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quinta-feira, 3 de abril de 2014

Sobre o massacre de Oradour-sur-Glane (1ª Parte)

Oradour-sur-Glane
"Havia esse menino", diz Werner Christukat. "Ele veio caminhando pela colina. Um pequeno menino loiro com uma bicicleta e ele queria passar por mim e entrar no vilarejo. Eu ainda consigo visualizar perfeitamente. Eu o parei e quis afugentá-lo, mas então o líder do pelotão secundário apareceu e começou a gritar comigo..."

Os eventos descritos por Christukat ocorreram há quase 70 anos, mas ele nunca os esqueceu. Mas desde que caçadores de nazistas o visitaram no ano passado, ele tem vasculhado essas memórias em busca de imagens adicionais: durante o dia, quando fica sentado em seu solário em seu colete tricotado, cercado pelas fotos de seus netos; à noite, quando perambula sem sono por sua casa no escuro.

Tudo está voltando. "Não passa uma noite sem que não pense em Oradour. Diante de mim, eu ainda posso ver a igreja por entre a copa das árvores. Eu ouço uma explosão e então o grito de mulheres e crianças. (...) Eu não consigo tirar isso da minha mente. Eu lamento muito por eles. Mas o pior foi não ter conseguido salvar o menino."

No verão de 1944, Christukat tinha 19 anos, era um metralhador na Waffen-SS treinado para obedecer ordens. Ele tinha acabado de chegar à França. "Minha honra é lealdade. Um soldado alemão luta cavalheirescamente", ele diz. "Eu acreditei nessas coisas de Adolf Hitler."

Agora, Christukat pode novamente se ver sob o céu cinzento de Oradour, em pé com sua metralhadora na rua. Ou era uma trilha de terra? Ele chegou até a beira da cidade a pé ou em um caminhão? Como ele chegou posteriormente à igreja e por que ele foi até lá? Ele recorda de ter salvado duas mulheres ao ordenar que corressem. Mas não pode provar.

Os investigadores não acreditam nele. Eles mostraram a ele uma lista contendo seu nome e o confundiram com suas perguntas. Ele se emaranhou em contradições. Desde então, ele franze sua testa como estivesse resolvendo um quebra-cabeça – mas quanto mais tenta resolvê-lo, mais difícil ele se torna. Mas o que está em jogo é sua vida e a questão de sua culpa.

A unidade de Christukat –a 3ª Companhia do 1º Batalhão da Divisão de Infantaria Mecanizada "Der Führer" da SS– tomou o vilarejo de Oradour-sur-Glane, no sudoeste da França, em 10 de junho de 1944. Os soldados reuniram todos os moradores. Ele executaram os homens nos celeiros e trancaram as mulheres e crianças na igreja do vilarejo, armaram os explosivos, jogaram granadas de mão dentro e incendiaram a igreja. Eles incineraram o vilarejo todo, incluindo todas as 642 pessoas encontradas lá; 181 homens, 254 mulheres e 207 crianças segundo o indiciamento. Muitas dessas pessoas foram queimadas vivas. Os restos mortais incinerados de mães agarradas aos seus bebês foram encontrados, assim como alunos de uma escola primária abraçados na morte.

Um indiciamento pelo correio
Foi um dos piores massacres perpetrados pela SS na Europa Ocidental e seu motivo ainda não é claro. Oradour continua sendo uma questão nas relações franco-alemãs. No ano passado, Christukat assistiu pela televisão enquanto o presidente alemão, Joachim Gauck, caminhava pelas ruínas do vilarejo de mãos dadas com seu par francês. Gauck implorou por perdão, algo que Christukat apoia. Mas Gauck também disse: "Eu compartilho a amargura pelo fato de os assassinos não terem sido levados à Justiça. Eu tratarei disso em meu país e não permaneceremos em silêncio".

Três dias antes do Natal, Christukat encontrou o indiciamento em sua caixa do correio, 70 anos depois do fato. Christukat, um ex-mestre de obras, atualmente um viúvo de 89 anos e pai de duas filhas, é suspeito de ter participado na execução dos homens em Oradour. Além disso, acredita-se que ele tenha ajudado a assassinar as mulheres e crianças, "ou cumprindo a função de bloqueio da cidade" ou "carregando material inflamável para a igreja", segundo o indiciamento. No total, ele é acusado de participação em 25 casos de homicídio e cumplicidade nos assassinatos de várias centenas de outros –um crime vil, traiçoeiro e horrível

A notícia do indiciamento se espalhou rapidamente. "Die Welt", "Rádio Vaticano", "Hürriyet", "El País": todos o noticiaram. Os "últimos assassinos vivos" estavam sendo processados, "O Monstro da SS de Oradour". Até mesmo na China as pessoas leram a respeito.

Agora, o tribunal distrital de Colônia deve decidir se há prova suficiente para levar Christukat a julgamento. É difícil imaginá-lo como um capanga brutal da SS –um velhinho alegre e amistoso de olhos semicerrados por sobre a armação de seus óculos. Se não fosse por Oradour. "Eu sempre senti culpa", diz Christukat. "Eu estive lá. Não pude impedir. Mas não matei ninguém. Não dei nenhum disparo."

Há um fato histórico no caso de Oradour: 642 mortos. Mas o que mais pode ser dito com certeza após 70 anos? Há a verdade das vítimas e a verdade dos perpetradores. E há a verdade subjetiva da memória. Quanto mais um crime se desvanece no passado, mais díspares as diferentes verdades se tornam.

Nenhum disparo dado. Essa é a verdade de Christukat.

