Kathryn Kausch acompanha em clínica sua mãe, Doris Hink, viúva de um veterano da 2ª Guerra Mundial |
Para Dennis Selsky, um veterano do Vietnã com esclerose múltipla, foram documentos perdidos. Parecia que toda vez que ele enviava papéis para o Departamento de Assuntos dos Veteranos dos EUA, eles desapareciam no éter.
Para Mickel Withers, um veterano da Guerra do Iraque com transtorno de estresse pós-traumático grave, foi uma confusão burocrática. O departamento disse que ele recebeu pagamento da Guarda Nacional em 2009, embora tivesse saído no ano anterior, e cortou sua indenização por invalidez em US$ 3.000 (R$ 6.060). Ele entrou com pedido de falência para se proteger de credores.
Para Doris Hink, viúva de um veterano da 2ª Guerra Mundial, significou espera. O departamento levou quase dois anos para processar seu pedido de pensão pela morte do marido, obrigando sua filha para a tirar US$ 12 mil (R$ 24,24 mil) da poupança para pagar as contas do lar de idosos.
Estas são as faces do que se tornou conhecido como "o atraso": a fila esmagadora de pedidos de indenização por invalidez, pensões e benefícios educacionais que tem sobrecarregado o Departamento de Assuntos dos Veteranos. Para centenas de milhares de veteranos de guerra, o resultado tem sido longas esperas por decisões, documentos mal encaminhados, comunicação confusa e erros irritantes em suas reivindicações.
Os números contam a história. No ano passado, veteranos entraram com mais de 1,3 milhão de ações, o dobro do número em 2001. Apesar de ter adicionado quase 4.000 novos funcionários desde 2008, a agência não conseguiu acompanhar o ritmo, concluindo menos de 80% de seu trabalho.
Este ano, a agência já processou mais de 1 milhão de reivindicações pelo terceiro ano consecutivo. No entanto, ela ainda leva cerca de oito meses para processar uma reivindicação comum, dois meses a mais do que há uma década. Na segunda-feira, havia 890 mil pedidos de indenização e pensão pendentes.
Custos exorbitantes acompanham essa enxurrada de reivindicações. No próximo ano, os principais programas de benefícios do departamento – compensação para os deficientes, as pensões para aqueles que têm baixa renda e assistência educacional – deverão custar cerca de US$ 76 bilhões (R$ 153 bilhões), o triplo do montante em 2001. Em 2022, a projeção é de que esses custos subam quase 70%, para cerca de US$ 130 bilhões (R$ 262 bilhões).
Estes são os complementos dos salários da guerra, que não vêm apenas dos conflitos recentes. O departamento administra pensões dos veteranos da 2ª Guerra Mundial enquanto recebe novas reivindicações de veteranos do Vietnã com múltiplas doenças causadas pela idade avançada. Na verdade, quase um terço de todos os novos pedidos pendentes é de veteranos da era do Vietnã, praticamente o mesmo número de pedidos dos veteranos das guerras do Iraque e Afeganistão.
Graças às melhorias na medicina e nos coletes à prova de balas, a taxa de veteranos sobreviventes do Iraque e no Afeganistão é maior. Quando voltam para casa com mais feridas, e talvez mais experiência, aqueles que entram com requerimento de indenização por deficiência pedem, em média, compensação por quase dez doenças ou lesões cada um, em comparação a seis dos veteranos do Vietnã e menos de quatro para os veteranos da 2ª Guerra Mundial. Suas reivindicações complexas muitas vezes retardam o processo, contribuindo para o atraso.
Ao mesmo tempo, uma porcentagem maior – quase a metade – dos veteranos do Iraque e do Afeganistão está entrando com pedido de compensação por invalidez, em parte por causa da economia fraca. Isso é o dobro da taxa de guerras anteriores.
"Nós não estamos avançando nada aqui", reconheceu Eric K. Shinseki, secretário de Assuntos dos Veteranos, numa entrevista durante o verão. "Se estou impaciente? Sim, mas tenho uma solução.”
Essa solução é o "plano de transformação" do departamento, que pede um novo regime de treinamento que, segundo Shinseki, vai melhorar a velocidade e precisão no processamento das reivindicações; a criação de equipes especiais para lidar com reclamações complexas; e nova tecnologia digital que irá substituir o sistema atual engasgado em papel.
Quando todas as peças entrarem em vigor até 2015, Shinseki diz que cada pedido será processado em menos de 125 dias, quase sem erros – uma promessa que os defensores dos veteranos veem com ceticismo.
