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quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Inteligência russa ampara acordos de armas duvidosos

Viktor Bout
O serviço de inteligência militar russo, GRU, apoia mercadores de armas duvidosos em Moscou em troca de uma fatia dos lucros. Viktor Bout, suposto vendedor de armas que foi extraditado para os EUA na terça-feira (16/11), pode lançar uma luz embaraçosa sobre essas conexões caso preste testemunho à justiça.

O ambiente estava excelente quando a secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton reuniu-se com seu colega russo Sergey Lavrov, em Hanói, recentemente. Os dois altos diplomatas se parabenizaram sobre seu sucesso conjunto no combate aos cartéis de drogas afegãos. Apenas uma coisa que esfriava o ambiente: o caso de Viktor Bout, um negociador de armas russo que estava preso em Bancoc.

O ministro de relações exteriores russo puxou Clinton para o lado, e expôs a posição de Moscou em termos bem claros: “É hora dos EUA pararem de pressionar as autoridades tailandesas”. Moscou e Washington estão envolvidos em uma dura disputa sobre Bout, que está sob custódia desde março de 2008 e foi finalmente extraditado para os EUA na terça-feira. O primeiro-ministro tailandês, parecendo irritado, já tinha dito que “os EUA e a Rússia deveriam resolver essa questão”.

A Rússia queria impedir a extradição de Bout a todo custo. A razão era clara: ele sustenta conexões próximas com círculos de armas e de inteligência em Moscou. De acordo com uma investigação da ONU, Bout teria contrabandeado milhões de dólares em carregamentos de armas, particularmente na África, e infringido regras de embargo. Se fosse chamado a testemunhar em cortes americanas, o Kremlin poderia enfrentar revelações embaraçosas.

Laços estreitos

Pesquisas feitas pelo “Spiegel” em Moscou –um eldorado para negociantes de armas mundiais- fornecem evidências de laços estreitos entre comerciantes de armas e o GRU, serviço militar de inteligência russo.

“Nossos serviços de inteligência fiscalizam e frequentemente controlam quase todos os negociantes de armas em Moscou”, diz uma pessoa que detém informações privilegiadas. Outro especialista da indústria descreve o modelo de negócios nas seguintes palavras: “Vendas de armas clandestinas são feitas por meio de empresas de membros aposentados do GRU”. Agentes ativos do GRU supervisionam esses acordos, conforme afirma o especialista, e os lucros são divididos, com a inteligência russa embolsando cerca de 30%.

Os negócios com armas cresceram a uma proporção tamanha que até o serviço de inteligência exterior russo, o SVR, agora alerta contra os danos que o “mercado cinzento de armas” está fazendo à imagem russa junto às nações da ex-União Soviética. De acordo com um documento secreto, “ex-funcionários dos serviços de inteligência da Rússia e da Ucrânia estão se tornando cada vez mais presentes no comércio de armas mundial”.

Além de uma dúzia de barões de armas russos, comerciantes de Israel e do Paquistão também estão em atividade no mercado em Moscou. Após a expansão da Otan para a Europa Oriental, os negociantes que antes operavam na República Tcheca, Polônia e Bulgária dirigiram-se mais para leste. Em um caso, um paquistanês que mora em Moscou e se faz de mercador de têxteis teria negociado a venda de helicópteros e mísseis X-55 para o Paquistão.

“Ele pagava sempre adiantado”

Arcady Gaydamak, empresário russo israelense multimilionário, faz os negócios de Bout parecerem relativamente mais modestos. Bout fez sua fortuna com “acordos na faixa de US$ 10 a 30 milhões, com a venda de grandes quantidades de pistolas, munição, artilharia leve e helicópteros, mas a maior parte era de tecnologia antiga”, diz um membro da indústria de Moscou. Mas com pessoas como Gaydamak, os negócios valem “somas entre US$ 100 milhões e US$ 1 bilhão, e envolvem a venda de sistemas de armas de alta qualidade para governos”.

Gaydamak comprou armas para Angola, Belarus e Ucrânia nos anos 90. Um antigo oficial que tinha servido como conselheiro militar em Angola na era soviética, quando conheceu o atual presidente angolano José Eduardo dos Santos, tinha assinado os contratos em nome de Moscou. A autoridade até hoje fala de Gaydamak: “Todo mundo gostava de fazer negócios com ele, porque ele sempre pagava adiantado”.

