O maestro mundialmente famoso argentino-israelense Daniel Barenboim é conhecido por suas fortes opiniões sobre o processo de paz do Oriente Médio e por tocar Wagner em Israel. Em entrevista ao "Spiegel", ele explica porque a antipatia de Israel contra Wagner é grotesca e argumenta que Israel não deveria depender demais do apoio da Alemanha e dos EUA.
Daniel Barenboim |
Barenboim: Me entristece que o governo de Israel se recuse tão obstinadamente a permitir que Wagner seja tocado -como aconteceu mais uma vez há duas semanas, na Universidade de Tel Aviv -porque eu vejo isso como um sintoma de uma doença. As palavras que vou usar são duras, mas as escolho deliberadamente: há uma politização da lembrança do Holocausto em Israel, e isso é terrível.
Der Spiegel: Por favor, explique melhor o que o senhor quer dizer.
Barenboim: Quando vim da Argentina para Israel, em 1952, com 10 anos de idade, ninguém falava sobre o Holocausto. A catástrofe ainda estava próxima demais dos sobreviventes, e os jovens israelenses queriam criar um novo judaísmo. Eles queriam mostrar que os judeus não eram apenas capazes de ser artistas e banqueiros, mas também de ser agricultores e atletas. Eles olhavam para o futuro e não queriam falar sobre o sofrimento de seus pais.
Der Spiegel: Quando isso mudou?
Barenboim: Com o julgamento conjunto de Adolf Eichmann em Jerusalém em 1961. O primeiro-ministro David Ben-Gurion achou na época, corretamente, que era necessário os israelenses vivenciarem o que aconteceu, com base no exemplo de um perpetrador. Assistir a toda a selvageria, a frieza e inumanidade do Shoah neste indivíduo, Eichmann, foi inacreditável. Foi a primeira vez que eu e todos meus amigos da escola pensamos sobre a Segunda Guerra Mundial em detalhes. Subitamente, eles estavam dizendo: temos que fazer alguma coisa para que esse tipo de coisa nunca se repita.
Der Spiegel: O que há de errado nisso?
Barenboim: Nada, é claro, mas na mesma época surgiu um engano, ou seja, que o Holocausto, do qual nasceu a reclamação de Israel pelos judeus, e o problema palestino tinham algo entre si. Seis anos após o julgamento de Eichmann, houve a Guerra dos Seis Dias e, após essa guerra, Israel estava diferente. Antes não havia oposição à política de desenvolvimento do governo, e subitamente iniciou-se um intenso debate após a vitória de 1967: Israel deveria devolver ou não os territórios ocupados? Os judeus ortodoxos disseram até que não eram territórios ocupados, e sim regiões bíblicas liberadas! Uma enorme aliança se iniciou ali, a mesma aliança entre a direita e os judeus ortodoxos que domina Israel até hoje.
Der Spiegel: O que isso tem a ver com Richard Wagner?
Barenboim: Bem, desde a Guerra dos Seis Dias, os políticos israelenses estabeleceram várias vezes uma conexão entre o antissemitismo europeu e o fato de os palestinos não terem aceitado a fundação do Estado de Israel. Mais isso é absurdo! Os palestinos não eram primariamente antissemitas. Eles apenas não aceitavam sua expulsão. O antissemitismo europeu é muito mais antigo do que a partição da Palestina e o estabelecimento de Israel em 1948. É até mais antigo que o Holocausto. Pense nos pogrons na Rússia e na Ucrânia, no incidente Dreyfus na França e no antissemita Richard Wagner. Não há conexão entre o problema palestino e o antissemitismo europeu, exceto que se espera hoje que os palestinos paguem por pecados históricos. Provavelmente há muitas pessoas em Israel que acham que Wagner, que morreu em 1883, viveu em Berlim em 1942 e era amigo de Hitler.
Der Spiegel: A nora dele, Winifred, compensou isso depois. Ela foi confidente de Hitler, e o ditador era convidado frequentemente para o Festival Anual de Bayreuth, que celebra as óperas de Wagner.
Barenboim: Eu tenho o maior respeito pelos sobreviventes do Holocausto. Não podemos nem imaginar o que essas pessoas passaram. Cada um, contudo, tem sua posição. Pegue por exemplo, o meu amigo Imre Kertész, poeta húngaro que também é sobrevivente do Holocausto. Nos conhecíamos há apenas duas semanas quando ele me disse: Você consegue entradas para mim para Bayreuth? Eu respeito que haja sobreviventes que não podem nem querem ouvir a música dele. Mas eu simplesmente não aceito o fato de uma orquestra tocando Wagner em Tel Aviv ou Jerusalém faça qualquer mal a alguém sentado em um apartamento em Haifa.
Der Spiegel: O que o fascina sobre Wagner? Por que ele impressiona tanto os intelectuais?
