Na próxima sexta-feira (15/10), o Museu de História Alemã inaugurará a primeira exposição abrangente da Alemanha pós-guerra sobre Adolf Hitler. Os curadores se empenharam em evitar que a exposição soasse como uma homenagem ao Führer – mas mesmo assim eles estão preocupados com a possibilidade de que a mostra atraia neonazistas e manifestantes furiosos.
O retrato é bastante pretensioso – uma pintura a óleo de 156 por 120 centímetros. Ela mostra Adolf Hitler da forma que os nazistas e os artistas favoritos do ditador mais gostavam de vê-lo – posando como o líder visionário e tendo ao fundo uma paisagem alemã imaginária.
“Nós poderíamos ter contado com esse quadro no nosso acervo”, afirma Hans-Ulrich Thamer. O exército dos Estados Unidos, que ficou com o quadro desde 1939, certamente concordaria em emprestar a pintura. Mas Thamer, um curador de arte do Museu Histórico Alemão (em alemão, Deutsches Historisches Museum, ou DHM), não a quis. O motivo para isso, ao que parece, foi a ideia de que os alemães não deveriam ter a oportunidade de ficarem fascinados uma segunda vez por esse tipo de arte monumental do Terceiro Reich patrocinada pelo Estado. Thamer prefere exibir reproduções menores do Führer. “Isso reduz o impacto dele”, argumenta o curador.
Uma exposição abrangente sobre o ditador será inaugurada nesta sexta-feira no Museu de História Alemã, em Berlim, sendo a primeira na história da Alemanha pós-guerra a focar-se exclusivamente na vida de Hitler. A exibição não estará isenta de riscos: os organizadores temem que a exposição possa receber elogios indesejados de extremistas de direita – e protestos furiosos do resto do país. De fato, devido à desconfiança em relação àqueles que visitarão o museu, a exposição omitirá tudo aquilo que possa glorificar Hitler como um herói. “Nós não podemos proporcionar nenhuma oportunidade para que alguém se identifique com ele”, tem sido o lema de Thamer, que organizou a exposição.
É verdade que já houve diversas exposições na Alemanha sobre o Terceiro Reich, cobrindo diversos tópicos, como o Holocausto, crimes cometidos pelas forças armadas alemãs, o sistema judicial nazista, a medicina no Terceiro Reich, trabalhos forçados, campos de concentração e outros horrores. Até o momento, porém, os diretores de museus e políticos responsáveis por questões culturais tinham evitado abordar diretamente a imagem do homem que presidiu tudo isso.
Colapso nervoso e motivo de risadas
A exibição ocorre após anos durante os quais a imagem pública de Hitler mudou drasticamente. Recentemente, ele foi retratado no filme “A Queda: As Últimas Horas de Hitler” (“Der Untergang”, Alemanha/Itália/Áustria, 2004) como um indivíduo que sofreu um colapso nervoso nos últimos dias passados no seu bunker em Berlim, e, a seguir, como motivo de risadas pelo comediante alemão Helge Schneider, em “Mein Führer”. Hitler está até no Madame Tussauds, em Berlim.
Cada novo retrato realista de Hitler tem sido acompanhado de um debate a respeito da sensatez, por exemplo, de se colocar um Hitler de cera como atração turística ao lado de um outro modelo de Heidi Klum, em um museu de cera. Mas tais discussões tendem a não durar muito (para não falar do incidente no qual a figura em cera de Hitler foi decapitada por um manifestante. Depois disso o modelo foi reparado pelo museu e agora é exibido com a proteção de um vidro a prova de balas).
No entanto, há vários tabus nos quais os curadores do museu não ousaram tocar, a começar pelo título da exposição. A ideia de chamar a exibição simplesmente de “Hitler” foi rapidamente descartada por um comitê de especialistas e historiadores proeminentes em 2004, quando o museu anunciou pela primeira vez a proposta. Tanto para o historiador conservador Michael Stürmer quanto para os seus colegas mais à esquerda, como Reinhard Rürup, tal nome não poderia ser permitido.
Acima de tudo, os organizadores desejavam evitar dar nova vida aos velhos argumentos do período pós-guerra segundo os quais Hitler teria sido o sedutor maligno de uma população desinformada e inocente. No final, o título dessa exposição polêmica acabou sendo “Hitler e os Alemães: Nação e Crime”.
Grande cautela
Atualmente, é claro, ninguém duvida mais de que Hitler representou o ponto de vista da grande maioria dos alemães, ou o Volksgemeinschaft, pelo menos até 1941, e de que os alemães enxergavam a si próprios no seu Führer. Thamer, que leciona história na Universidade de Münster, diz, “o nosso retrato da sociedade alemã fica cada vez mais sombrio”, em referência ao estágio atual das pesquisas históricas.
Mesmo assim, uma exposição feita no centro da ex-capital nazista segue regras diferentes daquelas que norteiam o discurso acadêmico, e os curadores exercitaram grande cautela ao escolherem as peças para a exibição. Muitos dos uniformes e outros objetos pessoais de Hitler foram preservado, e encontram-se guardados em Moscou, mas não existe nenhum plano no sentido de que eles sejam exibidos. “Utilizar relíquias como essas seria ultrapassar um limite a partir do qual estaríamos prestando homenagem a um herói”, afirma Thamer. A intenção é sempre criar uma distância critica entre o visitante e o maior criminoso do século 20.
