quarta-feira, 25 de julho de 2012
Der Spiegel - O estágio final na Síria: A batalha sangrenta de Assad para se manter no poder
O presidente Bashar al-Assad está perdendo o controle do poder na Síria e tem respondido promovendo morte e destruição entre seus oponentes. Com a situação mudando a favor dos rebeldes, ele parece capaz apenas de intensificar a violência.
Tudo está muito quieto. As cigarras e pássaros foram silenciados e tudo o que se pode ouvir é o som do vento farfalhando entre as árvores --apenas ocasionalmente interrompido pelo barulho das persianas de metal e placas crivadas de buracos de bala. Mas vozes humanas, sons de carros e todos os outros sons associados a uma cidade se foram.
No lugar deles está um zumbido esporádico que se aproxima e então passa acima da cabeça. Às vezes você nem mesmo tem esse alerta antes do estrondo de uma explosão cortar o ar e o solo sacudir a meio quilômetro de distância. Isso acontece repetidas vezes, 20 vezes, 150 vezes, até mesmo 550 vezes por dia. Toda vez, 50 quilos de aço e explosivos destroem muros, dizimam prédios e lançam chuvas de estilhaços no ar, rasgando toda a vida ao redor.
Esta é Rastan. Ela já foi uma cidade de 55 mil habitantes, situada em uma parte idílica da região central da Síria, entre as colinas e um reservatório, quase exatamente no meio do caminho entre Homs e Hama.
Hoje, Rastan é um inferno sitiado, sob ataque de todos os lados por tanques, morteiros e lançadores de foguetes. Todos os principais acessos por estrada estão fechados. As mesquitas estão repletas de buracos de projéteis de artilharia, e quadras inteiras foram reduzidas a escombros. Postes de luz estão pendurados em ângulos estranhos entre os muros em ruínas. Uma padaria que fornecia para a cidade inteira foi destruída por morteiros meses atrás, duas torres de caixa d’água foram feitas em pedaços e, na semana passada, o último grande depósito de comida foi atingido por fogo de artilharia e queimou por um dia e meio.
Ninguém poderia prever que Rastan se tornaria um centro da resistência contra a ditadura do presidente Assad e sua família. Mustafa Tlass, natural de Rastan e que se tornou ministro da Defesa sírio quatro décadas atrás e manteve esse cargo por 32 anos, transformou a cidade em um centro de treinamento de elite para oficiais sunitas. Aproximadamente um quinto de todo o corpo de oficiais vem de Rastan --eles podem não ocupar os escalões mais altos, mas há muitos deles.
Uma espécie de paralisia
Entender Rastan é fundamental para saber por que esta revolução se espalhou pelo país. As marchas de protesto em Rastan foram inicialmente pequenas e pacíficas. Como em outras partes do país, elas também foram brutalmente reprimidas, primeiros com cassetetes e depois com armas. Os moradores de Rastan pegaram em armas mais rapidamente do que os de outras cidades. Os jovens oficiais, filhos de Rastan, estiveram entre os primeiros a iniciar a resistência armada contra o regime.
Entre 3.000 e 5.000 pessoas ainda vivem no inferno de Rastan. Todas as demais ou fugiram ou foram mortas. Mas agora que até mesmo a área ao redor está sob bombardeio –e as tropas do regime começaram a atirar contra pessoas nas barreiras nos arredores da cidade sem nenhum motivo aparente, uma espécie de paralisia tomou conta de Rastan.
Algumas pessoas resistem por desafio, sentadas em cadeiras em frente às suas casas e dizendo que nada e nem ninguém as expulsará. Outras parecem ter medo de ir a qualquer lugar, se recusando a se mover até mesmo um metro, independentemente de quão grande o risco se torne. Um velho funcionário público, por exemplo, está sentado em meio a pilhas de escombros cinzentos e alega que deseja ir logo para Homs, a capital provincial igualmente devastada, quase completamente inacessível. Ele diz que deseja receber seu salário, que ele não recebe há sete meses, apesar de não ousar sair de sua casa.
Permanecer em Rastan é loucura. Mas a outra loucura, a de um regime que declarou guerra contra suas próprias cidades, está se espalhando por toda a Síria. Ela afetou primeiro Homs e Rastan, seguida por Talbisa, uma cidade entre as duas cidades. Sempre que as tropas de Assad encontram muita resistência, bairros, vilarejos e áreas inteiras são bombardeados de longe ou do ar. Toda mudança nos alvos da artilharia provoca novas ondas de refugiados, que são expulsos de uma cidade para outra, com tanto medo de se moverem quanto de permanecerem em um lugar.
