No INÍCIO DOS ANOS 70, cientistas, engenheiros, fornecedores do ramo de defesa e ofi ciais da Força Aérea dos Estados Unidos se reuniram para formar um grupo profi ssional. Tentavam essencialmente resolver o mesmo problema: como construir máquinas capazes de operar por si mesmas, sem controle humano, e convencer tanto o público quanto relutantes chefes do Pentágono de que robôs no campo de batalha são uma boa ideia. Durante décadas se encontraram uma ou duas vezes por ano, em relativa obscuridade, a fi m de discutir questões técnicas, trocar fofocas e renovar velhas amizades. Esse grupo outrora acolhedor, chamado Associação para Sistemas Internacionais não Tripulados, agora compreende mais de 1,5 mil empresas associadas e organizações de 55 países. O crescimento ocorreu tão depressa, de fato, que a associação se viu numa situação parecida com uma crise de identidade. Em uma das reuniões, em San Diego, até se contratou um “mestre contador de histórias” para ajudar o grupo a criar coletivamente a narrativa das impressionantes mudanças na tecnologia robótica. Um dos participantes resumiu o sentimento geral: “De onde viemos? Onde estamos? E aonde deveríamos – e aonde queremos – ir?”.
O que desencadeou a autoanálise do grupo é uma das mais profundas mudanças nas técnicas de guerra modernas desde o advento da pólvora e do aeroplano: um aumento assombrosamente rápido no uso de robôs no campo de batalha. Não houve um único robô a acompanhar o avanço dos Estados Unidos do Kuwait em direção a Bagdá em 2003. Desde então, 7 mil aviões e mais 12 mil veículos terrestres “não tripulados” passaram a fazer parte do aparato militar americano, aos quais cabem missões que variam de localizar franco-atiradores a bombardear os esconderijos do alto escalão da Al-Qaeda no Paquistão. As forças de combate mais poderosas do mundo, que antigamente se abstinham de usar robôs por considerá- los impróprios para sua cultura guerreira, adotaram a “guerra das máquinas” como meio de combater um inimigo irregular, que detona explosões por controle remoto com telefones celulares e, em seguida, desaparece de novo no meio da multidão. Esses sistemas robóticos não só têm um grande efeito sobre o conceito de como se luta esse tipo de guerra, mas também deram início a uma série de debates a respeito das implicações do uso crescente de máquinas mais autônomas e inteligentes em combate. Tirar os soldados da linha de fogo talvez ajude a salvar vidas, mas o crescente uso de robôs também levanta pro fundas questões políticas, legais e éticas sobre a natureza fundamental das técnicas de guerra e se essas tecnologias inadvertidamente não facilitariam o início de mais guerras.
As primeiras tramas desta narrativa remontam – embora seja discutível – à peça R.U.R., de 1921, em que o escritor checo Karel Capek cunhou o termo “robô” para descrever serviçais mecânicos que algum tempo depois se revoltam contra seus senhores humanos. O termo estava carregado de signifi cados porque deriva da palavra checa para “servidão” e de um termo eslavo ainda mais antigo para “escravo”, historicamente ligado aos robotniks, camponeses que tinham se revoltado contra os ricos proprietários de terras nos anos 1800. Esse tema – robôs assumirem o trabalho que não queremos fazer, mas que por fim assumem também todo o controle – é um lugar-comum da fi cção científi ca que vimos continuar em fenômenos como O exterminador do futuro e Matrix.
Atualmente os “roboticistas” invocam denominações como “não tripulados” ou “operados por con trole remoto” para evitar imagens, estimuladas por Hollywood, de máquinas prontas para acabar com a raça humana. Nos termos mais simples, os robôs são máquinas construídas para operar num paradigma “sinta-pense-aja”. Ou seja, eles têm sensores que recolhem informações sobre o mundo. Esses dados são em seguida transmitidos a processadores de computadores – e talvez a softwares de inteligência artifi cial – que os usam para tomar decisões apropriadas. Finalmente, com base nessas informações, sistemas mecânicos conhecidos como efetores (órgãos ou substâncias que reagem a estímulos) realizam algumas ações físicas no mundo em torno deles. Robôs não precisam ser antropomórfi cos, como no conhecido chavão hollywoodiano da fi gura humanoide numa roupa de metal. O tamanho e a forma dos sistemas que começam a executar essas ações variam de modo muito amplo e raramente evocam imagens como a do C-3PO ou a do Exterminador do futuro.