Funcionários antigos e atuais da linha de frente, que falaram com frustração sobre as críticas generalizadas à sua agência, oferecem uma análise diferente. A disfunção, eles dizem, vem de um treinamento inadequado e gerenciamento ruim, um processo excessivamente complicado, e padrões de desempenho de linha de montagem que os obrigam a cumprir cotas de produtividade sob ameaça de rebaixamento ou demissão. A solução, eles dizem, é clara.
"Eles precisam de mais funcionários", diz Mark Locken, um oficial de artilharia aposentado do Exército que trabalhou para o departamento por três anos em Boston antes de sair em maio por causa do estresse.
A história do atraso, que antecede os ataques de 11 de setembro de 2001, sugere uma outra fonte do problema: uma cultura burocrática com missões conflitantes.
Por um lado, os funcionários do Departamento de Assuntos dos Veteranos são encorajados a serem defensores dos veteranos. "Eu digo a eles: vocês vão cuidar daqueles jovens, homens e mulheres, por toda a vida”, disse numa entrevista Allison A. Hickey, general de brigada aposentada da Força Aérea que é subsecretária de benefícios.
No entanto, esses funcionários também são obrigados a controlar cada centavo do dinheiro público, e devem distinguir os verdadeiramente necessitados daqueles menos necessitados e dos fraudulentos.
Isso significa que eles devem avaliar os veteranos para determinar se suas doenças ou lesões são reais, e se elas são resultado do serviço militar ou de outra coisa. Se esses problemas são considerados "ligados ao serviço", os funcionários devem, em seguida, quantificar sua gravidade e converter isso em dólares.
Será que aquele traumatismo craniano foi causado pelo futebol ou por uma bomba no Iraque? Aquele problema nas costas representa uma deficiência de 10% ou de 30%? O transtorno de estresse pós-traumático é verdadeiro nesse caso?
Questões médicas sem respostas simples precisam ser resolvidas por burocratas atarefados e médicos sobrecarregados aplicando regras muito rígidas e simplistas para situações muito complexas. Suas decisões significam a diferença entre cheques mensais de algumas centenas de dólares a alguns milhares.
Quando os veteranos não estão satisfeitos com os resultados, como é costume acontecer, eles podem recorrer, ou fazer um novo pedido, enviando novos documentos e diagnósticos para reforçar suas reivindicações -- e acrescentando mais alguns anos ao processo.
Cerca de metade da fila atual se deve a veteranos que recorrem após terem pedidos negados ou que procuram aumentar os benefícios existentes por causa de condições novas de saúde ou do agravamento das antigas. Assim, o atraso aumenta, e junto com ele, o pessimismo de alguns defensores.
"Eles estão reorganizando as cadeiras no convés de um navio que está afundando", diz Katrina Águia, advogada que representa os veteranos diante da agência. "Eles podem contratar pessoas e comprar novo software. Mas nada vai melhorar.”
Mastodonte burocrático
Nascido de um sistema que pagava pensões para os soldados da Guerra da Independência dos Estados Unidos, o Departamento de Assuntos dos Veteranos se tornou um mastodonte com mais de 270 mil empregados que mantém 131 cemitérios, opera 152 hospitais e desembolsa benefícios para mais de quatro milhões de veteranos. O país tem cerca de 23 milhões de veteranos.
Congresso, os tribunais e o poder Executivo têm contribuído para o crescimento, criando novos direitos e benefícios. Normalmente, o Congresso faz isso estabelecendo "ligações presumíveis" entre o serviço militar e algumas doenças, permitindo que os veteranos busquem compensação por invalidez se forem diagnosticados dentro de um período.
Existem hoje dezenas de doenças que presumivelmente são resultantes ou agravadas pelo serviço militar, de anemia até febre amarela. Cada vez que o governo acrescenta uma nova, milhares de veteranos solicitam benefícios.
Em 2010, por exemplo, Shinseki anunciou que três doenças – a doença isquêmica do coração, mal de Parkinson e leucemia de células B – seriam consideradas como resultado da exposição ao agente laranja no caso dos veteranos que serviram no Vietnã. Até esta semana, o departamento processou mais de 240 mil pedidos relacionados a essas doenças apenas nos últimos dois anos.
Desde pelo menos a década de 60, a esclerose múltipla está nesta lista, e desde então, dezenas de milhares de veteranos com a doença já receberam benefícios do Departamento de Assuntos de Veteranos. Dennis Selsky, 69, é um deles.
