É como um soco retórico: minha Crimeia contra seu Kosovo! Em outros termos, "vocês [ocidentais] tiraram o Kosovo dos sérvios", "então nós [russos] podemos tirar a Crimeia dos ucranianos". Se bombardearam Belgrado para tirar uma das províncias da Sérvia, não há o que se dizer quando Moscou recupera com gentileza uma Crimeia que por muito tempo lhe pertenceu.
O uso do "argumento Kosovo" é recorrente. O objetivo seria privar de qualquer legitimidade as críticas dos ocidentais contra o golpe de Vladimir Putin à beira do Mar Negro. O presidente russo recorreu a ele, e o argumento costuma ser adotado por aqueles que, tanto em Paris quanto no resto da Europa, consideram as ações de um lado comparando com as do outro.
O precedente de Kosovo proibiria os americanos e seus aliados europeus de darem qualquer tipo de lição ao Kremlin, a menos que queiram ser taxados de hipócritas e de terem uma incurável obsessão anti-Rússia. É mais um registro político-moral do que comparação histórica, pois esta mostraria uma outra realidade: o que aconteceu em Kosovo não tem nada a ver com o que acaba de acontecer na Crimeia. Os fatos merecem ser lembrados em sua singularidade e não explorados para tais ou tais fins.
O Kosovo era uma região autônoma da República Sérvia dentro da Iugoslávia. Sua população era composta por 90% de famílias de origem albanesa e 10% de sérvios. Quando a Iugoslávia se desintegrou em 1989, o presidente da Sérvia, Slobodan Milosevic, embarcou em uma política de "nacionalismo étnico". Ele queria forjar à força uma Grande Sérvia que englobasse todas as regiões da antiga Iugoslávia onde se encontram os sérvios --o que pressuporia expulsar ou subjugar os não-sérvios de lá. A primeira decisão foi suprimir o status de autonomia do Kosovo, província que os sérvios consideram como seu berço histórico.
Milosevic queria "servizar" o Kosovo. Ele fez os kosovares sofrerem para que fugissem dali, com sequestros, prisões arbitrárias e tortura sistemática dos opositores. Sua política provocou um movimento de resistência passiva que, sob a égide do Exército de Libertação do Kosovo (UÇK), se transformou em guerrilha armada a partir de 1996. Em 1999, três anos de conflito e 11 mil mortos depois, os Estados Unidos, a Rússia e os europeus, por determinação da ONU, abriram uma negociação com Belgrado.
Quando Milosevic recusou os termos de um acerto aceito pelo UÇK, os ocidentais temeram que a continuidade do conflito fosse desestabilizar novamente os Bálcãs. No final de março de 1999, sem mandado da ONU e, é claro, sem o consentimento de Moscou, a Otan decidiu uma série de bombardeios "estratégicos" sobre a Sérvia. Em três dias de ataques "direcionados", os Estados Unidos juraram que levariam Milosevic de volta à mesa de negociações. A arrogância e a pretensão dos "estrategistas" da casa resultou em 78 dias de bombardeios, com um saldo de 500 mortos, para que Belgrado abrisse mão do Kosovo.
Um discurso que lembra Milosevic
Após um longo período sob tutela internacional, durante o qual os sérvios que ficaram foram tiranizados e perseguidos, a província declarou sua independência em 2008. Seu regime não pertence exatamente ao modelo socialdemocrata escandinavo, mas o Kosovo está prestes a normalizar suas relações com a Sérvia.
Nada que lembre, de perto ou de longe, o cenário da Crimeia. A região, que era russa desde 1783, foi anexada à Ucrânia pelo primeiro-secretário da URSS, Nikita Khrushchev, em 1954. É verdade que ela permaneceu no conjunto soviético e, sendo majoritariamente povoada por russos, a Crimeia continuava na órbita de Moscou. Mas, quando o império soviético se dissolveu, em 1991, a maioria da Crimeia votou a favor de uma Ucrânia independente.
Desde então, ela nunca sofreu opressão de Kiev. Nos anos 1990, negociou arduamente um status de autonomia com o governo central --paralelamente ao status especial de Sebastopol, que abriga uma grande base naval russa. Durante os meses de ebulição da Praça da Independência em Kiev, quando milhares de ucranianos protestaram contra a política do presidente eleito Viktor Yanukovich, nenhum abuso anti-russos foi assinalado na Crimeia.
A pequena península só começou a realmente ficar com medo quando os acontecimentos de Kiev no final de fevereiro provocaram a fuga de Yanukovich. Na verdade, quando este decidiu deixar a capital ucraniana, foi destituído pelo Parlamento e, durante essa sessão, os representantes de seu partido, o Partido das Regiões, votaram em massa a favor de sua destituição. As novas autoridades não voltaram atrás quanto ao status da base de Sebastopol, em nenhum momento. Mas, nos dias que se seguiram à fuga de Yanukovich, as forças especiais russas assumiram o controle da Crimeia.
Elas instauraram autoridades locais pró-Moscou, que decidiram realizar um referendo sobre o futuro da Crimeia. Foi uma consulta muito especial: sem campanha eleitoral e com votação na presença de forças especiais russas. O resultado, todos conhecem. Hoje, a Crimeia é russa, provavelmente por vontade própria, e também "putinizada": a mídia é controlada, a oposição é calada, há tensões étnicas crescentes e os militares ucranianos são humilhados.
A história do Kosovo é a de uma minoria étnico-religiosa que conquistou sua independência à força em meio ao turbilhão das guerras balcânicas da pós-Iugoslávia. Vladimir Putin anexou a Crimeia porque ele não suportava que a Ucrânia escapasse --nem um pouco-- da tutela de Moscou. Ele comparou um acordo comercial fechado entre Kiev e Bruxelas a uma tentativa de cerco hostil contra a Rússia.
Só há uma coisa que lembra Kosovo neste caso: os discursos do presidente russo soam um pouco como os de Milosevic. Este último queria controlar todas as regiões da ex-Iugoslávia onde se encontravam minorias sérvias. Já Putin fala em "proteger" as minorias russas em todo o território da antiga União Soviética. Preocupante.
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