Aisha Gdour, uma psicóloga de escola, contrabandeou balas em sua bolsa de couro marrom. Fatima Bredan, uma cabeleireira, cuidou dos rebeldes feridos. Hweida Shibadi, uma advogada de família, ajudou a encontrar alvos para os ataques aéreos da Otan. E Amal Bashir, uma professora de arte, usou código secreto para receber os pedidos de munição: balas de pequeno calibre eram chamadas de “alfinetes”, balas de calibre maior eram chamadas de “pregos”. Uma “garrafa de leite” significava uma Kalashnikov.
Na improvável vitória dos rebeldes líbios sobre Muamar Gaddafi, as mulheres fizeram bem mais do que apenas enviar filhos e maridos para o front. Elas escondiam os combatentes e preparavam suas refeições. Elas costuravam bandeiras, coletavam dinheiro, contatavam jornalistas. Elas contrabandeavam armas e, em alguns poucos casos, as usavam. O levante de seis meses contra Gaddafi levou as mulheres nesta sociedade tradicional a papéis que nunca imaginaram. E agora, apesar de já estarem enfrentando obstáculos para preservar sua influência, muitas mulheres não querem voltar atrás.
“Talvez eu possa ser a nova presidente ou prefeita”, disse Gdour, 44 anos, na tarde de segunda-feira, enquanto saboreava a vitória com outras integrantes de sua célula rebelde.
Elas são três mulheres que, sob o antigo regime, dirigiam uma caridade clandestina, que transformaram em um canal para armas para os rebeldes.
Mas na nova Líbia que está surgindo, as mulheres são até o momento quase invisíveis na liderança. O Conselho Nacional de Transição da Líbia, composto por 45 membros, inclui apenas uma mulher. O quartel-general do conselho não possui banheiro feminino.
No vizinho Egito, as mulheres tiveram dificuldade para preservar as conquistas de sua própria revolução. E ao seu modo extremamente excêntrico, Gaddafi tinha uma visão bem mais ampla do papel feminino apropriado do que algumas famílias líbias conservadoras.
Mesmo assim, do mesmo modo que Rosie, a Rebitadeira, mudou irreversivelmente as vidas das mulheres americanas depois da Segunda Guerra Mundial, as mulheres líbias dizem que seus esforços de guerra estabeleceram fatos em solo que não podem ser facilmente desfeitos. Mulheres de muitos setores estão transformando as pequenas células de apoio aos rebeldes em redes maiores, pensando no que podem fazer a seguir para ajudar a construir uma Líbia pós-Gaddafi.
Os homens também estão respondendo, com alguns que antes faziam objeção que suas noivas e irmãs trabalhassem até tarde ou participassem dos protestos, agora começando a apoiar essas atividades. O temor de coerção sexual por parte dos capangas de Gaddafi, antes uma grande ameaça a mulheres proeminentes, desapareceu. Talvez mais importante, as mulheres daqui participaram em números tão grandes que ajudaram a estabelecer a legitimidade da revolução, demonstrando que o apoio ao levante tinha penetrado profundamente na sociedade líbia.
“As pessoas sabem qual foi o papel das mulheres nesta revolução, mesmo que não tenha aparecido na mídia”, disse Nabila Abdelrahman Abu Ras, 40 anos, que ajudou a organizar a primeira manifestação dos advogados em Trípoli em fevereiro e depois, no final de sua gravidez, imprimiu panfletos revolucionários que as mulheres espalhavam de carros em velocidade. “Se eles não nos derem nossos direitos, nós temos o direito de sair e exigi-los.”
As mulheres ajudaram a iniciar a revolução na Líbia.
Em 15 de fevereiro, as parentes dos presos mortos no massacre no presídio Abu Salim realizaram um protesto em Benghazi. Advogadas proeminentes se juntaram a elas e, em dois dias, as forças de Gaddafi atacaram a multidão cada vez maior com metralhadoras. Assistindo a audácia de suas colegas pela televisão por satélite, Shibadi, a advogada de família, ficou empolgada.
“Eu fiquei com inveja”, ela disse.
Shibadi, 40 anos, ajudou a organizar 100 colegas, incluindo 20 mulheres, para protestar em Trípoli. Soldados os cercaram, mas a multidão inchou mesmo assim. Logo, ela faria ainda mais.
Poucas revolucionárias se viam lutando pelos direitos da mulher. Mas olhando para trás, muitas mulheres líbias, com educação suficiente para sonhar alto, disseram que eram impedidas pela ditadura e pela tradição. Quando veio a revolução, elas estavam prontas para agir.