Reservista da Marinha da região da Filadélfia que foi convocado para o serviço ativo durante 10 meses em 1968, Selsky trabalhou como especialista em explosivos em bases aéreas domésticas. Dois anos depois de deixar o serviço em 1970, diz ele, os médicos disseram que ele tinha esclerose múltipla, que Selsky acredita ter contraído por trabalhar em aviões contaminados com o herbicida agente laranja.
Há dois anos, ele ficou sabendo por meio da Sociedade Nacional de Esclerose Múltipla que podia receber indenização para veteranos, entrou com o pedido e o Estado concedeu o benefício mínimo: uma classificação de 30%, no valor de US$ 435 (R$ 878) por mês. Isso pareceu pouco para ele que diz ter tremores, caminhar com uma bengala e estar perdendo a visão. Então Selsky, que passou 31 anos na Verizon antes de se aposentar em 1998, apelou, buscando uma classificação de 100% que pagaria cerca de US$ 3.000 por mês. Foi então que seus problemas com o Departamento de Assuntos de Veteranos de fato começaram.
Primeiro, o escritório regional da Filadélfia perdeu partes do seu arquivo, disse sua mulher, Sheila. Em seguida, perdeu autorizações para obter os relatórios de seu cardiologista, ortopedista, neurologista e oftalmologista – mais de uma vez. Depois que o escritório finalmente obteve os relatórios desses médicos, ainda o obrigou a passar pelos médicos do departamento para confirmar os diagnósticos.
Cada consulta e documento perdido acrescentava semanas ao processo, agora em seu 15º mês. Da mesma forma, os examinadores céticos solicitaram informações adicionais para conferir se as palpitações e a perda de visão de Selsky estavam mesmo relacionadas a sua esclerose múltipla. "Isso deveria ser fácil", disse Sheila Selsky. "Ele está cada vez pior, e eles continuam lutando e lutando e lutando com a gente. O estresse é inacreditável.”
Dennis Selsky pode ter sido vítima de um outro problema comum ao processamento de solicitações: a administração caótica dos arquivos. Documentos perdidos ou mal encaminhados estão em primeiro lugar na lista das principais queixas quanto ao sistema de processamento. De fato, uma avaliação de 2009 feita pelo inspetor geral do departamento encontrou casos de desvio de correspondência, incluindo documentos jogados incorretamente em lixeiras em 40 dos 57 escritórios regionais do departamento.
Funcionários que processam a correspondência no Escritório Regional de Filadélfia, que receberam a reivindicação Selsky, dizem que os registros de veteranos foram empilhados durante anos em armários cinzas ou caixas de papelão porque considerou-se que não tinham informações claras de identificação, como o números de Segurança Social.
Ryan Cease, ex-funcionário de correspondência do escritório regional, disse no início deste ano que viu funcionários que estavam limpando a sala de correio, antes da visita de um alto funcionário, jogando os documentos em caixas com os dizeres "para destruir”. Desconfiado, ele e um colega de trabalho folhearam os documentos das caixas e encontraram inúmeros registros que poderiam ter sido facilmente identificados.
Cease, através de outro empregado, enviou um e-mail urgente para o escritório central do departamento. Após uma investigação, o departamento concluiu que nada impróprio havia acontecido. “Nós não destruímos nenhum documento lá em cima", disse Hickey. Mas Ryan Cease não tem tanta certeza disso. “Estou convencido", disse ele numa entrevista, “de que a correspondência foi picotada e que os registros eram identificáveis”.
Falta de funcionários
Em 2009, Kathryn Kausch soube que sua mãe, Doris Hink, podia receber uma pensão porque seu pai, que morreu em 1987, havia servido honrosamente na 2ª Guerra Mundial. Kausch enviou a papelada, esperando que os fundos ajudariam a pagar os custos do cuidado com a mãe, agora com 89 anos, que tem demência.
O pedido foi rejeitado porque os bens de sua mãe estavam acima do limite de US$ 80 mil. Mas em um ano, aqueles bens encolheram e Kauch entrou novamente com o pedido em janeiro de 2010. Em setembro daquele ano, o escritório de pensão da Filadélfia pediu documentos adicionais, e ela enviou pacote de extratos bancários, faturas médicas e outros registros financeiros.
Em novembro, o escritório notificou-a de que não havia recebido os documentos e estava rejeitando novamente o requerimento de sua mãe. Kausch mostrou um recibo de entrega dos documentos, e o escritório reconheceu o recebimento. Então, ela sentou para esperar. Meses se passaram.