Uma grande tensão tomou conta da Síria. Por um lado, o regime permanece militarmente no controle de quase todo o país, pelo menos a ponto de poder atacar em qualquer lugar a qualquer momento. Por outro, parece que basta apenas um leve empurrão para causar o colapso do regime, agora que ficou claro que nada pode deter esta rebelião.
Uma explosão fatídica
Esse empurrão pode muito bem ter ocorrido na última quarta-feira. Uma explosão atingiu o prédio que abriga o Conselho de Segurança Nacional, no rico bairro de Maliki em Damasco, onde vivia a família Assad até o início do levante. A bomba não parece ter sido particularmente poderosa, mas seu impacto político foi imenso. A explosão colocou um fim a uma reunião entre importantes autoridades do regime, responsáveis pela condução da guerra contra a insurreição. Ela matou Assef Shawkat, o cunhado do presidente e seu principal comandante militar, o ministro da Defesa e um importante oficial. O ministro do Interior também pode ter morrido na explosão, apesar do regime Assad insistir que ele ficou apenas ferido. De forma reveladora, a única pessoa que não estava na reunião era o próprio presidente Bashar al-Assad.
Horas depois, o grupo “Liwa al Islam”, ou “Batalhão do Islã”, reivindicou a responsabilidade pelo atentado. O regime, por sua vez, disse que um guarda-costas cometeu um atentado suicida a bomba.
Apesar disso aparentar fazer sentido à primeira vista, dado o nome do grupo, o Liwa al Islam contesta a versão do governo. Segundo um homem que conhece o grupo há muito tempo, não foi um homem-bomba sunita, mas sim “um profissional cristão que colocou os explosivos”. Isso é impossível de provar e a noção de que um cristão ajudaria um grupo como o Liwa al Islam não soa particularmente convincente. Ainda assim, a história bate com a preferência da família Assad por contar com cristãos ou alauitas em áreas sensíveis, e não com sunitas.
Segundo a fonte, reparos foram feitos um mês e meio atrás no forro da sala de conferência onde o grupo se reúne regularmente, um espaço de cerca de quatro por cinco metros de tamanho. “Quando o profissional recebeu o serviço”, disse a fonte, “ele entrou em contato com o Liwa al Islam”, que está livremente alinhado ao Exército Livre Sírio (ELS). Ele colocou os explosivos entre os cabos no espaço do forro, disse a fonte. Então, prosseguiu a fonte, outro informante de dentro do conselho de segurança sírio manteve o grupo atualizado e avisava quando importantes autoridades do regime se reuniriam lá --o motivo, segundo ele, para ter demorado tanto para o ataque ser executado. O grupo não queria matar inocentes, ele disse: “Nós não somos terroristas”. A fonte disse que o profissional deixou o país horas depois da explosão, mas que sua cidade natal deve permanecer em segredo mesmo assim: “Caso contrário, eles a destruirão”.
Dias após o atentado, Assad começou a usar tanques, helicópteros e foguetes em sua própria capital. Nesta semana, a guerra urbana sangrenta estourou em vários bairros de Damasco. Ainda assim, o regime parece manter o poder em Damasco e na região central da Síria.
‘Eles usarão tudo’
Mas seu poder parece estar desintegrando nas margens do país. As tropas posicionadas ao longo da fronteira com Israel foram ordenadas a retornar para Damasco. Na última quinta-feira, os militares em duas importantes travessias de fronteira para a Turquia deixaram seus postos. A maior travessia de fronteira para o Iraque, em Abu Kamal, também está nas mãos dos rebeldes. Moradores locais e o ELS agora controlam dois setores de Aleppo, a capital comercial no norte, que por muito tempo permaneceu tranquila.
A fase final teve início. O regime cairá. Mas não está claro se isso levará dias ou semanas, ou se o colapso do poder do regime nas margens apenas levará a um aumento da brutalidade no centro. Também não está claro se as previsões de Abu Bashar, um ex-agente de inteligência de Rastan que desertou para o ELS, se concretizarão. Ele disse, com base em seu conhecimento profundo e de longa data do regime, que “eles usarão tudo o que tiverem se caírem. Tudo!”
Foi um sentimento aparentemente ressaltado poucos dias depois, quando um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores sírio ameaçou abertamente nesta semana que o regime Assad poderia usar armas químicas. Ele insistiu que essas armas nunca seriam usadas dentro do país, mas alertou que poderiam se tornar uma opção caso a Síria seja “exposta a uma agressão externa”. Mas segundo a propaganda do regime, essa agressão já está em andamento. Desde o início da revolução, a mídia controlada pelo Estado atribui constantemente a insurreição a “terroristas” e a uma “conspiração internacional”. O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, alertou Assad para que não cometa um “erro trágico”, mas até o momento todos esses alertas do exterior foram ignorados em Damasco.
