O chefe do Hamas em Gaza, Ismail Haniya, celebra a vitória de Mohamed Mursi, primeiro presidente do Egito desde a queda de Hosni Mubarak, em junho |
A obra, inaugurada há um mês, é grandiosa. Em sua fachada encimada por dois arcos geométricos e recoberta de mármore cinza está escrito “Ponto de passagem de Rafah, Autoridade Palestina”, e ninguém pode ignorar que essa opulenta realização foi financiada pelo Banco Islâmico de Desenvolvimento. A entrada é protegida por uma grade, fiscalizada por milicianos do Hamas: é preciso mostrar as credenciais para atravessar a porta que dá para o Egito.
Viajantes que tenham recebido uma autorização do Ministério do Interior (dois meses de espera) se agrupam em uma sala de Khan Younis, a cidade grande mais próxima, antes de poder subir em um ônibus, que segue diretamente para o terminal de Rafah: de maneira alguma se chega sozinho. Uma vez dentro do perímetro fronteiriço, a modernização das instalações salta aos olhos, sinal de que o governo de Gaza, com ajuda de seus patrocinadores árabes, apostou que a revolução egípcia levaria a uma abertura completa da fronteira, ou seja, o fim do bloqueio, do lado egípcio, da Faixa de Gaza.
As salas de embarque e desembarque passaram por reformas luxuosas: cadeiras acolchoadas, ar-condicionado eficiente, cafeteria, mármore onipresente, esteiras rolantes e scanners para as bagagens, agentes alfandegários um pouco ociosos em suas guaritas brilhantes que não ficam devendo em nada ao aeroporto de Riad, não falta nada. Nem mesmo o retrato de Ismail Haniyeh (primeiro-ministro do governo do Hamas), triunfante, de braço erguido, com o seguinte slogan: “Vocês não podem destruir nossas muralhas”. Israel certamente entenderá...
Ayoub Abou Shahar, diretor do ponto de passagem de Rafah, está bastante orgulhoso: a primeira etapa das obras custou US$ 1 milhão (cerca de R$ 2 milhões), e o Banco Islâmico de Desenvolvimento deve pagar entre US$ 3 e 4 milhões no total. Mas Shahar é obrigado a constatar que, por enquanto, o Egito só liberou... 300 viajantes por dia. No dia seguinte à vitória presidencial de Mohamed Morsi, um número recorde de 1.530 habitantes de Gaza conseguiu ir até o Egito, e depois o fluxo diminuiu notavelmente: “Passamos de 600 a 700 pessoas por dia para 900 a mil”, diz, no entanto, o diretor do terminal Rafah.
Logo, o anúncio, no dia 11 de julho, de um aumento de mil para 1.500 passageiros por dia foi precipitado, assim como o feito no dia 23 de julho, do fim da proibição aos homens entre 18 e 40 anos de irem até o Egito. Até prova em contrário, esta última continua, bem como a “lista negra”, que inclui milhares de nomes. Essas restrições são impostas pelo Cairo, e a “cada dia”,diz Ayoub Abou Shahar, “recebemos cerca de 30 novos nomes de pessoas proibidas de entrar”. Será que Ismail Haniyeh, que foi recebido pela primeira vez pelo presidente Morsi, na quinta-feira (26), conseguirá obter mais flexibilizações ou até convencer os egípcios a financiarem seu mirabolante projeto de uma zona econômica e comercial na fronteira?
Os habitantes de Gaza duvidam disso: eles já entenderam que suas esperanças de furar o bloqueio imposto por Israel através de uma abertura das portas para o sul deverão ser reduzidas. “No dia seguinte à eleição de Morsi”, lembra Wesam Afifa, redator-chefe do jornal “Al-Resalah”, “foi como se ele tivesse sido eleito presidente da Palestina! Foi uma explosão de alegria, as pessoas pensavam ‘vai ser como quando houve um governo egípcio em Gaza [até 1967]’”.
Depois, à medida que os dias foram passando, a dura realidade da vida cotidiana prevaleceu. Um sinal dessa ausência de mudanças é o barulho dos geradores de energia que se ouve nas ruas. Os habitantes de Gaza sofrem entre 12 e 18 horas de cortes de eletricidade por dia, o que, no forno desse mês de Ramadã, torna terrível o dia a dia. A única usina elétrica de Gaza costuma sofrer com a falta de óleo combustível, tanto em razão da má vontade de Israel quanto por querelas financeiras entre a Autoridade Palestina e o governo do Hamas.
Desnecessário dizer que o anúncio do “presente” do Qatar, sob forma de um navio-tanque de 30 milhões de litros de combustível para Gaza, foi saudado como a esperança de uma melhoria. Mas as coisas não aconteceram assim. O petróleo qatariano transita pelo ponto de passagem israelense de Kerem Shalom, situado 3 quilômetros a leste de Rafah; o combustível para a usina elétrica, portanto, chega de acordo com a boa vontade do Estado judaico. E também do governo egípcio: o Cairo poderia ter encaminhado esse óleo combustível através de comboios de caminhões por meio de Rafah, mas ele não quis, dando como pretexto a falta de segurança no Sinai. Mas é verdade que no dia 22 de julho o gasoduto que abastece Israel e Jordânia foi alvo de seu 15º atentado em um ano e meio.
As prevaricações egípcias têm provocado decepção e irritação crescentes em Gaza, que não poupam o Hamas, já acusado de ter abandonado a resistência armada contra Israel. A realidade, resume Omar Shaban, diretor do centro de estudos estratégicos PalThink, “é que os egípcios entenderam que não é necessariamente do interesse deles conceder ao Hamas tudo que ele pede, correndo o risco de associar o destino de Gaza ao do Egito e de tornar ainda mais difícil a reconciliação interpalestina”. O presidente Morsi, ele diz, sabe que, ao abrir os braços para o Hamas, “ele provocaria ao mesmo tempo os israelenses e os americanos, e ele não tem nada a ganhar com isso”. A solidariedade entre a Irmandade Muçulmana (o Hamas se originou da confraria) é uma coisa, mas ela não está necessariamente alinhada com os interesses políticos e diplomáticos do Egito.
“Ouvimos belas palavras de amizade por parte do presidente Morsi”, ressalta Wesam Afifa, “mas, na prática, as questões da Faixa de Gaza continuam sob controle dos serviços de inteligência egípcios.” Desse ponto de vista, é provável que o novo governo egípcio não vá adotar uma atitude muito diferente da do ex-presidente Hosni Mubarak: diante da instabilidade política e de uma grave crise econômica, o Egito quer poder continuar controlando a abertura das portas de Gaza, ou seja, manter à distância a pobreza e as carências de 1,7 milhão de seus habitantes, bem como o ativismo islâmico do Hamas.
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