Kausch começou a usar suas economias para pagar as contas de sua mãe num centro de assistência. Então, em julho de 2011, ela foi demitida de seu emprego na Xerox. Desesperada por ajuda, ela ligou para seu deputado, o representante Michael Fitzpatrick, um republicano dos subúrbios da Filadélfia. Uma semana depois que o gabinete dele inquiriu sobre o processo, a pensão de sua mãe foi aprovada.
Mas os problemas de Kausch não terminaram. Sua mãe é elegível para receber US$ 22 mil (R$ 44,44 mil) em pagamentos de pensões retroativas até 2009. Mas por causa da demência da mulher, o departamento deve aprovar Kausch como sua beneficiária. Embora o departamento tenha realizado a entrevista requerida, não preencheu a papelada final, apesar dos apelos de gabinete de Fitzpatrick.
"Não admira que o nosso governo tenha esses problemas", disse Kausch, 58. "Parece que você se perde nessa papelada burocrática." Uma reivindicação de pensão de rotina, incontestável pelo departamento, levou quase dois anos para ser processada, e só depois da intervenção de um congressista. Um processo igualmente simples de um beneficiário ainda está pendente depois de seis meses. Por quê?
Funcionários e veteranos apontam repetidamente para um motivo: a falta de mão de obra. Embora a Administração de Benefícios dos Veteranos, a divisão que zela pelos programas de benefícios, tenha crescido significativamente na última década, de 12.150 para 20.600 funcionários, continua exigindo horas extras obrigatórias para atender às demandas de carga de trabalho. E como o processamento é tão complicado, pode levar dois anos para que os novos contratados estejam em plena produção, diz o departamento.
Com sua equipe no limite, os supervisores da Administração de Benefícios dos Veteranos definem prioridades para processamento de requerimentos, dizem os trabalhadores, com os veteranos recentes e gravemente feridos, os desabrigados e doentes terminais passando para a frente da fila. Veteranos ou sobreviventes que já estão recebendo benefícios e entram como novos requerimentos pode, como consequência, receber menos prioridade, dizem os funcionários.
Outro problema, dizem os funcionários da linha de frente, são as cotas de produção que determinam se eles vão ser promovidos, receber aumentos, rebaixados ou demitidos. A pressão para cumprir as cotas faz com que alguns trabalhadores pulem arquivos complicados e demorados e procurem os mais simples, dizem trabalhadores e defensores.
"Por causa a escolha, eles sempre acabam pegando a pasta mais fina", disse Gerald T. Manar, ex-gerente da Administração de Benefícios dos Veteranos que agora trabalha para os Veteranos de Guerras Estrangeiras.
Mais processadores fariam a diferença, diz a maioria dos especialistas. Mas num momento em que ambos os partidos estão falando em cortar o déficit federal, a contratação de mais trabalhadores pode ser impossível. Desde 2004, o orçamento total do departamento – que inclui cuidados de saúde, custos administrativos e benefícios – dobrou, para US$ 127 bilhões (R$ 256 bilhões). "Novos empregados contratados para um sistema falido que recompensa o processo em vez dos resultados não vai resolver nosso problema", disse Fitzpatrick.
Para Mickel Withers, um veterano da Guarda Nacional da Geórgia, o sistema não está exatamente falido. Mas está tropeçando. Depois de servir numa equipe de detecção de bombas no Iraque em 2005 e 2006, ele deixou o Exército em 2008, com um diagnóstico de estresse pós-traumático e passou a receber US$ 3.080 (R$ 6.221) de auxílio doença por mês do Departamento de Assuntos dos Veteranos.
Mas em maio chegou um cheque de apenas US$ 109 (R$ 220). O departamento informou que estava cortando sua remuneração porque tinham determinado que ele havia recebido salário da Guarda em 2009. Veteranos não estão autorizados a receber dois tipos de remuneração. Na verdade, Withers deixou a Guarda como sargento em 2008, mas levou semanas para que o departamento confirmasse o fato. Com dois filhos e uma esposa para sustentar, ele teve que procurar assistência de moradia num grupo de veteranos para pagar aluguel e entrou com pedido de falência para evitar credores.
Foi sua segunda experiência ruim com o sistema de benefícios: em 2009, o departamento pagou em excesso a escola de arte que ele frequentava e, em seguida, tentou recolher o dinheiro de Withers. Levou meses para resolver essa disputa. "Acho que eles estão tão sobrecarregados lá, que só passam o olho nas coisas", disse ele. "Não me sinto muito seguro com o sistema".
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