A primeira coisa que os visitantes veem são três retratos fotográficos – Hitler como agitador partidário, como estadista e, em uma fotomontagem, como a cabeça da morte. Por trás dessas imagens, que são projetada em uma tela transparente, outros fotografias se acendem – de pessoas desempregadas, de apoiadores que aplaudem Hitler e de soldados marchando diante de uma casa queimada. O ditador jamais é mostrado sozinho – ele está sempre inserido no contexto social, político e militar no qual atuou.
Como precaução adicional, um catálogo traz uma grande quantidade de informações contextuais, com a apresentação das opiniões de historiadores sobre “a ascensão do Partido Nazista”, “A iconografia do país”, “As mulheres na comunidade da época da guerra” e vários outros tópicos relacionados a Hitler.
“A fortuna da Alemanha”
Resumindo toda a exibição há um ensaio de Ian Kershaw, o biógrafo britânico de Hitler, que descreve como os apoiadores de Hitler tinham uma relação quase religiosa com o seu messias. “O fato de vocês terem me encontrado é um milagre dos nossos tempos”, declarou o ditador a 140 mil seguidores entusiasmados em Nuremberg, em 1936. “O fato de vocês terem me encontrado em meio a tantos milhões! E também o fato de eu ter encontrado vocês, essa é a fortuna da Alemanha!”.
Kershaw cita a sentença proferida por um secretário estatal nazista – que afirmou que todo alemão deveria “trabalhar no sentido de atingir as metas do Führer” - como uma boa explicação da lógica interna da ditadura nazista e dos crimes cometidos por uma população que em determinados momentos agiu por iniciativa própria.
A exposição do Museu de História Alemã inclui evidências que apoiam esta tese. Há uma tapeçaria, por exemplo, bordada por integrantes de dois grupos de mulheres na cidade de Rotenburg and der Fulda. Ela mostra formações da Juventude Hitlerista, da SA e da Liga de Garotas Alemãs posicionadas no formato de uma cruz, marchando em direção a uma igreja. As bordadeiras embelezaram ainda mais o trabalho com um brocado do texto do Pai Nosso. Thamer, que nasceu em Rotenburg, encontrou a tapeçaria por acaso durante uma visita.
Os objetos de Hitler estão meio escondidos em uma pequena vitrine. Há um álbum de fotografias chamado “O Hitler que Ninguém Conhece”, feito por Heinrich Hoffmann, o fotógrafo favorito de Hitler, e um baralho do Führer que também inclui fotografias resplandecentes de Rudof Hess e de outros líderes nazistas. Esses objetos são tratados quase que como pornografia, ou material obsceno, para que percam o seu potencial de entusiasmar durante esta solene exposição. Um baú de desenhos da Nova Chancelaria do Reich de Hitler está mal dependurada, em vez de ter sido simplesmente colocada no assoalho, e uma pintura a óleo que exalta a nação em guerra também foi pendurada na parede de forma displicente.
A mensagem central e mais importante para os visitante é que “nós demoraremos ainda muito tempo para analisar Hitler”, diz Simone Erpel, que preparou a exposição juntamente com Thamer. “Toda geração precisa encontrar as suas próprias respostas”.
O museu na história
A última sala da exposição apresenta 46 capas de “Der Spiegel” sobre Hitler e o Nacional Socialismo – juntamente com os diários falsificados de Hitler publicados pela revista “Stern”. Desde o primeiro título (“Anatomia de um Ditador”, de 1964) até o mais recente (“Os Cúmplices”, de 2009), esses artigos também refletem a mudança de percepções da história.
O único aspecto que permanece estranhamente pouco representado em tudo isso é a informação sobre a própria localização do museu, na histórica Zeughaus, um ex-arsenal em Unter den Linden, em Berlim. Diagonalmente oposto ao edifício, em uma praça próxima à Ópera Estadual, fica o local da famosa queima de livros de 1933. A vizinha Lustgarten era decorada com bandeiras com a suástica durante as cerimônias.
“Hitler e os Alemães” não faz qualquer menção a essas conexões, e nem sequer ao dia no qual a própria Zeughaus entrou para as páginas da história. Para assistir a uma exposição de armamentos soviéticos capturados, Hitler tinha vindo ao edifício no “Dia da Comemoração dos Heróis”, um feriado nazista, em 21 de março de 1943. Um oficial chamado Rudolf-Christoph von Gersdoff também foi ao local, levando dois artefatos explosivos com a intenção de assassinar Hitler.
Gersdoff já havia ativado os detonadores de ação retardada que explodiriam as bombas dentro de algum tempo quando Hitler passou rapidamente pela exibição e deixou o prédio antes do esperado. Conseguindo evitar ser descoberto, mas suando profusamente, o oficial entrou no banheiro e conseguiu desativar os artefatos pouco antes que estes explodissem.
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