Após analisar documentos recém-encontrados sobre o período de Hitler como soldado na Primeira Guerra Mundial, o historiador Thomas Weber concluiu que ele não foi o herói que mais tarde afirmou ser e que a sua radicalização não deveria ser necessariamente atribuída às suas experiências de tempo de guerra.
O sangue que saía da têmpora direita formou uma grande poça no piso. Adolf Hitler, o ditador e o maior assassino de massas de todos os tempos, acabou com a própria vida usando uma bala da sua pistola nas catacumbas do seu bunker em Berlim. Foi uma morte bem planejada.
Na sua morte, Hitler parecia mais um homem que saíra do passado. Ele usava apenas uma capa militar cinzenta simples adornada com duas medalhas – a medalha concedida aos que foram feridos em combate e a Cruz de Ferro de Primeira Classe –, ambas da Primeira Guerra Mundial. Durante toda a sua vida, Hitler teve orgulho dessas medalhas porque elas foram “manchadas com a terra da França e a lama de Flandres”.
O “testamento político” de Hitler, ditado pouco antes de ele cometer o suicídio, em 30 de abril de 1945, tinha como objetivo transmitir a mensagem de que ele, como homem do povo, havia sido profundamente influenciado pelas suas primeiras experiências. O texto fala sobre como, a partir de 1914, Hitler serviu como “voluntário” e prestou a sua “modesta contribuição para a Primeira Guerra Mundial, que fora imposta ao Reich alemão”.
Anteriormente, Hitler havia se gabado de ter “arriscado a vida, provavelmente todos os dias” e de ter sempre “olhado a morte nos olhos”. Em outras palavras, segundo o seu relato, ele foi um herói que, “como se por um milagre”, preservou a saúde, desafiando a chuva de balas e mantendo-se destemido no “período mais grandioso e inesquecível da sua vida terrestre”.
Uma teoria bastante disseminada diz que foram as experiência de Hitler na Primeira Guerra Mundial que o radicalizaram e o colocaram na rota para tornar-se um militante e implacável antissemita. Segundo essa leitura, a Primeira Guerra Mundial pode ser vista como a catástrofe original do século 20. Por exemplo, no seu livro, “The Dictators” (“Os Ditadores”), o historiador britânico Richard Overy concluiu: “A guerra criou Hitler, assim como a revolução criou Stalin”. E, Ian Kershaw, um colega britânico de Overy, acredita que a visão de mundo de Hitler tornou-se mais precisamente definida naquela época. Joachim Fest, cuja obra prima, “Hitler”, tornou-se a biografia definitiva dele, também mostrou-se convencido dessa relação causal na vida do ditador.
Mentiras úteis
Mas um pesquisador mais novo vê as coisas de uma forma completamente diferente – e que sem dúvida gerará muita discussão. Thomas Weber, um historiador de 37 anos de idade da cidade alemã oriental de Hagen, que leciona na Universidade de Aberdeen, na Escócia, examinou um grupo de documentos que – por incrível que pareça – permaneceram praticamente intocados sob camadas de poeira no principal arquivo estatal da Baviera. A descoberta inclui documentos referentes ao regimento, à brigada e à divisão de Hitler, registros de tribunais com depoimentos de testemunhas, e cartas confiscadas que foram enviadas pelo correio de campo de batalha – um verdadeiro tesouro para qualquer historiador.
No seu livro, “Hitler's First War” (“A Primeira Guerra de Hitler”) - publicado pela primeira vez na Alemanha nesta semana –, Weber usa esses documentos para ajudar a refutar as teorias amplamente divulgadas a respeito da juventude de Hitler e a desmistificar certas lendas quanto a ele. Por exemplo, Weber concluiu que a unidade em que Hitler serviu não foi de maneira alguma uma precursora do Partido Nazista, conforme alguns pesquisadores afirmaram. Na verdade, conforme Weber e os seus pesquisadores descobriram, somente 2% dos soldados daquela unidade se filiariam mais tarde ao Partido Nazista.
Além do mais, Weber descobriu que Hitler jamais foi um soldado de linha de frente, conforme ele e outros propagandistas nazistas diriam mais tarde. Em vez disso, Weber diz que essa falsificação histórica foi um ato de natureza altamente política que se seguiu ao chamado Machtergreifung, a captura do poder pelos nazistas. De fato, conforme escreve o historiador Gerd Krumeich, isso foi necessário porque “não havia nenhuma superposição entre as opiniões da sociedade em geral e a chamada 'revolução' nazista” que tivesse sido tão sólida quanto à opinião compartilhada do povo em relação ao legado de Primeira Guerra Mundial e a todos os acontecimentos dramáticos a ela associados. Na realidade, porém, Hitler passou quase todos os quatro anos da Primeira Guerra Mundial alguns quilômetros atrás da principal frente de batalha e, portanto, frequentemente fora das áreas mais perigosas. A sua função de mensageiro significava também que ele, de maneira alguma, esteve no “meio do bombardeio”.
