segunda-feira, 8 de outubro de 2012
A guerra esquecida
No centenário do Contestado, historiadores debatem legado do conflito que matou mais de 15 mil no Sul
Com uma dinastia de monges, cidades santas de até 20 mil moradores, virgens videntes, coronéis inescrupulosos, empresários americanos, camponeses famintos e massacres sangrentos, a Guerra do Contestado tem uma das mais ricas tramas da História do Brasil. E não só. Segundo especialistas, trata-se do maior conflito registrado na República, com quatro anos de duração e pelo menos 15 mil mortos. No entanto, embora seja bem documentada, só chegou aos livros didáticos na década de 80 e, até hoje, é pouco conhecida da população em geral. Cem anos depois do início do confronto no Sul do país, que começou em 22 de outubro de 1912, historiadores resgatam a saga e tentam explicar por que ela ficou tão esquecida.
O Contestado remonta a uma região de 48 mil quilômetros quadrados, na divisa de Paraná e Santa Catarina, em disputa (daí o nome) pelos dois estados. A área em litígio era, no início do século passado, sem a presença de um estado, uma terra de ninguém, basicamente inexplorada, que passou a ser ocupada por posseiros, pequenos sitiantes e plantadores de erva-mate, gente muito pobre que não tinha títulos de propriedade.
Uma legião de miseráveis
A situação começou a se agravar por volta de 1900, quando chegaram à região as primeiras empresas de colonização. A Brazil Railway, do americano Percival Farquhar, o mesmo da Madeira-Mamoré, em Rondônia, se instalou no local para abrir a estrada de ferro São Paulo-Rio Grande, que cortava a área do Contestado. Para realizar a obra, ele recebeu do governo o direito de explorar uma faixa de até 15 quilômetros de terra para cada lado da linha férrea e, para tal, começou a expulsar os posseiros. Para trabalhar na ferrovia, foram levados para a região cerca de oito mil homens, provenientes do Rio de Janeiro e de Recife que, uma vez concluída a obra, se juntaram ao exército de miseráveis locais.
Essas pessoas começam a se aglutinar em torno da figura do curandeiro José Maria, no município de Curitibanos, em Santa Catarina. Ele era muito conhecido por seus poderes de cura. O ajuntamento começou a incomodar autoridades locais, e José Maria decidiu sair dali. Com um grupo de apenas 40 pessoas, seguiu para o município de Palmas, no Paraná, cruzando a área do Contestado, num gesto que autoridades paranaenses interpretaram como uma invasão catarinense. A polícia do Paraná cercou o grupo e deflagrou o primeiro confronto da Guerra do Contestado. José Maria foi morto neste enfrentamento e rapidamente santificado pela população local, que dizia ser ele herdeiro de um outro "monge", o italiano João Maria, que andara pela região décadas antes.
- O governo achou que o problema estava liquidado, mas, na verdade, a população aguardava pela "volta" de José Maria - conta o historiador Paulo Pinheiro Machado, da Universidade Federal de Santa Catarina, um dos maiores especialistas no conflito. - No final de 1913, Teodora, uma menina de 11 anos, conhecida como uma das virgens que acompanhavam José Maria, começou a ter sonhos com ele, nos quais ordenava que todos voltassem a se reunir na região.
O chamado acabou atraindo vários grupos de descontentes e miseráveis locais, desta vez conscientes de que desafiavam as autoridades. Formou-se a primeira cidade santa, chamada de Nova Jerusalém, onde todos viveriam num regime baseado em laços de solidariedade e igualdade. As loas à Monarquia começaram a incomodar seriamente a República - proclamada apenas alguns anos antes, em 1889. O Exército começou então a enviar tropas à região para combater "os fanáticos". Os camponeses cortavam o cabelo bem rente e se chamavam de "pelados", em oposição a seus inimigos, os "peludos".
Conforme aumentava a repressão, os camponeses se dispersavam e se reagrupavam em outras cidades santas, que se multiplicaram por todo o planalto de santa catarina, numa área de mais de 20 mil quilômetros, como explica o historiador em artigo publicado na edição especial deste mês da "Revista de História da Biblioteca Nacional" sobre o conflito.
O perfil dos chefes também foi mudando, passando de religiosos para as chamadas lideranças de guerra. Entre outros grandes líderes do movimento, destacou-se uma outra virgem, Rosa Maria, que também recebia instruções do além, mas chegou a assumir a liderança militar de um dos grupos, de seis mil homens. Outro líder foi Adeodato, um dos últimos grandes chefes de todas as cidades santas.