O sistema de satélite de posicionamento global (GPS, na sigla em inglês), controles remotos com aparência de videogames e uma série de outras tecnologias tornaram os robôs ao mesmo tempo úteis e utilizáveis no campo de batalha durante a década inicial do século 21. O aumento da capacidade de observar, identifi car com precisão e em seguida atacar alvos em ambientes hostis sem ter de expor o operador humano ao perigo tornou-se prioridade depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, e cada novo uso dos sistemas no solo criou uma história de sucesso que teve repercussões ainda maiores. Por exemplo, nos primeiros meses da campanha afegã em 2001, um protótipo do PackBot, agora usado amplamente para desativar bombas, foi enviado ao campo de batalha para testes. Os soldados gostaram tanto da engenhoca que não quiseram devolvê-la à fabricante, iRobot, que desde então passou a vender milhões de unidades. De modo semelhante, um executivo de outra empresa do ramo da robótica contava que, antes de 11 de setembro, ele nunca conseguia que o Pentágono retornasse suas ligações telefônicas. Depois, recebeu a ordem: “Faça-os o mais depressa que puder”.
A velocidade com que aumentou a aceitação da robótica militar tornou-se aparente à medida que se desenrolava a guerra no Iraque. Quando as tropas americanas foram para lá em 2003, a força de invasão terrestre não possuía um só sistema não controlado por humanos. Por volta do fi m de 2004, o número tinha crescido para 150 ou mais. Um ano depois alcançava 2,4 mil. Em 2010 o aparato robótico militar dos Estados Unidos chegou a mais de 12 mil. A mesma tendência se manifestou quanto a armamentos aéreos: as Forças Armadas americanas passaram de uma porção de veículos aéreos não tripulados para mais de 7 mil. E esse aumento é só o começo. Um general da Força Aérea americana prevê que o próximo confl ito importante do país envolverá não só esses milhares de robôs atualmente já nos campos de batalha, e sim “dezenas de milhares”.
Por si só esses números revelam uma importante mudança na atitude de um estamento militar que até o início do século 21 ainda se mostrava reticente quanto à capacidade dos robôs e cioso da antiqüíssima prerrogativa do guerreiro de liderar o ataque na hora de entrar em combate. A mudança fez com que a Força Aérea, o Exército e a Marinha dos Estados Unidos passassem a seduzir recrutas adolescentes por meio de anúncios na TV que orgulhosamente pregoam – como acentua uma dessas campanhas – que a Marinha americana “trabalha diariamente para retirar os seres humanos das linhas de frente”.
Quando adolescentes se decidem pela carreira militar, a exposição a sistemas automatizados passa a ser parte integral da experiência deles, da indução à descarga – de armar a atirar. Usam os mais avançados softwares de treinamento virtual para aprender como operar determinado sistema de armas. Depois do treinamento, estão aptos a operar um PackBot do tamanho de um cortador de grama ou um robô de solo Talon preparado para desativar bombas ou espiar acima do topo de uma serra, na caça a insurgentes no Iraque ou no Afeganistão.
Guerra do amanhã
TAIS TECNOLOGIAS são anunciadas num comercial de recrutamento como parte do aparato militar atual, apesar de “parecerem fi cção científi ca”. Na realidade, são apenas a primeira geração, uma sugestão do que vem por aí. Ou seja, o robô PackBot, que caça bombas nas margens de estradas, e os aviões teleguiados Protector, que voam sobre o Afeganistão, representam o equivalente do Ford Modelo T e do Flyer dos irmãos Wright. Protótipos para a nova geração revelam três modos-chave pelos quais os robôs modificarão a maneira como os Estados Unidos farão operações de guerra.