Barenboim: Wagner explorou todas as formas de expressão à disposição de um compositor -harmonia, dinâmica, orquestração- ao extremo. A música dele é altamente emocional e, ao mesmo tempo, Wagner tem um controle extraordinário sobre os efeitos que alcança. Por isso que há algo de manipulador na música de Wagner, que não quer dizer que não é honesta. De fato, acredito que seja totalmente honesta, mas também é manipuladora.
Der Spiegel: Isso também explica a afinidade dos nazistas pela música dele?
Barenboim: Wagner não pode ser responsabilizado diretamente por essa conexão. Mas Wagner era um antissemita terrível. Seu ensaio de 1850 "Judaísmo na música" é um dos piores panfletos antissemitas de todos os tempos. Hitler fez de Wagner um profeta. Mas Hitler, evidentemente, reinterpretou até as piores coisas que Wagner escreveu sobre os judeus, de uma forma pela qual Wagner não pode ser responsabilizado. Compreendo, é claro, as associações com os nazistas que algumas pessoas têm quando ouvem algo como "Lohengrin".
Der Spiegel: Como exatamente aconteceu que o senhor e sua orquestra West-Eastern Divan, que consiste de músicos árabes e israelenses, tocaram Wagner?
Barenboim: Os músicos queriam. Eu disse: claro, mas antes temos que conversar. É uma decisão delicada. Era importante para mim que nenhum músico fosse convencido a tocar contra sua vontade.
Der Spiegel: A iniciativa veio dos árabes?
Barenboim: Pelo contrário. Foram os israelenses. A seção de metal israelense. Wagner é bem intenso na seção de metais. Mas expliquei sobre a importância musical de Wagner para a orquestra. Como músico, não dá para simplesmente ignorá-lo.
Der Spiegel: O senhor é um patriota israelense?
Barenboim: O que é ser um patriota israelense? O que há para se orgulhar hoje? Como você pode ser patriota em um país que ocupou o território estrangeiro pelos últimos 45 anos? Que não é capaz de aceitar que há outra conta dos últimos 60 anos. Sim, os palestinos poderiam ter aceitado a partição da Palestina no dia 29 de novembro de 1947 e foi precisamente o que não fizeram porque pensavam que a partição era injusta. Por que não podemos aceitar isso como um fato histórico e seguir em diante? É desumano.
Der Spiegel: O senhor é leniente com os árabes, mas os vizinhos de Israel se comportam de forma hostil. O presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, não disse que queria apagar a "entidade sionista" do mapa?
Barenboim: Não sou ingênuo. Sei perfeitamente bem que não há um único árabe ou muçulmano no mundo que diria que tem que haver um Estado judeu no Oriente Médio. Mas porque diriam isso? A estratégia de Israel não pode ser de constantemente confrontar os palestinos com a história do Holocausto, e sim mostrar a eles que Israel é uma realidade. Cometemos erros e vocês cometeram erros, mas estamos aqui e vocês estão aqui. Vamos fazer as pazes, com justiça para todos. Provavelmente é tarde demais para isso. Mas quem sabe?
Der Spiegel: Por que esse conflito parece tão intratável?
Barenboim: Porque o mundo não o vê pelo que é. Na verdade, todo mundo sabe como termina essa história: a retirada de Israel para as fronteiras de 1967 e uma solução viável para as questões de Jerusalém, das fronteiras e dos refugiados. Mas não é um conflito que pode ser resolvido politicamente ou mesmo militarmente. É um conflito humano, no qual duas nações estão profundamente convencidas que têm o direito ao mesmo pedaço de terra. Não precisamos de um Quarteto do Oriente Médio consistindo da ONU, dos russos, europeus e americanos. Precisamos de um psicanalista.
Der Spiegel: E isso ajudaria?
Barenboim: Tenho certeza que há muitos israelenses que sonham em acordar um dia e não ver mais os palestinos. E há muitos palestinos que sonham em ir para a cama de noite e acordar na manhã seguinte e não ver mais os israelenses. Um homem tem o direito de dormir e sonhar com a Marilyn Monroe. Mas quando acorda, tem que admitir que está casado com outra pessoa.
Der Spiegel: O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu atualmente governa com uma maioria de dois terços no Knesset, o que é incomum para uma democracia parlamentar. É preocupante o fato de Israel não ter mais uma oposição de verdade?
Barenboim: Acredito que o maior erro dos últimos governos foi não terem tido uma verdadeira estratégia, estavam meramente operando de forma tática: você me promete isso, e eu prometo aquilo. No longo prazo, a segurança de Israel depende apenas de um pilar: a aceitação do país pelos palestinos. Não é uma bomba atômica que torna Israel seguro.
Der Spiegel: Como o senhor se sente sobre o fato da Alemanha ter fornecido a Israel submarinos aparentemente equipados com mísseis nucleares?
Barenboim: Só o que posso dizer é que é um absurdo proibir Wagner enquanto se compra submarinos alemães ao mesmo tempo. A Alemanha lidou com o passado de forma exemplar. Essa é a única razão que posso morar na Alemanha como judeu. Apesar de impressionado e agradecido por essa capacidade de lidar com o passado, também posso ver que os alemães são prisioneiros de seu passado. A Alemanha nunca vai ser um amigo verdadeiro de Israel, livre no pensamento e na emoção, porque sempre está sob essa sombra.
