Soldados Alemães em Kunduz, Afeganistão |
Soldados alemães participam de uma missão da UE em Uganda, treinando soldados somalis para ajudar a levar a paz a seu país destruído pela guerra. Uma visita ao acampamento mostra como é difícil transformar recrutas inexperientes em combatentes leais e efetivos. Nem mesmo Bruxelas está convencida da utilidade da missão.
O soldado alemão está agachado na savana de Uganda enquanto 30 pares de olhos acompanham a caneta em sua mão. Ele escreve os comandos mais importantes em uma placa metálica, uma vez em inglês e outra em somali: "Atenção" e "Fogo".
Seus músculos tremem sob a pele dos braços tatuados, e mosquitos zumbem ao redor de sua cabeça raspada. Faz calor na savana, mas nuvens de chuva se acumulam no horizonte. "Então vamos", murmura Ralph Westermann, um sargento das forças armadas da Alemanha, a Bundeswehr.
Nesse dia ele vai levar os 30 homens, todos recrutas da Somália, em uma patrulha pelo mato. Ele vai treiná-los para que não disparem aleatoriamente com seus fuzis AK-47. Vai lhes dizer que muitas vezes é melhor mudar o gatilho para semiautomático, mirar e disparar. Os próximos 30 recrutas chegarão amanhã. Esse foi o trabalho de Westermann nos últimos três meses.
O sargento Westermann, 42, gosta de lutar boxe e levantar pesos, e é um dos 19 soldados alemães que trabalham no oeste de Uganda. Sua missão é dar uma espinha dorsal ao exército somali. Para esse fim, a UE os enviou para Bihanga, no sudoeste de Uganda, juntamente com 65 soldados de outros 12 países europeus. Se a missão ficasse estacionada na Somália, os recrutas seriam mortos mais rapidamente do que se poderia treiná-los. Também seria perigoso demais para os treinadores. Por isso o acampamento fica em Uganda.
O programa se chama Missão de Treinamento da União Europeia - Somália (EUTM-Somalia, em inglês). Os soldados europeus estão treinando 551 recrutas somalis que chegaram à Uganda em julho. Esse é o quarto curso de treinamento da missão. "Nos primeiros três meses, praticamente todos eles ainda são civis", diz Westermann. Eles voltarão para a Somália e para a guerra no final do ano. Se Westermann os treinar bem, terão uma chance de sobreviver e poderão até ajudar a resolver um problema que perturba o mundo há mais de 20 anos.
Milícias vêm lutando entre si no Chifre da África desde 1991, quando o ditador somali Mohamed Siad Barre foi obrigado a fugir. A violência e o caos no país não são apenas causados pelos piratas que constantemente sequestram navios, mas também pelo grupo terrorista islâmico al-Shabab, que coopera com a Al Qaeda.
O governo de Mogadício é a única esperança de uma paz duradoura. Cerca de 10 mil soldados, a maioria deles de Uganda, protegem políticos somalis e expulsaram a al-Shabab da capital. Há cerca de duas semanas, tropas do Quênia expulsaram os islâmicos da cidade portuária de Kismayo.
Mas os quenianos e os ugandenses são estrangeiros, e mesmo que eles vençam não serão capazes de manter o controle do país em longo prazo. O exército do governo é um grupo desolado, que consiste teoricamente em 10 mil soldados muito mal treinados e equipados. Eles são melhores em morrer do que em lutar. Europeus como Westermann estão em Uganda para mudar isso.
Chegar a Bihanga envolve um percurso terrível de sete horas a oeste de Kampala, a capital de Uganda, em uma estrada que se transforma em estrada rural e depois em uma trilha de terra, até que a única maneira de avançar é com veículos todo-terreno. A estrada passa por aldeias de choças de barro, cercadas por depósitos de lixo que queimam e rebanhos de cabras semisselvagens. De vez em quando há uma placa de metal, aparentemente no meio do nada, que diz: "Escola de Treinamento Bihanga".
Mais de mil pessoas vivem em Bihanga. O acampamento foi construído pelos governantes coloniais britânicos e mais tarde tomado pelo exército ugandense. Quando os europeus chegaram, há dois anos, livraram-se das velhas tendas e construíram longos dormitórios com telhas de lata, de acordo com os padrões ocidentais.
Enquanto os soldados europeus ficam nesses quartéis, os de Uganda vivem com suas famílias em choças próximas, que são separadas do acampamento europeu por uma cerca. Galinhas e cabras correm livremente entre as cabanas. O trabalho dos soldados ugandenses é oferecer segurança para o acampamento e acomodações para os somalis.
Oito recrutas mulheres somalis estão abrigadas em uma cerca, onde são mantidas separadas dos homens. Elas provavelmente vão causar sensação em sua terra muçulmana, mas a Somália precisa que elas revistem mulheres nos postos de controle para garantir que não estão usando cintos explosivos.
O sol fustiga incansavelmente, mas o sargento Westermann está usando botas de combate e uniforme. Há muitos perigos na área de treinamento de seis quilômetros quadrados. O capim alto esconde cobras e aranhas venenosas; os mosquitos podem transmitir malária. Há um obituário pregado à parede no refeitório, de uma freira italiana que morreu de febre no ano passado. Depois há o calor constante e as tempestades tropicais, especialmente agora que começou a temporada de chuvas.