Segundo a provocante conclusão de Weber, a identidade política de Hitler não foi impressa na sua consciência por experiências traumáticas na frente de batalha. Na verdade, escreve Weber, Hitler estava “confuso” ao retornar da guerra, e a sua identidade política “ainda poderia ter se desenvolvida em diferentes direções”.
Derrubando a mitologia de Hitler
Hitler já tinha 25 anos de idade quando se tornou soldado, e ele era supostamente um desertor. Em maio de 1913, um pintor de cartões postais sinistro foi para a Baviera “quase que com certeza em uma tentativa de escapar do recrutamento militar austríaco”, escreve Weber. Mas a essa altura, rodeado pelo frenesi animado e patriótico do início da Primeira Guerra Mundial, ele foi arrastado para a batalha – uma luta, conforme escreveu Hitler, que “não foi imposta às massas por Deus, mas que foi desejada pelo povo inteiro”. Hitler foi enviado para o Regimento Bávaro de Reserva da Infantaria Número 16 (RIR 16), comandado pelo coronel Julius List. Segundo Weber, o RIR 16 não era um regimento de voluntários, conforme ele tem sido descrito, e o regimento de List não estava cheio de estudantes, artistas e indivíduos recém-formados pela universidade, conforme muitos propagandistas nazistas mais tarde alegariam.
Na verdade, a parcela de acadêmicos jovens e genuínos entre os cerca de 30% de soldados do exército que eram voluntários era muito pequena. Em vez disso, um número desproporcionalmente grande de judeus se apresentou para defender a “Pátria Mãe” e, conforme Weber conclui, é improvável que qualquer um deles tenha sofrido um tratamento antissemita. Ao contrário, os oficiais do Kaiser estavam aparentemente ansiosos por possibilitar que os soldados judeus praticassem a sua fé na frente de batalha.
No final de outubro de 1914, o mal treinado e inadequadamente equipado regimento passou pelo seu “batismo de fogo” durante batalhas pela vila flamenga de Gheluvelt. Com um exagero dramático, Hitler alegou que foi o único sobrevivente do seu pelotão, algo que parece ser improvável. Segundo os registros, 13 homens na sua companhia morreram em 29 de outubro. No seu livro “Mein Kempf” (“Minha Luta”), Hitler escreveu que essa batalha foi apenas “o início”, e acrescentou: “A guerra continuou mais ou menos da mesma forma, ano após ano, mas o horror substituiu o romance do campo de batalha”.
Depois de Gheluvelt, Hitler atuou como mensageiro, geralmente fora da linha de fogo da artilharia e das metralhadoras, encaixado no relativamente confortável escalão de retaguarda, um local em que os soldados contavam até com períodos de folga. Tais condições eram “como um paraíso”, escreve Weber, aos olhos dos soldados que estavam no front, e que enfrentavam constantemente a morte.
Promovendo o mito do herói de guerra
Após o a sua fracassada tentativa de golpe em 1923, e um breve período passado na prisão, Hitler e os seus asseclas utilizaram espertamente as supostas experiências de guerra desse candidato a herói da Primeira Guerra Mundial para obter mais votos na rota para o poder. “Foi, então, realmente no período de 1925 a 1933 que o mito do Regimento List assumiu um papel central na retórica de Hitler”, escreve Weber.
Ex-camaradas publicaram versões açucaradas das suas memórias com títulos como “Com Adolf Hitler no Regimento List Bávaro RIR 16” e “Adolf Hitler no Campo de Batalha, 1914-1918”. Um autor escreveu, exageradamente, que apenas através dos quadros do seu regimento “o homem poderia ter se tornado o guia para uma nova era e aquele líder natural e inquestionável”. Até mesmo em um livro infantil, Hitler foi descrito como sendo “sempre um dos soldados mais corajosos em todas as batalhas”.
Quem quer que fizesse objeções a essa falsificação da história era impiedosamente perseguido – e mandado para um campo de concentração. Hugo Gutmann, por exemplo, um dos oficiais judeus do regimento, caiu nas garras da Gestapo em 1937 e ficou preso durante dois meses por “comentários desaprovadores, derrogatórios e falsos sobre o Führer”.
O mesmo tenente havia feito com que Hitler, assim como todos os mensageiros, recebesse a Cruz de Ferro de Primeira Classe – e contou o fato a um oponente do regime nazista. Essa foi a mesma medalha que Hitler estava usando quando se suicidou.
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