Estima-se que a Síria tenha um dos maiores arsenais do mundo de armas químicas, incluindo toneladas de sarin, gás mostarda e agente nervoso VX. Ela também tem foguetes com os quais pode dispersar o gás tóxico por um raio de várias centenas de quilômetros.
É um cenário que deixa os israelenses particularmente preocupados. Falando nas ocupadas Colinas de Golan na semana passada, o ministro da Defesa israelense, Ehud Barak, apontou que podia ouvir os ecos dos combates entre o governo e a oposição. “A queda do regime não é de modo algum abstrata”, ele alertou. “É real e está se aproximando.”
Parte 2: Sangue indicando a entrada
Por ora, o regime está fazendo de tudo o que pode para manter o controle sobre a região central do país. Em Rastan, na semana passada, o único local restante para tratamento dos feridos era um pequeno hospital operado pelos rebeldes em um dos porões mais profundos da cidade. A entrada é escondida descendo dois lances de escadas no final de um beco, em um pequeno corredor entre duas casas. Mas a trilha de sangue levando até a entrada torna fácil encontrá-la.
Lá embaixo, sob uma pálida luz fluorescente, os últimos três médicos da cidade se revezam na realização de cirurgias. Todos os outros médicos estão mortos, fugiram ou foram levados pelos serviços de segurança. Atualmente é perigoso ser um médico na Síria. Aqueles que tratam os manifestantes, sem contar os combatentes do ELS, colocam suas vidas em risco.
Enfermeiras, com lenços de cabeça e as túnicas finas vestidas pelas mulheres muçulmanas conservadoras, enchem seringas com rápidos movimentos de pulso e abrem pacotes esterilizados com os dentes, para que possam segurar simultaneamente pinças, lâmpadas e equipamento durante as operações. Ninguém as vê derramar lágrimas. São os homens que choram, como o velho enfermeiro que, aparentemente ao final de suas forças, fica parado na porta e em lágrimas, enquanto uma criança atrás da outra é trazida.
Um menininho, rasgado pelo estilhaço de um disparo de tanque, está envolto em um cobertor. Sua mãe tenta mantê-lo unido, mas de repente apenas a perna dele está em suas mãos. Por uma hora e meia, um médico e enfermeiros tentam tudo o que é possível para reviver o menino, injetando adrenalina, massageando seu coração e usando desfibrilador, mas sem sucesso. Um pedaço de estilhaço de granada, menor do que uma unha, entrou em seu coração pelas costas. O pai carrega o menino para fora, envolto em um lençol branco.
Quantidades copiosas de explosivos
No meio do horror, também há outro microcosmo nos porões das escolas abandonadas, prédios públicos e mansões em Rastan: as Katibas, as brigadas do ELS, que são mais bem organizadas e numerosas em Rastan, a ex-cidade dos oficiais, do que em qualquer outro lugar na Síria. Há 2 mil homens, incluindo 130 oficiais. As Katibas usam nomes que soam religiosos, como “Homens de Deus” ou “Ali Ibn Abi Talib”, o nome do quarto califa. O líder delas, o tenente Faïs Abdullah, barbeado sete meses atrás, agora exibe uma grande barba. Ele diz que qualquer um que queira lutar ao lado dele tem que acreditar em Deus.
Um deus específico? Não importa, ele diz. Podem ser muçulmanos, drusos ou cristãos.
Mas seus 70 homens dificilmente são vistos rezando. Em vez disso, eles passam mais tempo abrindo suas páginas no Facebook, usando a conexão intermitente de Internet de seu telefone por satélite. O modelo prático deles não é o Profeta Maomé, mas um ator turco extremamente popular, que estrela séries de TV e vive na Síria, uma espécie de James Bond que luta contra o mal, participa de perseguições em alta velocidade e usa quantidades copiosas de explosivos.
Depois, Faïs Abdullah diz que a barba, a conversa sobre religião e as promessas de paraíso precisam ser vistas em certo contexto: “O que eu posso oferecer para alguém que vai enfrentar os tanques do exército de Assad com pouco mais que um rifle Kalashnikov?”
Em questão de meses, os jovens oficiais daqui se tornaram comandantes locais. Usando o Facebook e o YouTube, eles tentam melhorar seus perfis, aparecer em programas da “Al Jazeera” e impressionar exilados sírios ricos e outros financiadores. O comandante nominal do ELS em exílio na Turquia, Riad al Assad, tem pouco a oferecer e ninguém sob seu comando.
À procura de um fantasma
Parece pouco provável que os jihadistas assumirão após a derrubada do regime. Em vez disso, o país poderia enfrentar uma disputa por influência entre as Katibas, com 22 existentes apenas em Rastan. As Katibas uniram forças para formar um conselho militar, mas a maior delas, uma brigada fundada por um sobrinho do ex-ministro da Defesa, se recusou a se juntar.