A ideia de robôs como meros “sistemas não tripulados” – idênticos a outras máquinas, exceto pela ausência de um operador humano dentro – começou a perder força neste ano. A evolução recapitula a história da indústria automotiva: pensar em carros como “meras carruagens sem cavalos” se tornou obsoleto à medida que projetistas começaram a considerar formas e tamanhos totalmente novos. À semelhança disso, a eliminação de preconceitos contra os robôs faz com que as máquinas assumam uma ampla gama de formas. Como era de esperar, alguns modelos devem sua inspiração à biologia. Por exemplo, o BigDog, da Boston Dynamics, é um quadrúpede metálico capaz de carregar equipamento. Outros são parahíbridos, como um robô de vigilância da Escola de Pós-Graduação Naval que tem asas e pernas. Mas outros sistemas em estágios iniciais de desenvolvimento não têm literalmente forma alguma. ChemBot, criação da University of Chicago e da iRobot, é uma máquina com aparência de bolha que muda de forma, capaz de conseguir se espremer e passar por um buraco na parede.
Sem humanos dentro, o tamanho dos robôs tem ampla gama de variações. Robôs miniaturizados têm seu comprimento medido em milímetros, e seu peso, em gramas. Um exemplo é o robô de vigilância fabricado pela AeroVironment para combate urbano. Ele parece um beija-fl or em tamanho e na habilidade de pairar sobre um alvo. A próxima fronteira é a robótica em nanoescala (estruturas medidas em bilionésimos de metro) que, segundo acreditam alguns cientistas, se tornarão comuns em algumas décadas. Na guerra, essas máquinas teriam papéis que variam de sensores que detectam o inimigo a máquinas em nível de celulares dentro do corpo humano que curam ferimentos ou, ao contrário, os causam. No outro extremo da escala, a capacidade de colocar em formação um sistema que não tem de levar em conta necessidades corporais humanas, como o dirigível de grande altitude da Lockheed Martin – aeróstato não tripulado que carrega um radar do comprimento de um campo de futebol, projetado para voar a mais de 19,8 mil metros por mais de um mês de cada vez.
Além de tamanho e forma, uma segunda mudança- chave é a ampliação dos papéis que essas máquina poderão desempenhar em operações de guerra. De modo muito semelhante ao que ocorreu com os aviões na Primeira Guerra Mundial, os robôs começaram a ser usados só para observação e reconhecimento – e logo depois tiveram esse uso expandido para novas tarefas. A empresa QinetiQ North America, fabricante do Talon, introduziu em 2007 o robô Maars, armado com metralhadora e lança-granadas, além de desempenhar tarefas de sentinela e atirador de elite. Em compensação, robôs médicos como o Veículo de Extração Robótica são projetados para retirar soldados feridos para local seguro e, em seguida, ministrar-lhes os cuidados necessários.
SOLDADO ARREMESSA robô de vigilância PackBot por uma janela, para que suas câmeras de vídeo internas permitam visão de dentro do recinto
A terceira mudança-chave está na crescente inteligência e autonomia dos robôs. O inexorável crescimento na capacidade de computação signifi ca que soldados que se alistem hoje tendem a terminar sua carreira como testemunhas da introdução de robôs comandados por computadores, literalmente, 1 bilhão de vezes mais potentes que os já disponíveis. Os militares da era da Segunda Guerra Mundial não diferenciavam entre os bombardeiros B-17 e B-24 pela amplitude de sua capacidade; mas sistemas de armas de última geração exigem exatamente essa distinção. Por exemplo, a série Predator de aviões não tripulados evoluiu de aparelhos puramente acionados por controle remoto a aeronaves capazes de decolar e aterrissar por si mesmas e rastrear 12 alvos imediatamente; o software de reconhecimento de alvo é apto a seguir pegadas até seu ponto de origem. Assim mesmo, no fi m da primeira década do século 21, as Forças Armadas dos Estados Unidos já planejavam substituir essas aeronaves, colocadas em ação a partir de 1995, por uma nova geração.
