Vários dos líderes de milícias locais que ajudaram a derrubar Muammar Gaddafi não estão honrando a promessa que fizeram de abandonar as armas e dizem agora que pretendem preservar a sua autonomia e as suas decisões políticas influentes atuando como “guardiães da revolução”.
A questão das milícias é uma das mais urgentes enfrentadas pelo novo governo provisório da Líbia, o Conselho Nacional de Transição. Várias brigadas avulsas de voluntários armados surgiram em todo o país, e com frequência obedecem às ordens dos conselhos de milícias locais, que se tornaram os verdadeiros governos em cidades como Misrata e Zintan, bem como na capital, Trípoli.
O governo provisório do primeiro-ministro Mahmoud Jibril, que terminará em breve, sugeriu em uma entrevista coletiva à imprensa no último domingo (30) que, em vez de esperar que as milícias locais sejam dissolvidas, o Conselho Nacional de Transição deveria incorporá-las, incluindo representantes desses grupos.
“Neste momento ninguém quer abandonar as armas, e muitas tribos e cidades estão na verdade acumulando armamentos 'apenas por precaução'”, explica Mahmoud Shammam, porta-voz da diretoria executiva do conselho.
Observando que tem havido embates esporádicos entre milícias, bem como assassinatos por vingança, vários líderes civis, juntamente com alguns combatentes, dizem que o fato de as milícias terem deixado de simplesmente postergar a entrega das suas armas para passarem a afirmar ativamente que terão um papel político contínuo representa um enorme desafio para a autoridade frágil do conselho.
“Isso poderá gerar uma balbúrdia, um conflito entre os conselhos”, adverte Ramadan Zarmoh, 63, um líder do conselho militar de Misrata, que argumenta que a milícia da cidade deveria se dissolver imediatamente após a formação de um novo Ministério da Defesa. “Se nós desejamos democracia, não poderemos ter simultaneamente algo desse tipo”.
No entanto, a visão dele parece ser minoritária. Muitos membros de conselhos militares insistem que precisam permanecer armados até que uma nova constituição seja ratificada, já que eles não confiam no fraco governo provisório para conduzir a Líbia à democracia por conta própria.
“Somos nós que estamos mantendo o poder – as pessoas que lutaram no campo de batalha –, e nós não vamos desistir até que tenhamos um governo legítimo que emergirá de eleições livres e representativas”, afirma Anwar Fekini, um advogado franco-líbio que é líder de um grupo armado da região de montanhas do oeste do país, e que também tem fortes contatos com a liderança do Conselho de Transição.
“Nós asseguraremos que o país será conduzido a uma constituição civil e a um sistema democrático”, acrescenta ele. “E usaremos todos os meios disponíveis para isso – e acima de tudo o nosso poder bélico”.
Líderes de milícias já manifestaram a sua disposição para ingressar no processo político. Antes que o governo provisório nomeasse um novo primeiro-ministro na noite da última segunda-feira, líderes locais – falando à imprensa sob a condição que não tivessem os seus nomes revelados, a fim de evitar um conflito aberto com o Conselho Nacional – fizeram ameaças, dizendo que se não houvesse acordo quanto a um candidato que eles considerassem satisfatório, os conselhos militares locais de cidades no oeste da Líbia poderiam interceder para decidir a questão.
A escolha do primeiro-ministro, Abdel Rahim el-Keeb, um engenheiro e empresário de Trípoli, agradou às cidades do oeste do país e fez com que a questão fosse resolvida pacificamente. Mas as autoridades do conselho nacional dizem que a ameaça de intervenção por si só prejudica a transição rumo à democracia civil, na qual as disputas serão resolvidas com urnas de votação, e não com armas.
Shammam diz que uma intervenção armada “seria um desastre”, e que a adoção de uma nova constituição deveria ocorrer “sob o guarda-chuva da lei – destacamentos policiais e juízes –, e não por meio de conselhos militares e pela força das armas”.
Ele e outros membros do Conselho Nacional dizem esperar que, à medida que o próximo conselho de transição assuma o poder e comece a construir um exército nacional, uma meta que até o momento tem sido difícil de alcançar, os conselhos militares locais comecem a se dispersar. Em uma referência à prometida eleição de um governo ainda neste ano, ele acrescenta: “Se os conselhos militares começarem a se expandir por conta própria, eles acabarão ocupando o lugar de uma assembleia nacional”.