A história pode não se repetir, mas ela tem uma queda para variações. Assim como foi um ministro da Defesa por longa data, Mustafa Tlass, que transformou Rastan em uma cidade de oficiais, foi seu parente, o tenente Abdul Rasak Tlass, um dos primeiros a iniciar a resistência armada contra o regime.
Quando encontramos Tlass no bairro de Bab Amr, em Homs, em dezembro passado, ele liderava um pequeno bando de desertores mal armados. Uma tentativa de encontrá-lo de novo recentemente se transforma em uma procura por um fantasma. Todo mundo conhece seu nome e sua Brigada Faruk atualmente é a maior na Síria, com 7.000 homens lutando sob sua bandeira apenas na devastada Homs. Mas onde está Tlass? Primeiro nos é dito que ele está em Homs, então em Rastan e depois em Talbisa, sempre em um local diferente. Após uma semana, um mensageiro chega e nos diz para estarmos prontos naquela noite. Na hora marcada, um carro chega e nos leva até o outro lado da cidade, até uma casa localizada a cerca de cem metros de uma posição de tanques militares. Ninguém esperaria que ele estivesse ali, diz Tlass, provavelmente o homem mais procurado na Síria. Ele fica sentado no meio da sala.
Levará apenas mais poucas semanas para derrubar o governo, ele diz.
E o que acontecerá depois? Ele voltará para um novo exército como tenente? Ele sorri brevemente. “Eu irei para onde as pessoas quiserem que eu vá”, ele diz. Ele tem um poder imenso e sabe disso. Ele também insiste que a revolução não é um fim em si mesmo, “mas uma luta por nossos direitos. Nós queremos democracia, não outra ditadura!”
Na semana passada, do alojamento deles em um prédio destruído no vilarejo de Saan, nos arredores da cidade, os combatentes do ELS olham para uma coluna de fumaça com um quilômetro de largura sobre Rastan, uma aeronave não tripulada sobrevoando silenciosamente acima deles, e um helicóptero ao longe que já tinha começado a disparar. Eles carregam alguns poucos lançadores de granadas, uma metralhadora e munição em duas picapes. “Bidna namut”, diz um dos homens, “vamos lá para morrer”. Enquanto partem, um jovem médico de óculos pede para que um dos que ficaram para trás mande lembranças para seu pai. Então eles partem na direção da coluna de fumaça.
Uma bala na cabeça
Nas cidades atormentadas pelo exército de Assad nos últimos meses, as tropas fazem pichações nos muros. Uma que aparece repetidas vezes diz: “Assad para sempre, ou incendiaremos o país!”
Ao deixarmos Rastan, ainda pudemos ver a grande coluna de poeira e fumaça por muito tempo. Ao longe, no meio do interior verdejante, há outras nuvens escuras sobre o que antes eram as cidades de Talbisa e Homs.
Os carros deixando a cidade nesta manhã estão transportando combatentes, feridos e mortos. De repente, nós conseguimos pegar carona em uma estrada onde os motoristas ficam aguardando em intervalos de poucos quilômetros e batedores estão constantemente monitorando a rota. É uma estrada usada para levar os gravemente feridos para fora do país. Um paciente, com seus ferimentos cobertos com bandagens improvisadas, está deitado sob um cobertor na traseira de um pequeno caminhão, normalmente usado para transportar ovelhas. Mas o que deveria ser seu resgate se transforma na última viagem de Ubaid Darish Laban, um agricultor de 25 anos, que se juntou aos rebeldes dez dias antes e foi atingido por uma bala na cabeça. Ele morre após 40 quilômetros.
O caminhão para brevemente para que o paciente possa receber uma massagem cardíaca, mas as pupilas de Laban estão dilatadas e imóveis. Nada pode trazê-lo de volta. O caminhão então retorna para seu vilarejo, Umm Hamamia, para sua família e ao cemitério. A notícia mal se espalha e dezenas já se reúnem em torno do corpo.
No cemitério, os homens cavam furiosamente o solo seco, como se para descarregar seus sentimentos de raiva e impotência. Eles dizem para a mãe que ela não deve chorar, porque Laban agora é um mártir. Enquanto invocam o paraíso, eles carregam seu corpo sem vida em círculo algumas vezes, mas antes que possam baixar o morto em seu túmulo, há um pânico. Um helicóptero aparece no horizonte. Os presentes se espalham e se escondem atrás de muros e oliveiras. Um punhado de homens, desafiando a morte, completa o funeral. Então a tranquilidade retorna ao pequeno cemitério do vilarejo no meio da Síria.
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