Guerreiros associados
A EXPANSÃO DA INTELIGÊNCIA e autonomia robóticas suscita questões profundas sobre que papéis é apropriado terceirizar para essas máquinas. Decisões nesse sentido precisam levar em conta não só a efi cácia dessas máquinas quando em combate quanto o signifi cado de tal transferência de responsabilidade para comandantes humanos, do ponto de vista político, ético e legal. A alternativa mais provável num futuro próximo é que os robôs assumam a aparência de “guerreiros associados”. Nessa conjuntura, equipes mistas de humanos e robôs trabalharão em conjunto, cada uma fazendo o que faz melhor. O elemento humano talvez venha a desempenhar papel parecido com o de um meia no futebol, armando jogadas para os robôs companheiros de equipe – porém, dando a eles, ao mesmo tempo, autonomia sufi ciente para reagir a mudanças de circunstâncias.
Esses notáveis desenvolvimentos talvez ainda não capturem por inteiro a história de para onde vai a robótica, o que isso signifi ca para o nosso mundo e o futuro das técnicas de guerra. As implicações totais não são apreendidas pela descrição das capacidades físicas, assim como não se apreende o signifi cado da pólvora ao notar que ela produziu uma explosão química que permitiu uma trajetória mais longa a projéteis.
Robôs são uma dessas raras invenções que literalmente mudam as regras do jogo. Uma tecnologia “revolucionária” como essa não dá a um lado uma vantagem permanente, como acreditam equivocadamente alguns analistas, porque ela é rapidamente adotada ou adaptada por outros combatentes. Em vez disso, ela causa mudanças radicais e repentinas – não só nos campos de batalha como também nas estruturas sociais em torno deles. Por exemplo, o arco longo de madeira não foi notável simplesmente porque permitiu aos ingleses derrotar os franceses na batalha de Agincourt em 1415, durante a Guerra dos Cem Anos; mais que isso, possibilitou que grupos organizados de camponeses triunfassem sobre cavaleiros, pondo fi m à era do feudalismo.
Um período histórico apropriado para fazer para lelo com o período do início do século 21 é o da Primeira Guerra Mundial. Naquela época, foram introduzidas novas tecnologias estranhas e animadoras vistas como mera fi cção científi ca apenas alguns anos antes; em seguida, foram usadas cada vez mais nos campos de batalha. Foi o conto Land ironclads, de 1903, escrito por H. G. Wells, que inspirou Winston Churchill, então primeiro lorde do Almirantado, a defender o desenvolvimento do tanque. Outra narrativa, de Alan Alexander Milne, criador da muito querida série Winnie-the-Pooh, foi uma das primeiras a sugerir a ideia de usar aeroplanos na guerra; Arthur Conan Doyle (em seu conto Danger!, de 1914) e Júlio Verne (em seu romance Vinte mil léguas submarinas, de 1869) foram os pioneiros do conceito do uso de submarinos na guerra. Os primeiros usuários tiveram uma vantagem, mas ela era volátil. Por exemplo, a invenção e exploração pioneira de tanques pelos ingleses na Primeira Guerra Mundial foram suplantadas apenas 20 anos depois quando os alemães provaram com suas táticas de Blitzkrieg (guerra-relâmpago) que tinham descoberto como usar a nova arma com mais efi cácia.
A trama se adensa
NO INÍCIO DO SÉCULO 21 as circunstâncias foram mais ou menos as mesmas em relação à robótica militar. Tome-se a ideia do que signifi cava antes “ir à guerra”. Para nações democráticas, por muito tempo isso signifi cou um compromisso sério que envolvia conquistar a qualquer custo o apoio público a um esforço que punha em perigo não apenas a vida de fi lhos e fi lhas de cidadãos como a própria sobrevivência do Estado. Sistemas não tripulados (e sua capacidade de executar atos remotos de força) trazem desgaste aos meios de prevenção exercidos por sentimento público – um declínio já iniciado pelo fi m do recrutamento militar compulsório nos Estados Unidos em 1979.
