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quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Der Spiegel: Protestos muçulmanos mostram os limites da liberdade de expressão

Afegãos queimam uma bandeira americana em Ghanikhel 

O filme anti-Islã “Innocence of Muslims” provocou protestos por todo o mundo muçulmano. Várias pessoas já morreram na onda de violência. O conflito levanta questões sobre até onde o Ocidente está preparado para sair em defesa da liberdade de expressão.

O “casting call” (chamada de atores) apareceu em um site de testes de Hollywood chamado "Mooncasting". Um diretor dizendo se chamar Alan Roberts escreveu que estava à procura de atores para estrelarem em um “drama histórico no deserto”. A filmagem em Los Angeles demoraria 18 dias. O suposto “filme independente” foi listado com o título de trabalho de “Desert Warrior” (guerreiro do deserto).

O diretor precisava de “vários tipos barbados como do Oriente Médio”, juntamente com um grande número de mulheres, particularmente uma atriz de 18 anos que “deve parecer bem mais jovem, pequena e inocente”. E, é claro, ele estava à procura de alguém para interpretar o papel principal: “George”, como o guerreiro do Oriente Médio no filme se chamaria, que seria um “líder, romântico, carismático”.

Desde o último dia 11, um trailer de quase 14 minutos desse filme trash, postado no YouTube, causou ondas de choque por todo o mundo. Na versão final do filme, “George” se tornou o Profeta Maomé. A atriz jovem se tornou uma criança que é levada para a cama pela versão de Maomé no filme –assim como várias das outras mulheres. Um burro até mesmo tem um papel. E os homens barbados nos papéis coadjuvantes imitam os seguidores fiéis de Maomé, que torturam e massacram as pessoas no filme até o sangue de Hollywood pingar de suas espadas. O nome do filme é “Innocence of Muslims” (A inocência dos muçulmanos). É um título cínico que está cheio de zombaria e desprezo –uma flagrante provocação.

Sangue está sendo derramado
O Islã raramente foi tão brutalmente vilificado. Qualquer pessoa que posta um filme como esse no YouTube deseja ver sangue de verdade –e agora sangue real está sendo derramado. O filme transformou partes do mundo islâmico em locais inflamáveis voláteis.  Nas últimas semanas, muçulmanos enfurecidos realizaram protestos no Egito, Iêmen, Tunísia e Bangladesh, entre outros países.

No Paquistão, onde protestos foram realizados em mais de uma dúzia de cidades no dia 16, uma pessoa foi morta por bala perdida.em um protesto em Hyderabad. Sayyed Hassan Nasrallah, o chefe do grupo militante xiita Hizbollah, convocou protestos no Líbano. “Os responsáveis pelo filme, começando pelos Estados Unidos, devem responder por ele”, ele disse.

Os protestos se tornaram particularmente violentos na Líbia. Em Benghazi –a cidade que os americanos ajudaram a libertar do regime do ditador Muammar Gaddafi– uma turba realizou uma manifestação em frente ao consulado dos Estados Unidos. Vários extremistas altamente armados com lançadores de granada e rifles de assalto realizaram um ataque mortal, matando o embaixador e três outros americanos.

E há muitas indicações de que pode ser apenas o início. No dia 14, os islamitas na capital do Sudão, Cartum, atacaram a embaixada da Alemanha. Temendo uma maior violência, o governo alemão fechou suas embaixadas em vários países islâmicos. Os americanos retiraram seu pessoal de algumas de suas missões diplomáticas e posicionaram destróieres com mísseis teleguiados além da costa da Líbia.

Danos políticos
Os danos políticos são enormes: os governos frágeis dos países da Primavera Árabe permanecem extremamente instáveis. O Ocidente agora está perdendo grande parte do crédito que obteve com sua oposição a ditadores como Gaddafi da Líbia e Hosni Mubarak do Egito.

 E não parece haver solução para esse conflito, que é alimentado pelas seguintes diferenças: para os Estados seculares do Ocidente, mas também muçulmanos seculares, a liberdade é vital –liberdade de expressão, liberdade artística e liberdade religiosa. Mas em alguns países islâmicos, as diferenças entre religião e política não são claras. E muitas pessoas nas favelas do Cairo, Sanaa e Cartum têm muito pouco do que se orgulhar, fora sua religião.