Em 1915, chegaram à região sete mil soldados do Exército (metade do efetivo militar total do país), comandados pelo general Setembrino de Carvalho. Em três meses, eles conseguiram destruir Santa Maria, a maior das cidades santas, com mais de 20 mil habitantes, e, logo depois, outras vilas menores que ainda resistiam. Foi a primeira vez que o Exército brasileiro usou aviões numa campanha militar - embora o objetivo tenha sido apenas de mapear a região. A fase final do conflito ficou conhecida como "açougue", segundo Paulo Pinheiro, porque muitos sobreviventes já rendidos foram degolados pelos chamados vaqueanos civis, os capangas dos coronéis.
- Foi um conflito de grandes proporções e que pode ser analisado também por uma visão mais internacionalizada - afirma o escritor Godofredo de Oliveira Neto, autor do romance "O bruxo do Contestado", que tem como pano de fundo o conflito do Sul. - Estávamos no início da I Guerra Mundial, havia denúncias de que espiões alemães estavam infiltrados no Contestado, os americanos tinham interesses fortes na região e chegaram a oferecer tropas ao presidente Hermes da Fonseca.
Miséria e vergonha
Até hoje historiadores debatem o motivo de um confronto dessas dimensões ter ficado bem menos conhecido do que Canudos, por exemplo, ocorrido alguns anos antes, entre 1896 e 1897. Euclides da Cunha parece ser a resposta mais óbvia. O jornalista e escritor esteve no arraial baiano ao longo de três semanas do conflito que opôs o grupo de Antônio Conselheiro e o Exército, assinou reportagens sobre o embate para o Estado de S. Paulo e, claro, escreveu um livro que se tornaria um grande marco da literatura nacional "Os sertões". A obra inspirou outros trabalhos em todo o mundo, entre eles "A guerra do fim do mundo", do peruano Mario Vargas Llosa, e vários filmes, documentários e minisséries.
- A cobertura jornalística de Canudos foi nacional, enquanto que a do Contestado foi regional; a imprensa estava toda voltada para a I Guerra Mundial e deu pouca atenção a uma história local - sustenta o historiador Eloy Tonon, da Universidade Estadual do Paraná, que assina artigo sobre os monges do Contestado no número especial da "Revista de História da Biblioteca Nacional". - Um outro fator é que as oligarquias estaduais e os coronéis quiseram calar um pouco o movimento, muito trágico, com muitos mortos, que provocou vergonha.
Paulo Pinheiro concorda com o colega e vai além. De acordo com ele, enquanto as elites nordestinas abraçaram a estética de Canudos, as do Sul preferiram a distância.
- Quem passeia pelo Nordeste hoje vê que Canudos é falado pela população, é conhecido por todo mundo. A própria elite que o combateu se apropriou depois dessa imagem como uma imagem do Nordeste, da mesma forma que fez com a fome e com outras mazelas - analisa Pinheiro. - No Sul, a elite local tinha um projeto de europeização e teve vergonha do Contestado, escondeu o problema.
Não se trata apenas da percepção dos especialistas. Para se ter uma ideia, o primeiro filme a abordar o confronto só apareceu nos anos 70. E a ditadura militar chegou a censurar obras sobre o Contestado. Apenas na década de 80 o Contestado entrou nos livros didáticos.
- Ele foi muito bem documentado, mas sempre do ponto de vista militar, que não abria espaço para crítica - explica Tonon, referindo-se aos relatórios de oficiais durante a campanha. - É a história dos vencedores; os vencidos só começaram a surgir em estudos nos anos 80.
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Nossa tive uma grande surpresa quando vi esta matéria,meu nome é Juliano e moro na cidade de Palmas que é citada no texto. Meus bisavós paternos testemunharam o conflito e minha bisavó dizia que quando era criança conheceu o monge José Maria(Eu particularmente nunca acreditei nisso).
ResponderExcluirMuitas pessoas idosas daqui contam várias histórias sobre o monge e a guerra,meu avô inclusive tem em casa uma foto que supostamente é do monge que marcou muito os camponeses daquela época e a história do Paraná e Santa Catarina.
Existe um museu sobre Guerra do Contestado na cidade de Caçador em Santa Catarina.
Há ainda tantas histórias nesse país que merecem ser contadas,e levada ao grande público em respeito as inúmeras vítimas esquecidas que continuam sendo violentadas mesmo após a morte!
ResponderExcluirQue descasem em paz todos esses brasileiros vítimas da violência do Estado Brasileiro que ainda hoje continua a violentar esse povo,negando-lhe saúde,educação,paz e tudo que é direito básico de um povo !
Ass:Guto
A guerra do Contestado NÃO FOI o maior conflito em território brasileiro. O maior conflito foi a guerra de CANUDOS... com a base histórica que ja se tem hoje, isso nem sequer é posto em dúvidas.
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