Grande parte de Hiroshima foi destruída há 65 anos no primeiro ataque nuclear do mundo. A bomba, lançada por um avião da Força Aérea dos EUA, matou dezenas de milhares de pessoas e destruiu uma geração inteira na cidade. Seis décadas mais tarde, Hiroshima luta para manter viva a memória do ataque.
A bomba nuclear e pequenas garças de origami – para Kyoko Niiyama, estas duas imagens são inseparáveis. “Cada um dos pássaros de papel conta uma história triste da minha cidade, mas eles também representam suas esperanças e forças”, diz a moça de 20 anos de idade.
Quando ela estava na escola, também tentou fazer suas próprias garças de dobradura, conta. Assim como Sadoko Sasaki fez no passado. Todas as crianças de Hiroshima conhecem a história de Sasaki – e classes inteiras fazem peregrinações todos os anos para a parte do Memoria da Paz de Hiroshima que é dedicada a ela, onde penduram suas garças de origami em cordões.
Sadoko Sasaki tinha dois anos de idade quando a primeira bomba explodiu em sua cidade natal. Ela morreu aos 12 de leucemia, uma doença da qual muitas crianças foram vítimas por causa da radiação da bomba. Durante seus últimos dias no hospital, uma amiga disse a Sasaki que qualquer pessoa que fizesse mil origamis de garça poderia fazer um pedido a Deus.
Ela usou embalagens, jornais e revistas como papel para origami. Outros pacientes e amigos trouxeram folhas de papel. A menina de 12 anos dobrou origamis incansavelmente, dia e noite. Ela conseguiu fazer as mil garças dentro de um mês. Mas seu desejo de se recuperar nunca foi concedido. Sasaki morreu em 25 de outubro de 1955. Quando seus pais a encorajaram a comer mais no dia em que ela morreu, ela pediu chá e arroz. “É muito gostoso”, foram as últimas palavras da menina.
Kyoko Niiyama conhece bem a história, mas às vezes ela ainda tem dificuldades de se controlar quando a conta. Possivelmente porque isso a faz lembrar de sua própria avó, que também é uma “hibakusha”, a palavra japonesa que descreve os sobreviventes das bombas nucleares em Hiroshima e Nagasaki.
Uma das histórias que sua avó contou para ela sobre o dia 6 de agosto de 1945 foi sobre seu tataravô, cujo corpo nunca foi encontrado. Ou seu corpo foi queimado a ponto de não ser reconhecido ou foi totalmente incinerado pela explosão. “Minha avó ainda diz que ela nunca será capaz de aceitar a morte de seu pai porque o destino dele nunca foi esclarecido”, diz a garota de 20 anos. “É uma dor que nunca vai embora.”
Será que Hollywood um dia fará um filme objetivo sobre Hiroshima?
“Hiroshima é uma cidade especial com uma mensagem”, diz Niiyama, que quer ser jornalista. Atualmente ela faz estágio no Museu do Memorial da Paz em Hiroshima. É um prédio enorme e moderno, preenchido com mostras do inimaginável. Um dos itens em exibição é uma caixa de vidro com garças que foram dobradas por Sadoko Sasaki. O museu também está cheio de fotos, modelos gigantes e até telhas que derreteram com o calor da tempestade de fogo gerada pela explosão.
As peças expostas no museu são muito comoventes, e isso é importante para Niiyama. “Não podemos esquecer o passado”, diz ela. “É claro que também precisamos lembrar os crimes que foram cometidos por nossos militares durante a 2ª Guerra Mundial”. Mesmo 65 anos depois do fim da guerra, o Japão ainda tem dificuldades de aceitar sua própria história.
Mas este não é um problema exclusivo do Japão. Niiyama descobriu isso durante um ano fora, quando estudou num colégio nos Estados Unidos. “Para mim, a mensagem de Hiroshima não é uma acusação, mas um aviso pela paz e contra a bomba atômica”, diz ela. “Eu gostaria muito de ter contado a meus colegas nos EUA sobre minha cidade natal e sua história”, diz ela. Mas as pessoas tinham pouco interesse nessas histórias, conta.
Niiyama disse que sua experiência foi de que a os EUA contam a história através de filmes exagerados como “Pearl Harbor”. Ela diz que percebeu uma falta de discussões reais sobre o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. “Provavelmente vamos ter que esperar uma eternidade para ver um filme de Hollywood objetivo sobre as vítimas de Hiroshima”, diz Niiyama, desapontada.
Hiroshima lentamente esquece sua própria história
Mas até mesmo Hiroshima, a cidade onde a primeira bomba atômica foi lançada, está começando a esquecer lentamente seu passado. “Tudo o que preciso fazer é olhar para meu irmão de 16 anos”, diz ela. “O lançamento da bomba é apenas uma coisa do passado distante para ele e outras pessoas de sua idade. Ele nem para para ouvir as histórias de nossa avó”, diz ela.
Niiyama então nos guia pelo grande parque do memorial, que tem vários monimentos incluindo o Sino da Paz, e o chamado Domo Bomba-A. O memorial é composto pelas ruínas de um dos poucos edifícios cujas paredes permaneceram em pé depois do lançamento da bomba, embora as pessoas por trás daquelas paredes tenham sido incineradas. Agora o domo de aço do prédio aponta para o céu nublado. A cena ainda tem o poder de chocar.