Nada disso incomoda Westermann. Enquanto a maioria dos soldados de países europeus se recusa a voltar para um segundo período, Westermann foi voluntário, dizendo que queria ver como o acampamento havia ficado. "Pelo menos agora temos casas sólidas", ele diz. "Nós moramos em tendas em 2010, o que não era nada agradável na temporada de chuvas."
Ele pode enfrentar o calor e os perigos naturais, mas a confusão de línguas no acampamento é um problema, especialmente porque o inglês não é exatamente seu ponto forte. É um desafio explicar o que ele espera de seus recrutas somalis para o intérprete queniano e os soldados ugandenses.
Todos os dias Westermann sente que muito do que ele diz se perde em consequência das barreiras linguísticas entre alemão, inglês, suahili e somali. Nem tudo o que ele diz é compreendido, mesmo quando repete as ordens seis ou sete vezes. Ele já aprendeu um pouco de somali. Sabe dizer "depressa, depressa", frase que usa com frequência. E que tal "obrigado"? Ele não sabe dizer isso, mas diz que não importa. "Não a usamos muito aqui", diz, enquanto desaparece no mato.
Seus recrutas acabam de se mudar quando começa uma confusão bem perto dali. O estouro de uma granada de mão ecoa pelos morros ao redor. O recruta somali Mohamed Sadiq invade uma casa com seu rifle de assalto pronto. Ele vê uma figura de papelão na entrada e dispara três vezes contra ela. Depois ele e dois outros recrutas vasculham os quartos. Cerca de meio minuto depois um dos homens grita no rádio: "Edifício controlado". Os passarinhos voltam a cantar em pouco tempo.
Sadiq, 22, quer lutar pela Somália, por seus amigos e por sua família. Tudo o que ele sabe é guerra. "Meu país é tão perigoso que eu preciso de todo o treinamento que conseguir", ele diz. Por enquanto há cartuchos de festim no magazine de seu rifle de assalto. Mas em três meses Sadiq espera estar usando munição de verdade. Ele não estará mais no acampamento, mas em uma das muitas frentes da Somália, com seus colegas de infantaria. Como uma dessas frentes poderá ser uma área urbana, ele também recebe treinamento diário em combate de casa em casa. No jargão militar, chama-se Fibua, do inglês "fighting in built-up areas".
Para ser capaz de treinar os recrutas em condições realistas, os treinadores mandaram construir duas ruas que poderiam estar em Mogadício ou Kismayo. Soldados portugueses batizaram uma delas de avenida da Liberdade, como a principal via de Lisboa.
Não há telhados em muitos prédios, o que permite que os treinadores os examinem de cima para determinar quem estaria morto e quem teria ganhado cada exercício. O capitão Ricardo Jorge Silva, um oficial português, não está satisfeito com o grupo de Sadiq. "Isso foi devagar demais!", ele grita. "Pense na sequência que discutimos. Dominar a área, depois passar imediatamente para o próximo quarto. Sem interrupção. Façam tudo de novo." O intérprete queniano traduz o que ele diz, a unidade volta à posição inicial e a próxima granada de exercício explode.
As coisas estão mais tranquilas para os outros alemães do acampamento, os operadores de rádio. Enquanto Westermann, como um dos três sargentos de treinamento, se arrasta entre o capim, Michael Wellmann ensina seus recrutas o alfabeto do rádio. Abdullahi Abditon está parado ao seu lado junto do quadro-negro. O somali de 20 anos está sendo treinado para mais tarde treinar outros operadores de rádio na Somália. Seis de seus colegas recrutas estão debruçados sobre mesas aprendendo códigos e palavras-chaves. "Como você reconhece um amigo ou inimigo durante a transmissão de rádio?", pergunta o treinador.
"O grupo é tão pequeno porque só reunimos os melhores alunos da classe", diz Wellmann. "As primeiras cinco ou seis semanas são duras. Em alguns casos temos de começar ensinando a ler as horas. Você começa a ver progresso depois disso."
A noite cai rapidamente nos trópicos, e por volta das 19h de repente fica escuro lá fora. O refeitório tem mesas de pingue-pongue e de pebolim, e fotos do porto de Hamburgo penduradas nas paredes. As telas de laptops brilham nas salas individuais. "É importante que a Internet funcione, ou o clima pode mudar rapidamente para pior no campo. Afinal, é a conexão mais importante com nossas famílias", diz o major Sascha Repoki.
Um especialista em logística, Repoki é o oficial alemão mais graduado no acampamento. Ele diz que toda garrafa de água, cada caixa de cereais para o café da manhã e cada lápis tem de ser transportado para lá. Não há sequer água para os chuveiros no acampamento, e um caminhão tanque passa pelo posto de controle na entrada para entregá-la todas as manhãs. "Se uma cadeira quebra, temos de encomendar outra em Kampala", diz Repoki.
Nenhum comentário:
Postar um comentário