Veja o que o mundo pensava sobre Israel e os palestinos há 40, 20 e 10 anos atrás e o que acha hoje. A reação de muitos israelenses é que o mundo sempre esteve contra eles. Mas eu não acredito que o mundo todo seja constantemente antissemita. Raramente, a moralidade e a estratégia andaram de mãos dadas como acontece em nosso conflito. Muitos palestinos estariam dispostos a aceitar a realidade de Israel. Os pessimistas dizem que o momento para as soluções de dois Estados passou. Se isso é verdade, será que acreditamos seriamente que um único país pode funcionar nos territórios palestinos, depois de todo o ódio que foi semeado? Se continuarmos nessa linha, não teremos solução alguma.
Der Spiegel: Dizem que a chanceler alemã Angela Merkel tem muita influência sobre Netanyahu. O senhor acha que a chanceler faz pleno uso disso?
Barenboim: Eu fiz a seguinte pergunta a três chanceleres alemães: Helmut Kohl, Gerhard Schröeder e Angela Merkel: dada nossa história compartilhada, que se estende muito mais dos 12 anos terríveis entre 1933 e 1945, vocês não acham que devem ajudar os judeus a resolverem seu conflito com os palestinos? Os três me deram a mesma resposta: Como? Como você imagina que um chanceler alemão possa dizer aos israelenses como resolver seus conflitos?
Der Spiegel: O senhor se sente assegurado pela declaração de Merkel que a segurança de Israel faz parte do interesse nacional da Alemanha?
Barenboim: É uma declaração moral, que eu acredito ser 100% honesta. Mas a história mostra que o casamento entre moralidade e política é instável. Se eu fosse o primeiro-ministro israelense, eu não dependeria de tal declaração no longo prazo. Há uma razão histórica para isso: foi a França que tornou possível para Israel desenvolver um programa nuclear nos anos 50. Mas nos anos 60, (o então presidente Charles) de Gaulle compreendeu que isso era contrário aos interesses estratégicos da França, porque os franceses precisavam de petróleo dos árabes. Então ele disse: basta.
Der Spiegel: E Israel voltou-se para os EUA.
Barenboim: E é exatamente onde está Israel hoje. É uma espécie de 51º Estado norte-americano. O governo israelense deveria se preocupar com isso. Sim, Israel tem um forte lobby em Washington. Ao mesmo tempo, contudo, vejo como a hegemonia norte-americana está encolhendo e como o crescimento econômico está mudando para países completamente diferentes, como China, Índia e Brasil. Eu me pergunto: onde exatamente está o lobby judeu em Pequim, Nova Déli e Brasília?
Der Spiegel: Em julho, o senhor e a sua Orquestra West-Eastern Divan farão uma apresentação em Londres, onde o senhor vai tocar todas as sinfonias de Beethoven, inclusive a nona na abertura das Olimpíadas. Não é um ato audacioso?
Barenboim: É claro, 40% da orquestra é israelense e 40% é árabe, e nenhum deles representa seu governo. Somos uma alternativa pensante.
Der Spiegel: Uma verdadeira utopia.
Barenboim: Eu prefiro ver como uma medicina alternativa. Não funciona tão rápido, mas funciona de outra forma. Um israelense que pensa que seu governo está fazendo tudo certo não se uniria a mim na Orquestra West-Eastern Divan em primeiro lugar. Por isso os árabes que não permitem que nossa orquestra se apresente em seus países estão cometendo um erro. Eles não querem diferenciar entre diferentes grupos de israelenses. Eles também me atacam constantemente.
Der Spiegel: Mais recentemente em abril, quando o Qatar o excluiu do festival.
Barenboim: Isso se deveu à situação na Síria. Os concertos foram adiados. Mas muitos árabes não aprenderam nada com o grande Edward Said, com quem eu fundei a orquestra, ou seja, que os palestinos não podem negar o Holocausto. Compreendo totalmente quando os palestinos boicotam instituições israelenses, mas não entendo por que boicotariam indivíduos que se distanciam de forma expressa do governo israelense.
Der Spiegel: O senhor teve que fazer um concerto na cidade de Gaza no ano passado sem a Orquestra West-Eastern Divan. O senhor então levou músicos da Staatskapelle de Berlim e das filarmônicas de Berlim e Viena. Mas pelo menos entrou.
Barenboim: E recebi o que foi provavelmente o melhor elogio de minha carreira musical. Um homem ali me agradeceu tão efusivamente e tantas vezes por nossa apresentação que, em certo ponto, eu tive que perguntar porque ele estava tão feliz. Ele disse: "Temos a sensação que o mundo nos esqueceu. Recebemos mantimentos e somos agradecidos por isso. Mas o fato do senhor vir aqui com a sua orquestra nos dá a sensação que somos seres humanos."
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