Mulher vota nas eleições para o Parlamento de Mianmar, em Yangun |
Estes birmaneses deixaram Mianmar, a antiga Birmânia, há quase um quarto de século. Eles tinham vinte anos, às vezes mais, quando conseguiram fugir de Yangun depois de escapar de balas ou das prisões de um regime militar que havia dado a ordem de metralhar e encarcerar os manifestantes durante a sangrenta eliminação do movimento democrático de 1988. A repressão resultou em mais de 3 mil mortos, no mínimo.
Hoje, esses ex-estudantes da Universidade de Yangun, próximos desde o começo de Aung San Suu Kyi, que acabava de voltar ao seu país para cuidar de sua mãe à beira da morte, se tornaram jornalistas, diretores de ONGs ou futuros políticos. Às vezes, um pouco de tudo isso.
A partir de Chiang Mai, cidade do norte da Tailândia, onde a maior parte se instalou após o “movimento de 1988”, eles observam com olhar crítico o atual processo de “democratização” da União de Mianmar. Uma mudança que eles descrevem com precaução: todos ouvem as promessas do governo com desconfiança. Suas impressões e análises, sendo que muitos deles passaram algumas temporadas em Mianmar este ano após 24 anos de ausência, diferem – ou confirmam, dependendo do caso – das de seus colegas que permaneceram no país.
Toe Zaw Latt, de quarenta e poucos anos, é o diretor da sucursal para Chiang Mai da Democratic Voice of Burma (DVB), uma rádio-televisão com sede em Oslo, na Noruega. Uma cadeia que teve um importante papel de “mídia militante” durante os “anos de chumbo” da Birmânia. Zaw Latt, com quem falamos pouco antes que o governo decretasse o fim da censura da mídia na última segunda-feira (20), aponta para os paradoxos da situação em seu país: “Nós abrimos em Yangun um escritório com 36 repórteres que trabalham em uma situação de ‘semilegalidade’”, ironiza o jornalista, “estamos em vias de ser totalmente legalizados, mas a verdadeira abolição da censura está demorando para chegar. As autoridades procrastinam, suas promessas continuam vagas...”
Para Toe Zaw Latt, ainda é cedo para pensar em transferir a sede da rádio-televisão para Yangun. A DVB deixará Oslo em breve, mas prefere manter seu escritório de Chiang Mai como cabeça de ponte da rede. Portanto, Chiang Mai, antiga capital do reino de Lanna, fundado no século 18 pelo rei Menrai, mas que caiu sob o jugo birmanês por várias décadas no meio do século 16, parece ainda ter muito tempo pela frente como capital informal da diáspora dos exilados da elite birmanesa.
A proximidade do país natal foi uma das razões pelas quais a diáspora a escolheu. Tanto que, e isso é considerável, a modernização e a expansão urbana dessa cidade de 250 mil habitantes não impede a “Rosa do Norte”, como é chamada em tailandês, de continuar sendo um local com certo charme.
Aung Zaw, 44, provavelmente o mais conhecido dos jornalistas birmaneses no exílio, também demonstra um ceticismo certeiro em relação à “abertura” política e econômica em Mianmar que, desde a primavera de 2011, assumiu a forma de múltiplas promessas, algumas cumpridas e outras não: a libertação de grande parte dos prisioneiros políticos, certa forma de liberdade de imprensa, garantias teóricas do direito de manifestação, a criação de sindicatos livres, uma política de cooperação amigável com grupos armados de etnias minoritárias, o esboço de uma liberalização da economia, as privatizações de certos grupos do Estado etc.
Aung Zaw lançou a revista bimestral “Irrawady” em 1993, hoje substituída por um website de mesmo nome. “Pretendemos abrir um pequeno escritório em Yangun, mas precisamos admitir que a transição para a democracia está somente em seu primeiro estágio”, acredita o jornalista, que sofreu tortura na tristemente célebre prisão de Insein.
“Não faremos concessões ao governo, nos recusaremos a obedecer a qualquer censura”, garante Aung Zaw, que encontrou diversos dignitários birmaneses durante suas viagens recentes ao país natal após uma ausência de 24 anos. “Não acredito que o povo birmanês esteja em condições de participar plenamente dessas mudanças”.
Ele reconhece que o presidente birmanês, Thein Sein, provavelmente é “sincero” e que ele é um “verdadeiro reformista”. Mas Aung Zaw, assim como muitos opositores ao regime de longa data, tem muitas dúvidas quanto às perspectivas de uma saída permanente do exército do campo político. “Thein Sien assumiu grandes riscos [em relação aos “linhas-duras” presentes dentro do governo], está na corda bamba. O processo que ele inaugurou, primeiramente para se distanciar da China, depois para melhorar a relação de MIanmar com o exterior, permanece frágil.”
Os representantes das etnias minoritárias, sendo alguns deles também residentes em Chiang Mai – alguns se tornaram jornalistas desde então – também têm dificuldades em acreditar na “paz dos bravos” proposta por um governo amplamente composto por ex-generais.
Khuensai Jaiyen é um membro da importante minoria shan, hoje “redator-chefe” da Shan Herald Agency for News, depois de ter sido um dos porta-vozes do famoso Khun Sa, ex-líder de guerrilha e senhor do ópio: “Os acordos de suspensão das hostilidades que foram assinados no início do ano entre as autoridades birmanesas e as duas grandes organizações armadas shan [a Shan State Army-South (SSA-S) e sua concorrente, a Shan State Army-North (SSA-N)] foram violados mais de cinquenta vezes no total. “É de se perguntar se ainda podemos falar em ‘cessar-fogo’”, ironiza esse senhor de idade em um inglês impecável. “Mas devo dizer que não sou um pessimista, sou mais um realista no que diz respeito às perspectivas de paz”.
Uma opinião ainda mais incisiva é defendida por outro “ativista jornalista”, Lahpai Nawdin, da etnia kachin, e redator-chefe do site do Kachin News. Para esse ex-professor primário que ressalta que nenhuma negociação ou acordo está sendo considerado entre o governo e a guerrilha dessa etnia do Norte, a Kachin Independance Organisation (KIO), “os americanos e europeus demonstraram ingenuidade ao retirar a maior parte das sanções econômicas que afetavam Mianmar. Eles acreditam que Mianmar está a caminho da democracia. Estão enganados. Até Aung San Suu Kyi fracassou, sua luta não mudou nada em Mianmar. E os países ocidentais só contam com ela, o que é outro erro”.
A Dama de Yangun desperta uma desconfiança certa em parte dos grupos étnicos que encontram a maior dificuldade para confiar em um membro da etnia bamar, a população majoritária que deu origem ao nome Birmânia.
Mais de seis décadas de combates entre o exército e os grupos étnicos, uns cinquenta anos de desconfiança arraigada por parte dos dissidentes em relação a um novo governo originado da junta dissolvida: a reconciliação nacional tem todas as razões para se revelar longa e tortuosa. E estão bem cientes disso todos os “exilados” de Chiang Mai.
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