou cortes lineares e automáticos do gasto público para essa data, simultâneos à expiração dos cortes de impostos decretados por Bush em 2001 e prorrogados por Obama. Tudo isso se não houver antes o já mencionado acordo orçamentário entre a Casa Branca e o Congresso que reduza o déficit público pela metade.
No estado atual das trepidantes negociações, encabeçadas por Barack Obama e pelo presidente da Câmara dos Deputados, o republicano John Boehner, este último já concordou em incrementar a pressão fiscal sobre os mais ricos, concretamente em quem tiver renda anual superior a US$ 1 milhão, longe do limite de 250 mil que propunha o presidente e também de sua última oferta de 400 mil.
O abismo fiscal, com a ameaça que o acompanha de uma queda da economia dos EUA e atrás dela a do resto do mundo, não é o único que se abre sob os pés dos americanos, para infelicidade dos que continuam caindo neles. As crianças e professoras do colégio Sandy Hook de Newtown são as últimas vítimas engolidas pelo abismo escavado pela obsessiva identificação entre a liberdade dos cidadãos e a posse de armas de fogo, derivada de uma leitura da Constituição que vai além inclusive do que diz literalmente sua Segunda Emenda.
Por trás de todo abismo, se encontram escondidos grupos de interesses nem sempre confessáveis. O abismo se franqueia no momento em que os multimilionários deixam de aparecer como uma delicada espécie da qual é preciso cuidar como se estivesse em perigo de extinção, e não superprotegida como se encontra; ou quando a sacrossanta liberdade de portar armas para se defender já não se traduz no direito a acumular arsenais e passear pelos campus com subfuzis de assalto escondidos sob a gabardine. Há um momento em que a pressão dos grupos especializados em exercê-la deixa de ser efetiva, e então se pode reverter de uma vez toda a sua influência.
O melhor exemplo na história imediata é a derrota dos amigos de Taiwan diante das necessidades de abertura estratégica para a China de Mao, que levou em 1971 e muito rapidamente à expulsão da ilha nacionalista do Conselho de Segurança e da ONU para deixar o lugar livre para a República Popular da China. O lobby taiwanês estava muito identificado com os republicanos e os frios guerreiros anticomunistas, mas foi exatamente seu paladino, Richard Nixon, quem cometeu a sacrílega inversão de posições. Algo semelhante se poderia dizer a respeito da resistência da indústria do tabaco às proibições de fumar em espaços públicos, antes que começassem a chover sobre ela processos milionários que a puseram contra as cordas.
Agora estamos prestes a presenciar como os republicanos relativizam ou deixam de obedecer a Grove Norquist, o patrono do lobby anti-impostos e inventor de um juramento que todos os republicanos eleitos assinaram, pelo qual se comprometem a rejeitar com seu voto qualquer aumento da fiscalidade, sem importar a quem afete. O mesmo pode acontecer com a Associação Nacional do Rifle, poderosíssimo lobby das armas, agora levemente abrandado pela tragédia de Newtown e, ao que parece, disposto a aceitar a limitação das armas mais perigosas.
Algum dia ocorrerá algo parecido com os colonos que ocupam os territórios palestinos da Cisjordânia, atualmente muito apoiados no Partido Republicano, no eleitorado evangélico dos Estados do sul e, destacadamente, no Aipac (Comitê de Assuntos Públicos Americano-Israelenses), o poderoso lobby conservador israelense. Em todos esses casos, se dá uma fabricação ou invenção semelhante de uma tradição política, para justificar a manutenção de um "status quo" muito mais recente. Nem na época mais selvagem do oeste americano havia a permissividade com as armas que se instalou agora, nem a aversão aos impostos é inerente à alma americana, nem o relaxamento de qualquer exigência aos governos de Israel sobre os direitos dos palestinos faz parte de um DNA das relações internacionais que remonta aos pais fundadores.
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