Certa noite em janeiro, os caçadores de nazistas estavam sentados em uma pousada rural próxima de Bremen, conversando diante da lareira, com velas nas mesas ao redor. Andreas Brendel, chefe da unidade central de investigação de crimes de guerra em Dortmund, e Stefan Willms, chefe da unidade de investigação de crimes nazistas da polícia criminal estadual de Renânia do Norte-Vestfália, tinham acabado de revistar a casa próxima de um senhor de 87 anos. Ele também é acusado de ter estado em Oradour.

Reconhecendo a responsabilidade histórica
Álbuns de foto, diários, cartas da época –eles não encontraram nada útil. Além disso, os filhos e netos ficaram chocados com a investigação, um velho conversador sem nenhum sentimento de culpa. O habitual, diz Brendel.

Brendel tem 51 anos, prefere ternos, tem uma testa alta e usa óculos de aro preto de arquiteto. Willms é três anos mais velho, tem barba, veste jeans e tem a cabeça cheia de cachos de cabelos grisalhos despenteados. Ambos caçam nazistas há quase 20 anos. Brendel foi promovido a seu cargo atual há três anos.

Por décadas, a Alemanha Ocidental fez pouco para levar os perpetradores nazistas à Justiça. Acusações de crimes da era do Terceiro Reich foram impetradas contra cerca de 15 mil pessoas, mas apenas 7 mil foram condenadas. Com frequência, as penas eram brandas ou os acusados eram absolvidos.

Hoje, entretanto, a Alemanha quer provar que reconhece sua responsabilidade histórica e os investigadores agora está revirando o mundo atrás dos outrora assassinos: na Rússia, em Belarus, América do Sul. Mas é um pouco tarde. Os criminosos de guerra estão morrendo.

Brendel liderou mais de 100 investigações diferentes. Ele liderou a equipe de promotores contra quatro ou cinco deles. Um morreu poucos dias antes do início do julgamento; os documentos já estavam na sala do tribunal.

Atualmente não há falta de apoio político às investigações; o problema é mais de natureza física. Willms compara a um quebra-cabeça: "Ele estaria completo em 1945. Mas agora, uma peça desaparece a cada dia, porque outra pessoa morre". A maioria dos homens que eles estão perseguindo usa andadores. Mas se não estiverem sofrendo de demência, eles ainda podem ser processados. Mesmo assim, poucos daqueles que deram as ordens para matar continuam vivos –e por muito tempo, os tribunais alemães eximiram aqueles que apenas seguiam ordens. Era como a lei era interpretada.

Brendel diz que sempre achou isso equivocado. Todavia, seu gabinete provavelmente já teria fechado a esta altura se não fosse pelo veredicto dado no caso de John Demjanjuk há três anos. Ele foi um guarda no campo de extermínio de Sobibór e o tribunal o considerou culpado, apesar de ser impossível provar que ele próprio cometeu algum crime específico. Era prova suficiente o fato dele ser uma engrenagem na máquina. Como Demjanjuk morreu antes que o Tribunal Federal de Justiça pudesse examinar o veredicto, permanece não claro se o caso Demjanjuk abriu um novo precedente legal nos processos de crimes da época dos nazistas. Mas ele certamente melhorou as perspectivas para os caçadores de nazistas.

Tarde demais?
Em Baden-Württemberg recentemente, quatro idosos foram temporariamente detidos à espera do julgamento, suspeitos de terem servido como guardas em Auschwitz. Após sete meses de detenção, o tribunal decidiu não dar andamento ao caso de um senhor de 94 anos, por ele sofrer de demência. Os parentes das vítimas apelaram da decisão.

O criminalista holandês Frits Rüter, chefe de um projeto com sede em Amsterdã que pesquisa a Justiça e os crimes de guerra da época do nazismo, acusou os caçadores de nazistas da Alemanha de ativismo. Ele diz que o Judiciário alemão inicialmente falhou em sua obrigação e evitou perseguir os perpetradores que eram apenas engrenagens na máquina nazista. Agora, só restam idosos e puni-los não ajuda ninguém, ele diz. É tarde demais, segundo ele.

Brendel considera isso tolice. Por quê? "Não há prescrição para assassinato", ele diz. "Nós devemos isso às vítimas."

Em 1953, um tribunal em Bordeaux proferiu duras penas aos membros da SS envolvidos no massacre em Oradour, mas nenhum dos condenados permaneceu na prisão por muito tempo. Em 1983, um tribunal em Berlim Oriental sentenciou um alto oficial da SS a prisão perpétua, mas ele foi solto em 1997. Na Alemanha Ocidental, todas as investigações foram abandonadas.

Após o veredicto de Demjanjuk, Willms visitou o arquivo da Stasi em Berlim e pesquisou os antigos autos processuais da Alemanha Oriental. Ele se deparou com uma velha lista da companhia. Brendel acredita que ela reflete os membros da companhia na época do massacre. Mas quem a criou? Quando? Por quê? Ninguém sabe.

No início de 2013, Brendel e Willms percorreram as ruínas de Oradour com um dos últimos sobreviventes do massacre. Eles foram como representantes do ineficaz Judiciário alemão. Mas eles estavam com a lista no bolso –um lista que incluía oito homens que ainda estavam vivos. Christukat é um deles.

Brendel acredita que seria uma novidade se conseguissem levar Christukat a julgamento. Em vez de ser um guarda de Auschwitz, Christukat fez parte de uma unidade de combate. A missão dela: repelir os Aliados da Normandia e combater os guerrilheiros. Além disso, Christukat tinha apenas 19 anos na época do massacre, o que significa que o julgamento de crimes de guerra teria que ser realizado na divisão juvenil de um tribunal criminal.

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