É possível que o distanciamento do combatente humano do teatro de operações torne mais fácil iniciar guerras e até mudar a maneira como as encaramos. Por exemplo, até o primeiro semestre de 2010, os Estados Unidos realizaram mais de 130 ataques aéreos no Paquistão com aparelhos não tripulados Predator e Reaper. Esse número é mais que o triplo do total de ataques com bombardeiros tripulados efetuados no início da Guerra de Kosovo em 1998- 1999. Mas, ao contrário do que houve naquela guerra, ataques aéreos robóticos no Paquistão não desencadearam debate algum no Congresso em Washington e tiveram cobertura relativamente pequena nos meios de comunicação. Em essência, quanto ao confl ito no Paquistão os Estados Unidos estão se envolvendo no que se chamaria anterior mente “uma guerra”, mas sem deliberação pública. O confl ito nem sequer é considerado uma guerra, porque se desenrola sem custo algum em vidas humanas aos Estados Unidos. Em certa medida, esses bombardeios foram altamente efi cazes. Eles mataram 40 líderes da Al-Qaeda, grupos talibãs e militantes aliados, sem que se tivesse de enviar tropas ou pilotos americanos a situações de perigo. Mas as repercussões desses ataques levantam questões que ainda estão por ser totalmente respondidas.
Para começar, qual é o impacto dessa tecnologia na “guerra de ideias” que travamos contra o recrutamento e propaganda do terrorismo? Ou seja, como e por que a realidade dos ingentes esforços dos Estados Unidos para agir com precisão está aparecendo no outro lado do globo através de uma nuvem de raiva e mal-entendidos? Enquanto usamos termos e expressões como “preciso” e “sem custo” para descrever a tecnologia em nossos meios de comunicação de massa, um dos mais importantes jornais do Paquistão declarou que os Estados Unidos são “a principal fi gura a odiar” e “o bode expiatório para todos os propósitos” por causa dos bombardeios. Infelizmente, a expressão drone (avião teleguiado) tornou-se coloquial na língua urdu e aparece em letras de rock que acusam os Estados Unidos de não lutar com honra. Essa questão se torna mais complexa quando se trata de avaliar quem deve ser considerado responsável quando as coisas dão errado. Estimativas de baixas civis variam de 200 a mil. Porém, muitos desses incidentes ocorreram perto de alguns dos líderes terroristas mais perigosos que há por aí. Onde traçar a linha que separa uma coisa da outra?
O signifi cado de “ir à guerra” também muda em 2010. Partir para a batalha sempre signifi cou que o soldado talvez não volte nunca para casa. Aquiles e Ulisses partiram em seus navios para lutar contra Troia. Meu avô partiu de navio para combater os japoneses depois de Pearl Harbor. A guerra por controle remoto modifi cou a verdade tão duradoura dos últimos 5 mil anos de confl itos armados. Cada vez mais soldados acordam, vão de carro para o trabalho, sentam- se à frente de computadores e usam sistemas robóticos para enfrentar insurgentes a mais de 11 mil km de distância. No fim de um dia “em guerra”, eles voltam a seus carros, vão para casa e, como observou um ofi cial da Força Aérea dos Estados Unidos: “Dentro de 20 minutos você está sentado à mesa de jantar falando com seus fi lhos”. A parte mais arriscada do dia deles não está nos perigos dos campos de batalha – e sim no trajeto para casa.
Guerreiros associados
A EXPANSÃO DA INTELIGÊNCIA e autonomia robóticas suscita questões profundas sobre que papéis é apropriado terceirizar para essas máquinas. Decisões nesse sentido precisam levar em conta não só a efi cácia dessas máquinas quando em combate quanto o signifi cado de tal transferência de responsabilidade para comandantes humanos, do ponto de vista político, ético e legal. A alternativa mais provável num futuro próximo é que os robôs assumam a aparência de “guerreiros associados”. Nessa conjuntura, equipes mistas de humanos e robôs trabalharão em conjunto, cada uma fazendo o que faz melhor. O elemento humano talvez venha a desempenhar papel parecido com o de um meia no futebol, armando jogadas para os robôs companheiros de equipe – porém, dando a eles, ao mesmo tempo, autonomia sufi ciente para reagir a mudanças de circunstâncias.
Esses notáveis desenvolvimentos talvez ainda não capturem por inteiro a história de para onde vai a robótica, o que isso signifi ca para o nosso mundo e o futuro das técnicas de guerra. As implicações totais não são apreendidas pela descrição das capacidades físicas, assim como não se apreende o signifi cado da pólvora ao notar que ela produziu uma explosão química que permitiu uma trajetória mais longa a projéteis.
Robôs são uma dessas raras invenções que literalmente mudam as regras do jogo. Uma tecnologia “revolucionária” como essa não dá a um lado uma vantagem permanente, como acreditam equivocadamente alguns analistas, porque ela é rapidamente adotada ou adaptada por outros combatentes. Em vez disso, ela causa mudanças radicais e repentinas – não só nos campos de batalha como também nas estruturas sociais em torno deles. Por exemplo, o arco longo de madeira não foi notável simplesmente porque permitiu aos ingleses derrotar os franceses na batalha de Agincourt em 1415, durante a Guerra dos Cem Anos; mais que isso, possibilitou que grupos organizados de camponeses triunfassem sobre cavaleiros, pondo fi m à era do feudalismo.
Um período histórico apropriado para fazer para lelo com o período do início do século 21 é o da Primeira Guerra Mundial. Naquela época, foram introduzidas novas tecnologias estranhas e animadoras vistas como mera fi cção científi ca apenas alguns anos antes; em seguida, foram usadas cada vez mais nos campos de batalha. Foi o conto Land ironclads, de 1903, escrito por H. G. Wells, que inspirou Winston Churchill, então primeiro lorde do Almirantado, a defender o desenvolvimento do tanque. Outra narrativa, de Alan Alexander Milne, criador da muito querida série Winnie-the-Pooh, foi uma das primeiras a sugerir a ideia de usar aeroplanos na guerra; Arthur Conan Doyle (em seu conto Danger!, de 1914) e Júlio Verne (em seu romance Vinte mil léguas submarinas, de 1869) foram os pioneiros do conceito do uso de submarinos na guerra. Os primeiros usuários tiveram uma vantagem, mas ela era volátil. Por exemplo, a invenção e exploração pioneira de tanques pelos ingleses na Primeira Guerra Mundial foram suplantadas apenas 20 anos depois quando os alemães provaram com suas táticas de Blitzkrieg (guerra-relâmpago) que tinham descoberto como usar a nova arma com mais efi cácia.
A trama se adensa
NO INÍCIO DO SÉCULO 21 as circunstâncias foram mais ou menos as mesmas em relação à robótica militar. Tome-se a ideia do que signifi cava antes “ir à guerra”. Para nações democráticas, por muito tempo isso signifi cou um compromisso sério que envolvia conquistar a qualquer custo o apoio público a um esforço que punha em perigo não apenas a vida de fi lhos e fi lhas de cidadãos como a própria sobrevivência do Estado. Sistemas não tripulados (e sua capacidade de executar atos remotos de força) trazem desgaste aos meios de prevenção exercidos por sentimento público – um declínio já iniciado pelo fi m do recrutamento militar compulsório nos Estados Unidos em 1979.
É possível que o distanciamento do combatente humano do teatro de operações torne mais fácil iniciar guerras e até mudar a maneira como as encaramos. Por exemplo, até o primeiro semestre de 2010, os Estados Unidos realizaram mais de 130 ataques aéreos no Paquistão com aparelhos não tripulados Predator e Reaper. Esse número é mais que o triplo do total de ataques com bombardeiros tripulados efetuados no início da Guerra de Kosovo em 1998- 1999. Mas, ao contrário do que houve naquela guerra, ataques aéreos robóticos no Paquistão não desencadearam debate algum no Congresso em Washington e tiveram cobertura relativamente pequena nos meios de comunicação. Em essência, quanto ao confl ito no Paquistão os Estados Unidos estão se envolvendo no que se chamaria anterior mente “uma guerra”, mas sem deliberação pública. O confl ito nem sequer é considerado uma guerra, porque se desenrola sem custo algum em vidas humanas aos Estados Unidos. Em certa medida, esses bombardeios foram altamente efi cazes. Eles mataram 40 líderes da Al-Qaeda, grupos talibãs e militantes aliados, sem que se tivesse de enviar tropas ou pilotos americanos a situações de perigo. Mas as repercussões desses ataques levantam questões que ainda estão por ser totalmente respondidas.
Para começar, qual é o impacto dessa tecnologia na “guerra de ideias” que travamos contra o recrutamento e propaganda do terrorismo? Ou seja, como e por que a realidade dos ingentes esforços dos Estados Unidos para agir com precisão está aparecendo no outro lado do globo através de uma nuvem de raiva e mal-entendidos? Enquanto usamos termos e expressões como “preciso” e “sem custo” para descrever a tecnologia em nossos meios de comunicação de massa, um dos mais importantes jornais do Paquistão declarou que os Estados Unidos são “a principal fi gura a odiar” e “o bode expiatório para todos os propósitos” por causa dos bombardeios. Infelizmente, a expressão drone (avião teleguiado) tornou-se coloquial na língua urdu e aparece em letras de rock que acusam os Estados Unidos de não lutar com honra. Essa questão se torna mais complexa quando se trata de avaliar quem deve ser considerado responsável quando as coisas dão errado. Estimativas de baixas civis variam de 200 a mil. Porém, muitos desses incidentes ocorreram perto de alguns dos líderes terroristas mais perigosos que há por aí. Onde traçar a linha que separa uma coisa da outra?
O signifi cado de “ir à guerra” também muda em 2010. Partir para a batalha sempre signifi cou que o soldado talvez não volte nunca para casa. Aquiles e Ulisses partiram em seus navios para lutar contra Troia. Meu avô partiu de navio para combater os japoneses depois de Pearl Harbor. A guerra por controle remoto modifi cou a verdade tão duradoura dos últimos 5 mil anos de confl itos armados. Cada vez mais soldados acordam, vão de carro para o trabalho, sentam- se à frente de computadores e usam sistemas robóticos para enfrentar insurgentes a mais de 11 mil km de distância. No fim de um dia “em guerra”, eles voltam a seus carros, vão para casa e, como observou um ofi cial da Força Aérea dos Estados Unidos: “Dentro de 20 minutos você está sentado à mesa de jantar falando com seus fi lhos”. A parte mais arriscada do dia deles não está nos perigos dos campos de batalha – e sim no trajeto para casa.
Essa desconexão do campo de batalha leva também a uma mudança demográfi ca quanto a quem faz o que na guerra e ainda provoca questões sobre a identidade do soldado (jovens recémalistados desempenham tarefas antes limitadas a ofi ciais-sênior) ou sobre seu status (o técnico contra o guerreiro) ou sobre a natureza do estresse e fadiga de combate. Operadores de controle remoto podem parecer apenas jogar videogames, mas experimentam um fardo psicológico de combate dia após dia, com vidas no terreno de operações que dependem de seu desempenho sem falha. Seus comandantes descrevem os desafi os de liderar unidades que lutam remotamente como muito diferentes e, às vezes, até mais difíceis que comandar unidades regulares fi sicamente em combate.
Muitos observadores argumentam que essa tendência vai diminuir prováveis enganos em combate, assim como assegurar que as leis da guerra sejam seguidas de maneira uniforme, como se fossem um código de software num processador de computador. No entanto, essa atitude ignora o complexo ambiente da guerra. Um sistema não tripulado é capaz de localizar um homem com um rifl e AK-47 a mais de 1 km de distância e ainda dizer se o disparou recentemente ou não (pela “assinatura térmica” da arma), mas saber se esse homem é insurgente, membro de uma milícia aliada ou simples comerciante será tão difícil para a máquina quanto o é para qualquer soldado. Igualmente, também a antiquíssima “neblina de guerra” (situação em que o inimigo é visível) seguramente não está em vias de eliminação pela tecnologia, como tempos atrás acreditaram o ex-secretário da Defesa americano Donald H. Rumsfeld e outros partidários convictos do campo de batalha digital. Por exemplo, a sofi sticada tecnologia CRAM certa vez tomou um helicóptero do Exército americano por um alvo inimigo por causa de um erro de programação. Por sorte, ninguém saiu ferido. Por azar, no entanto, o que um relatório investigativo descreveu como um deslize de programa em um sistema antiaéreo semelhante na África do Sul produziu resultado menos benigno em 2007. Equipada com um canhão de 35 mm, a arma deveria disparar para o céu durante uma manobra de treinamento. Em lugar disso, ela se ajustou em altura paralela ao chão e disparou em círculo, matando nove soldados antes de esgotar a munição.
É claro que incidentes desse porte despertam imensas preocupações legais. Como se repartiria a respon sabilidade? Em que sistema de leis dá para confi ar como orientação? Esses exemplos demonstram que a tecnologia com frequência avança mais depressa que as instituições sociais. Como reconciliar as leis de guerra do século 20 com a nova realidade?
Um novo começo
NOSSAS DEFINIÇÕES e compreensões da guerra, como ela é feita e mesmo quem deve lutar estão em fl uxo constante, provocado por uma notável tecnologia de imensa capacidade. A humanidade já esteve nesse tipo de situação. Com frequência nos esforçamos para integrar e entender novas tecnologias, e então com o tempo passamos a olhar para o que antes era considerado estranho e inaceitável como completamente normal. Talvez o melhor exemplo disso venha do século 15, quando um nobre francês argumentou serem as armas de fogo ferramentas de assassínio que um verdadeiro soldado não se dignaria a usar. Apenas covardes, escreveu ele, “não ousariam olhar na face dos homens que derrubam a distância com suas ignóbeis balas”.
“Progredimos” muito desde então, mas temos a mesma história hoje com a robótica. O domínio da tecnologia acaba sendo bem mais fácil de encarar do que os dilemas de política que se originam das incríveis capacidades de máquinas que podem mudar o mundo em torno delas. É por essa razão que alguns cientistas invocam um paralelo histórico diferente – em relação à posição em que estamos agora com a robótica – do usado quanto à arma de fogo ou ao aeroplano e citam, em seu lugar, a bomba atômica. Estamos criando uma excitante tecnologia que alarga as fronteiras da ciência, mas desperta perturbadoras preocupações para além do domínio científi co que é até possível que venhamos a lamentar essas elaboradas criações de engenharia, como aconteceu com alguns dos projetistas das primeiras ogivas nucleares. É claro que, exatamente como os inventores dos anos 40, os que desenvolvem a robótica continuam seu trabalho porque ela é útil do ponto de vista militar e altamente rentável, além de representar a vanguarda da ciência. Como supostamente teria dito Albert Einstein: “Se soubéssemos o que estávamos fazendo, aquilo não seria chamado de pesquisa, não é?”.
A história real é: o que um dia animou apenas convenções de fi cção científi ca tem de ser discutido seriamente – e não apenas no Pentágono. Esta narrativa é de importância não só para o que acontece em reuniões de grupos de comércio de robótica, em laboratórios de pesquisa ou em campos de batalha, mas também para como a história global da humanidade se desenrola. O ser humano deteve um monopólio de 5 mil anos sobre como lutar na guerra. Esse monopólio acabou.
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