Gaddafi se considerava um campeão das mulheres. Em seu “O Livro Verde”, cujos ensinamentos ele insistia que os líbios estudassem, ele dedicou páginas à santidade da amamentação e da domesticidade feminina. Ele se apresentava como um baluarte contra o extremismo religioso e impôs uma lei exigindo que os homens buscassem a permissão da primeira esposa antes de se casarem com uma segunda.
Mas muitas mulheres líbias viam sua defesa como sendo superficial. As mulheres, como a maioria dos cidadãos, não tinham voz no governo. Aquelas que ele promovia, como suas guarda-costas, eram vistas como capangas, objetos sexuais ou ambos.
As oportunidades de educação para as pessoas bem relacionadas faziam pouca diferença para as famílias conservadoras e rurais, que mantinham as mulheres longe da esfera pública. Mesmo em Trípoli, onde muitas mulheres trabalham, dirigem carros e se misturam aos homens, levando vidas menos limitadas do que muitas mulheres árabes, a independência feminina era frágil. Bredan, a cabeleireira, perdeu sua chance de estudar medicina por ridicularizar “O Livro Verde”.
Bashir, a professora de arte, que ri ao lembrar de seus dias como traficante de armas, queria desenvolver uma carreira como artista. Mas o patrocinador de sua primeira exposição de desenhos, uma pessoa do governo, exigiu sexo. Ela cancelou a exposição, escondeu os desenhos e se concentrou na criação de seus filhos.
“Eu esqueci tudo a respeito do que eu sonhava”, disse Bashir, 40 anos.
Mas ela encontrou outro escape, um que provou ser valioso durante a revolução. Ela dirigia uma caridade clandestina. Desde 2005, Bashir e Gdour, a psicóloga de sua escola, levantavam secretamente US$ 5 mil por mês para famílias pobres. Quatro ou cinco famílias por dia procuravam Gdour, a filha não casada de um imã, em busca de dinheiro e roupas.
Por toda a cidade, a dra. Rabia Gajun, que elas não conheciam, mas que conheceram durante a revolução, também levantavam dinheiro secretamente, para a construção de uma clínica e oferecer atendimento gratuito.
Quando seus parentes do sexo masculino deixaram Trípoli para lutar, as caridades das mulheres passaram a ter uma nova missão. Gajun roubou medicamentos e uma impressora para os rebeldes. Um vizinho de Gdour, que era combatente, disse para ela que os rebeldes fora da cidade precisavam de munição. Então ela comprou balas de um conhecido nas forças armadas de Gaddafi e as entregou em sua bolsa.
Gdour ia de carro com seu vizinho para entregar rifles escondidos sob o assento do carro. Outra amiga transportava dinheiro para os rebeldes dentro da fralda de seu bebê.
Enquanto Trípoli se armava para um possível levante, Bashir recebia pedidos de armas –que ela chamava de “papel de cera” e “carne” –de um grupo atrás do outro. O informante de Gdour as entregava em seu veículo militar.
Ao mesmo tempo, Shibadi, a advogada que se achava emotiva demais para ser juíza e que foi proibida pela família de estudar inglês no exterior, estava ajudando a determinar os alvos dos ataques aéreos. Ela reunia informação sobre armas e localização das tropas junto a amigos e parentes das forças de segurança e repassava a informação para uma amiga cujo primo, um combatente, a repassava para os líderes rebeldes que, como ela foi informada, a repassavam para a Otan.
Duas vezes, uma amiga que morava em um apartamento próximo do aeroporto viu soldados transportando armas pesadas. Duas vezes Shibadi informou e as bombas da Otan caíram logo em seguida. Ela não sabe ao certo se foi por causa dela, mas a possibilidade era empolgante.
Quando os combates chegaram a Trípoli, as revolucionárias convergiram para o Hospital Matiga, abandonado pelos médicos e enfermeiros pró-Gaddafi. Foi quando muitas conheceram umas às outras.
Bredan, finalmente vestindo jaleco e tratando pacientes, mal saiu do hospital desde então.
“Agora, todo mundo me chama de doutora”, ela disse na semana passada com um sorrido travesso.
No fim do corredor, Fawzia al Dali, 51 anos, estava preparando o almoço. Ela deixou seus sobrinhos montarem armas em sua casa, que as autoridades saquearam.
“Por que corri o risco?” ela disse. “Por Deus, para saborear a liberdade, para nossa terra, pelo futuro.”
As mulheres líbias têm grandes planos e enfrentam grandes obstáculos. Mas na semana passada, Gdour, Gajum e outras se reuniram para planejar a continuidade da ação.
Gajun quer rastrear os detidos desaparecidos. Gdour quer concorrer a algum cargo eletivo. Naima Badri, uma de suas parceiras de caridade, organizou uma conferência na câmara dos vereadores de Trípoli. Todas estão trabalhando juntas em uma feira de caridade.
“Nós nunca mais deixaremos alguém nos controlar”, disse Shibadi.
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