Em outubro de 2009, em um julgamento que passou a ser chamado de “Angolagate”, uma corte francesa sentenciou Gaydamak a seis anos de prisão, a despeito de sua ausência. Os franceses concluíram que tinham provas que o russo havia traficado armas ilegalmente no valor de US$ 790 milhões para um país africano dividido pela guerra.

A salvo em Moscou

Um mandado internacional foi emitido para sua prisão, mas isso não impediu Gaydamak de concorrer à prefeitura de Jerusalém em 2008, sem, contudo, obter sucesso. Ele agora mora em Moscou, onde escreve livros sobre sua coleção de móveis antigos. Gaydamak, que é ex-proprietário do jornal semanal “Moskovkiye Novosti”, pode se sentir seguro na capital russa. Seus defensores estão na cidade, onde ele é consultor da embaixada angolana e é credenciado junto ao Ministério de Relações Exteriores russo.

Com uma mistura de choque e admiração, o jornal moscovita “Argumentary Nedeli”, publicou informações sobre o mercado mundial de armas ilegais, que gira em torno de US$ 5 bilhões, e disse: “É controlado por nosso pessoal”.

Até hoje, há especulação que o que foi enviado ao Irã e ao grupo palestino Hamas a bordo do Arctic Sea, um cargueiro que foi sequestrado no Mar Báltico sob circunstâncias misteriosas no verão de 2009, não era um carregamento de madeira e sim um arsenal. Os sequestradores eram criminosos suspeitos da Europa Oriental. O Kremlin empregou quatro de seus navios da marinha para interceptar o cargueiro perto de Cabo Verde.

Caças para Darfur

Em outubro, inspetores do Conselho de Segurança da ONU descobriram quatro bombardeiros Su-25 em um aeroporto na região de Darfur, no Sudão, onde há guerra civil desde 2003. Os aviões fazem parte de um carregamento de 15 caças fabricados na Rússia, mas depois vendidos ao Sudão via Belarus. A Anistia Internacional acusa Moscou de violar um embargo da ONU de 2005 ao vender armas e helicópteros Mi-24 para o Sudão. A Rússia nega as acusações. O governo de Belarus também buscou defender seu papel alegando que o Sudão tinha assegurado que os caças Su-25 não seriam usados na região da crise.

Rebeldes em Darfur, porém, informaram que o governo central começou a bombardear suas posições com caças novamente no início de outubro. O “Spiegel” soube que as peças sobressalentes para os caças Su-25 foram enviadas à África da Rússia via Belarus, e que foram fornecidos tradutores para o treinamento dos pilotos sudaneses.

Na era soviética, o GRU esteve envolvido em carregamentos de armas para grupos rebeldes na África, Ásia e América Latina, em países onde o Kremlin queria instalar governos comunistas. As redes permaneceram intactas após o colapso da União Soviética. Nos anos 90, Moscou usou uma agência de exportação do governo para fazer suas vendas de armas oficiais. Carregamentos para os palestinos, contudo, foram feitos pelos canais cinzentos para evitar prejudicar as relações com Israel.

Conexões úteis

Viktor Bout também desenvolveu sua rede em seus anos no sul da África. De 1975 aos anos 90, o Kremlin empregou consultores militares para ajudarem nos movimentos comunistas em Angola e Moçambique. Bout fazia parte de um grupo de centenas de intérpretes trabalhando para os assessores militares. Os intérpretes ficaram em uma posição conveniente pra complementar seus salários com contratos no mercado negro. Eles contrabandearam relógios e televisores da Rússia para o sul da África e pagaram pilotos para levarem carregamentos que iam desde 100 caixas de Heineken até duas toneladas de peixe fresco, do ponto A ao ponto B pela floresta. Os russos chamaram o sistema de “candonga”, a palavra portuguesa para o mercado negro.

Os lucros eram “exorbitantes”, diz um dos homens envolvidos nas operações na época. “O mais importante, todavia, é que passamos a conhecer os políticos importantes, os oficiais militares e os poderosos”, diz o antigo intérprete militar. “Nós bebemos vodca e desfrutamos de putas com eles. Isso cria laços”. Segundo o ex-intérprete, Bout sempre foi mais contido que os outros, apesar de aparentemente conhecer suficientes pessoas que seriam úteis para ele depois.

Em uma recente entrevista ao “Spiegel”, Bout reclamou das condições na prisão de Bancoc onde estava detido. “Tenho que usar correntes de ferro pesadas nos pés”, disse ele. “Eles me tratam apenas um pouco melhor do que um animal”.

As autoridades em Moscou pareciam otimistas com as perspectivas de assegurar sua libertação. Mas suas esperanças foram em vão.

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