Alguns indivíduos apontam para o vizinho Egito, onde o conselho de oficiais militares que assumiu o poder após a queda do presidente Hosni Mubarak adiou a transição para o controle civil. Outros afirmam que existe o perigo de a situação da Líbia se tornar parecida com o caos que reina no Iêmen ou na Síria, já que existem diversas milícias autônomas desejosas de assumir um papel político – em Trípoli, em cidades montanhosas do oeste, como Zintan, em Misrata e na cidade oriental de Benghazi.
No leste do país e em Trípoli, algumas das maiores e mais bem equipadas brigadas estão associadas a grupos islamitas que atualmente formam partidos políticos. “Elas ficarão de posse das suas armas enquanto não fizeram parte do poder”, prevê Shammam, que é um liberal.
Já houve embates entre grupos armados. Há duas semanas, combatentes de Zintan e de Misrata entraram brevemente em conflito no Aeroporto Internacional de Trípoli, o que resultou na morte de três pessoas, diz Abed Rzag al Bakesh, 40, um líder militar de Zintan. Ele diz que o problema foi causado por provocações feitas por indivíduos leais a Gaddafi disfarçados de rebeldes.
Na semana passada, um tiroteio irrompeu entre dois grupos na Praça dos Mártires, no centro da capital, um local que outros combatentes não podem mais frequentar, por ordem do conselho militar local.
Após a conquista, no mês passado, do último reduto de Gaddafi, em Sirte, combatentes de Misrata e de Benghazi entraram brevemente em conflito em uma disputa por saques, diz o comandante de Misrata, Zarmoh. Ninguém, entretanto, saiu ferido.
E, no início da manhã da última segunda-feira (31), um grupo de combatentes de Zintan atacou um hospital de Trípoli, em busca, segundo eles, de um indivíduo leal a Gaddafi que estaria sendo tratado naquela instalação.
“O Conselho Nacional de Transição parece estar impotente”, diz Abdurraham K. Shater, um respeitado colunista do “The Nation”, um dos diversos novos jornais do país. “Ele age com um marido traído que não sabe o que está ocorrendo às suas costas, ou que sabe, mas aceita a situação”.
O Conselho Nacional de Transição prometeu em uma “declaração constitucional” que dentro de oito meses após a seleção de um novo governo fará eleições para uma assembleia nacional, que fiscalizará a redação de uma constituição (na sua entrevista coletiva à imprensa, Jibril pareceu sugerir que se deixasse a “declaração” de lado, o que fez com que surgissem dúvidas quanto à sua legitimidade).
Sem contarem com nenhum histórico de democracia eleitoral, as autoridades provisórias da Líbia precisam delinear distritos eleitorais e elaborar um sistema de votação – decisões que inevitavelmente farão com que surjam vencedores e perdedores, sob os aspectos geográfico e político.
Durante a rebelião, autoridades do Conselho Nacional de Transição prometeram que todos os líbios terão voz igual, independentemente da região em que vivem e da posição política que ocupam.
Mas líderes em Misrata, um centro comercial que suportou um longo cerco para emergir como o arsenal da revolta líbia, dizem que estão defendendo a adoção de um critério de quatro pontos para representação que aumentaria a sua influência, em detrimento de cidades menores ou daquelas que permaneceram leais a Gaddafi. Os quatro pontos seriam população, tamanho, produção econômica e “prioridade na libertação do país”.
Alguns indivíduos das áreas orientais próxima a Benghazi, que foram negligenciadas por Gaddafi, que favorecia a região ocidental, estão agora pedindo que a Líbia retorne a uma estrutura federal flexível que poderia protegê-los de uma dominação por parte de Trípoli e Misrata.
Mas Azza Kamil al-Maghour, uma advogada de direitos humanos que recentemente organizou uma conferência em Misrata para falar sobre o processo de transição, diz que ficou particularmente estupefata diante da determinação ostensiva dos rebeldes em introduzir armas no processo político: “Eles se levantaram e disseram, 'Nós não vamos abandonar as nossas armas até que a constituição seja redigida'”, conta al-Maghour. “Não se pode ter uma sociedade civil democrática com armas – como é que seriam feitas eleições?”.
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