“Às vezes casais tiram fotos na frente dele, sorrindo”, diz Kyoko Niiyama, que acha isso “bizarro”. Um restaurante caro à margem do rio fica localizado a poucos metros do monumento pela paz.
A Hiroshima atual começa atrás do memorial pela paz do Domo Bomba-A. Com seus novos arranha-céus e fachadas, tudo muito limpo e de certa forma insosso, ela parece uma típica cidade japonesa, e talvez seja até mesmo um pouco mais sofisticada e moderna do que cidades em outras partes do país. A cidade tem um grande centro comercial coberto e um bairro lazer onde grupos de funcionários bêbados cambaleiam para dentro de táxis na madrugada. Sinais de neon ficam acesos no centro da cidade à noite, e máquinas fazem um barulho ensurdecedor nos cassinos. Outdoors promovem o time de beisebol local, Hiroshima Toyo Carp, que joga na principal liga japonesa.
Quanto aos pontos turísticos, a bomba não poupou muitos. Um castelo no centro da cidade foi reconstruído. Há também uma velha árvore de gynkgo, que a primeira vista não parece uma atração turística. Ela fica em Shukkei-en, um belo jardim com um lado cheio de carpas valiosas. O parque, que foi originalmente construído no século 17, teve de ser reconstruído depois que a bomba o transformou num deserto. Depois da explosão, as pessoas se jogavam no lago de Shukkei-en para esfriar suas queimaduras e beber a água. Tudo que havia no jardim foi queimado – mas a árvore de ginkgo sobreviveu. “Isso não é um pequeno milagre?”, pergunta a estudante.
“Seria terrível esquecer a história da cidade”
Niiyama nos leva a um tradicional restaurante com cozinha aberta. “Aqui você pode comer panquecas okonomiyaki que são típicas da minha cidade”, diz ela, com orgulho. As tradições são importantes para ela, especialmente porque a bomba quase acabou com a velha Hiroshima. “Para mim, Hiroshima é minha cidade natal onde me sinto confortável, mesmo que muitas pessoas em todo o mundo associem, inevitavelmente, o nome Hiroshima à bomba atômica”. Essa associação pode ser triste, mas de certa forma também é boa, explica a estudante. “Seria terrível esquecer a história da cidade”, diz ela, enquanto o cozinheiro coloca camadas de ingredientes frescos numa panqueca. “Então todas as mortes teriam sido totalmente em vão.”
Em 6 de agosto, Hiroshima toma uma atitude contra o esquecimento. Todos os anos, no aniversário da bomba, a cidade realiza uma grande cerimônia com dezenas de milhares de visitantes no Parque do Memorial da Paz de Hiroshima. “E muitas escolas continuam a examinar o tema”, diz Niiyama.
Por exemplo, a escola pública de segundo grau Motomachi participou de um projeto de arte com os hibakusha, em que as testemunhas vivas contaram aos alunos sobre a bomba. As telas que os alunos pintaram depois foram inquietantes e intensas. Miho Tokunaga, de 17 anos, criou um quadro que mostrava pessoas queimadas na explosão cruzando uma ponte. As figuras nuas e sangrando parecem fantasmas. Não parece que o quadro foi feito por uma adolescente.
“Ficou claro para mim que, não importava o quanto eu tentasse, eu nunca faria justiça às tristes histórias da senhora Watanabe, uma das hibakusha”, disse a estudante, séria. Ela viajou para o local que retrata na pintura para vê-la ao vivo. “Pela primeira vez eu de fato me conscientizei do que aconteceu no passado, porque uma das sobreviventes me contou”. Antes disso, ela admite que não pensava muito sobre o assunto. “Mas o que acontecerá quando não houver mais testemunhas vivas? Acho que muitas pessoas esquecerão.”
É uma preocupação compartilhada por Hotsuma Abe, aposentado que trabalha como professor meio período na escola Motomachi. “Fiquei chocado quando fiquei sabendo que algumas escolas em Hiroshima tiraram do currículo suas aulas sobre a paz”, diz o professor.
Sobreviventes ainda morrem de câncer
Para o médico Hiroo Dohy, entretanto, esquecer é impossível. Ele é chefe da divisão para os sobreviventes da bomba atômica no Hospital da Cruz Vermelha em Hiroshima. O hospital já estava lá quando a bomba caiu em Hiroshima e foi severamente destruído na explosão. Embora muitos enfermeiros e médicos tenham morrido, e a equipe sobrevivente não soubesse o que havia acontecido com seus parentes, o hospital continuou funcionando. Isto é motivo de orgulho no hospital até hoje. Só em 1993 os edifícios antigos foram substituídos por um novo.
No setor para sobreviventes da bomba atômica do hospital, as vítimas ainda sofrem e morrem décadas depois da bomba. Ainda hoje o hospital tem pacientes que foram vítimas da radiação a qual foram expostos, que sofrem de câncer de tireóide, pulmão, seios ou genitais, entre outras doenças. “Quanto mais próximos estavam do epicentro na época, maior é o risco de que terão uma doença”, explica Hiroo Dohy. O medo do câncer é algo que acompanha muitos hibakusha por toda a vida.
Parte do antigo prédio foi preservada na frente da entrada do hospital. Foi mantida como uma espécie de monumento, junto com a estrutura de metal retorcida do prédio, para lembrar as pessoas da força da onda explosiva. “Isso também faz parte da minha cidade”, diz Niiyama. “A maioria dos pontos turísticos contam uma história triste.”
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