Cinquenta anos atrás, quando um premiê populista se meteu com os militares turcos, ele acabou na forca. Agora, a rivalidade culminou com a renúncia simultânea de praticamente toda a cúpula militar. Enquanto os turcos tentam entender esse momento extraordinário na história moderna do país, as autoridades se empenham em projetar uma imagem de normalidade, embora críticos alertem para o sorrateiro autoritarismo do premiê Recep Tayyip Erdogan, no poder desde 2003.
O conflito que representou a mais séria ameaça ao governo de Erdogan opôs o seu partido AKP, com raízes islâmicas, às poderosas Forças Armadas, que habitualmente se consideram a garantia das tradições laicas da Turquia moderna, agindo acima da lei quando necessário.
Com as demissões no dia 29 de julho do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, general Isik Kosaner, e dos comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, essa disputa pode ter chegado ao fim.
"Os dias dos militares turcos dando as cartas acabaram", disse o colunista Cengiz Çandar.
Os comandantes militares pediram sua aposentadoria em protesto contra a prisão de mais de 40 generais como suspeitos por uma suposta conspiração, em meio a investigações nas quais críticos de Erdogan apontam motivações políticas. Em sua manchete, o jornal governista "Sabah" proclamou que o país havia passado por um "terremoto quatro estrelas" (aludindo à patente dos generais envolvidos).
Mas Erdogan rapidamente promoveu o general Necdet Ozel, chefe da polícia militar, para o lugar deixado por Kosaner no Estado-Maior, e membros do governo minimizaram a ideia de vácuo ou de um futuro confronto com os militares, num aparente esforço para tranquilizar os 73 milhões de turcos de que não há um golpe de Estado à vista.
Membros do governo disseram haver uma crescente frustração da parte deles com a atuação dos militares na luta contra insurgentes curdos no sudeste da Turquia, um conflito que já deixou cerca de 40 mil mortos e que parece ter se agravado nos últimos meses. Em 14 de julho, 13 soldados turcos foram mortos em um confronto com guerrilheiros na província de Diyarbakir, e a questão dos direitos para a minoria curda tem se revelado tão perturbadora quanto a disputa de Erdogan com os militares.
"As Forças Armadas não estão fazendo o suficiente do ponto de vista militar para impedir esses ataques e esses prejuízos", disse um alto funcionário do governo. "Está faltando alguma coisa no planejamento da nossa luta contra o terrorismo."
Os militares turcos promoveram três golpes de Estado desde 1960 e, há apenas 14 anos, expulsaram do poder um governo que partilhava alguns vínculos com o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), de Erdogan.
"Nos velhos tempos, quando militares e políticos não conseguiam conviver, os políticos costumavam ser avisados e eram obrigados a sair", escreveu o colunista Mehmet Barlas no "Sabah". "Agora, o contrário ocorre. Não é fácil se acostumar à mudança."
Erdogan, 57, ex-prefeito de Istambul, tornou-se talvez o mais interessante fenômeno político turco em gerações. Impulsionado por uma economia próspera, ele trabalha há anos para transformar o país, fazendo dele uma potência regional decisiva. O seu partido obteve 50% dos votos em junho, na sua terceira vitória desde 2002.
Erdogan cita planos para reformar a Constituição, redigida sob a tutela militar após um golpe de Estado em 1980. Entre suas ideias está a de adotar um sistema que confira mais poderes ao presidente do que ao premiê.
Para os partidários de Erdogan, a saída dos generais salienta o crescente controle civil sobre os militares, algo saudável num regime democrático. Mas os detratores do premiê dizem que ele conseguiu essa vitória mobilizando o Judiciário contra os militares, em mais um exemplo do crescente domínio do seu partido sobre as instituições do Estado.
"Quem acredita que o AKP é um partido com uma agenda democrática está agora o aplaudindo e acredita que estamos nos movendo abruptamente em direção à democracia", disse Ersin Kalaycioglu, professor de ciência política na Universidade Sabanci. "Outros acreditam que o AKP é mais um partido conservador com uma agenda conservadora, tentando consolidar o poder sob uma nova forma de autoritarismo ou mesmo sob a ditadura de um homem."
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário