Mohamed Morsi |
Ele entrou no estádio do Cairo com uma pequena corrida, um grande sorriso, sem gravata, de braços para o alto e punho cerrado em sinal de vitória, sob uma chuva de aplausos, como um boxeador no ringue. No sábado (6), depois de esquentar o ambiente sob o olhar complacente das câmeras que percorriam as arquibancadas, Mohamed Morsi se lançou em um discurso de uma hora e meia sem olhar suas anotações, quebrando os códigos de um espetáculo político marcado pela lembrança de décadas de ditadura.
Deixando de lado o árabe clássico que ele cultivava desde o início de seu mandato, foi em dialeto que o presidente egípcio prestou as contas de “seus cem primeiros dias”. Longe do estilo morno, paternalista e egocêntrico de Hosni Mubarak, que falava a portas fechadas e cujos discursos ninguém mais no Egito ouvia, Mohamed Morsi prendeu a atenção dos egípcios detalhando os custos ocasionados por suas viagens oficiais.
“Há quem alegue que minhas viagens custaram ao Egito US$ 100 milhões (R$ 203 milhões). Como assim? Eu fiz nove viagens em 11 dias, durante as quais fechamos 17 acordos que trarão à economia US$ 10 bilhões diretos e outros 10 bilhões em investimentos”, declarou Morsi. “Os empresários e os investidores que me seguiram o fizeram por conta própria. Nenhum centavo entrou em meus bolsos em troca dessas viagens”.
E, em um impulso de transparência: “Dizem que os membros da equipe que me acompanhava recebiam US$ 1.500 por dia. É mentira! Eles receberam U$ 50 e eu nem mesmo pude aumentar, pois depois de consultar o procurador-geral, ficou decidido que eles não receberiam mais do que US$ 62... e meio!” E o presidente ainda acrescentou: “Como vocês sabem, continuo vivendo em um apartamento que pago do meu bolso. Não tenho direitos, só tenho deveres”.
Enquanto nas arquibancadas milhares de fãs e soldados faziam a “ola”, as ruas do Cairo, que ressonavam em uníssono esse discurso incomum, brigavam para saber se fora na época de Sadat ou de Nasser a última vez em que se viu tamanha empatia com o povo. Não fosse pela saudação ao profeta Maomé na introdução, normalmente reservada aos sermões da mesquita, e pelos “améns” da plateia, que com Mohamed Morsi estão entrando no vocabulário político, poderíamos acreditar estar de volta à era dourada do Egito.
Celebrando o 39º aniversário da guerra do Kippur, o presidente levou seus cidadãos a uma viagem no tempo que lhe permitiu passar por cima da era Mubarak para melhor apresentar a revolução de janeiro de 2011 como a herdeira da “vitória” de 1973 contra o exército israelense. Um atalho surpreendente que lhe permitiu zerar os contadores em 1974 para melhor justificar um balanço ainda sem brilho.
Mohamed Morsi provavelmente causou sensação ao afirmar que 46 mil agricultores tiveram aliviadas suas dívidas e que ele se preparava para libertar os prisioneiros políticos detidos durante a revolução: uma promessa cumprida por decreto presidencial, para surpresa geral, dois dias mais tarde, em 8 de outubro. Mas ele se mostrou menos convincente quando soterrou sua plateia sob uma avalanche de números improváveis. Quem ele achou que ia enganar quando afirmou ter realizado “70% de seu plano de cem dias para a segurança, 60% de seu plano para melhorar o trânsito, 40% de seu programa de coleta de lixo, e 80% do plano que visa remediar a falta de pão”? As dezenas de milhões de egípcios que mofam diariamente nos engarrafamentos avaliarão; sem contar os coptas, vítimas em certas províncias de verdadeiras ofensivas.
À parte as críticas dos editorialistas da imprensa liberal, o show em estilo americano do presidente Morsi revelou um domínio perfeito da mídia. Durante esse tempo, a Assembleia Constituinte continuou seus trabalhos em uma opacidade quase total, e o Sinai, nos últimos dois meses, tem sido palco de operações militares que se dão sem imagens.
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