É fácil usar de blasfêmia para ofender mortalmente pessoas com menor instrução, e isso ficou ainda mais fácil desde o advento da Internet. De fato, é tão fácil que um islamófobo em qualquer lugar dos Estados Unidos precisa apenas carregar um vídeo no YouTube para provocar violência no outro lado do mundo. Esse novo choque de culturas é liderado por extremistas de ambos os lados, que incitam o ódio uns contra os outros –extremistas como Sam Bacile.

Esse é o nome usado pela pessoa que postou uma versão em inglês do vídeo no YouTube, em julho. Nada aconteceu por semanas. Há dez dias, uma versão em árabe também foi postada. Agora, o virulento vídeo antimuçulmano se tornou viral e pessoas do Oriente Médio entenderam a mensagem envolvendo Maomé, o burro e a menina.

‘O Islã é um câncer’
Após o início dos protestos, fontes vazaram um número de telefone para a agência de notícias “Associated Press”. Quando os repórteres discaram o número, um homem atendeu alegando ser Sam Bacile, o diretor do filme. “O Islã é um câncer”, ele disse, acrescentando ser um judeu israelense que queria espalhar a verdade sobre o Islã. Ele disse que cerca de 100 judeus doaram dinheiro para o projeto, supostamente no valor de US$ 5 milhões. Qualquer pessoa que diz algo assim não está disposta apenas a aceitar algumas poucas mortes; ele também está, ao menos aos olhos de muitos muçulmanos, tentando envolver o Estado de Israel.  Mas os jornalistas sentiram que havia algo na história dele que não batia. Eles encontraram o endereço que correspondia ao número de celular do homem. O homem que atendeu a porta em uma rua sem saída em Cerritos, perto de Los Angeles, negou ser Bacile. Ele disse que era apenas responsável por cuidar da logística da equipe técnica do filme, e mostrou sua carteira de motorista, mas cobriu seu segundo nome com um de seus dedos. Os jornalistas conseguiram ler Nakoula Nakoula –e o restante foi pesquisa. Eles descobriram que Nakoula foi condenado por fraude bancária em 2010. Ele foi condenado a uma sentença de prisão de 21 meses e ordenado a pagar uma restituição de US$ 790 mil.

Agora, os repórteres sabiam que o nome verdadeiro dele era Nakoula Basseley Nakoula, um cristão copta do Egito com cidadania americana. Segundo sua ficha policial, ele tem pelo menos 14 nomes falsos. “Basseley” soa quase como “Bacile”. Os investigadores americanos acreditam que Sam Bacile, Nakoula Basseley Nakoula e o diretor são a mesma pessoa.

Os 80 membros do elenco e da equipe técnica do filme aparentemente não sabiam sobre o que a produção se tratava. Em uma declaração conjunta, eles disseram se sentir “explorados pelo produtor” e “enganados”. Eles acreditaram que a história se passava no deserto. Mas as cenas principais, nas quais “George” se tornou o Profeta Maomé, foram claramente dubladas por atores diferentes depois da filmagem; os lábios dos atores não estão sincronizados com o som. Todo o vídeo é tão amador que parece uma caricatura. “Agora temos pessoas mortas por causa de um filme do qual participei. Isso me deixa doente”, disse uma das atrizes do filme.

Mas outros membros da equipe sabiam exatamente o que estava acontecendo. Steve Klein, por exemplo, serviu como consultor de roteiro para o diretor. Klein é um extremista cristão americano e notório islamófobo. Morris Sadek também ajudou a provocar a atual explosão de fúria. Sadek, um egípcio-americano copta radical, teve um papel chave ao promover o filme em seu site, que é lido em países islâmicos.

O terceiro provocador na equipe é o pastor Terry Jones da Flórida. Ele está de novo ameaçando queimar publicamente cópias do Alcorão, e também promoveu publicamente “Innocence of Muslims” na Internet. “O filme pode não contar com a qualidade de Hollywood”, Jones disse à “Spiegel”, mas ele disse que pretende continuar disseminando seu conteúdo. Jones diz que fala com o diretor, a quem ele apenas se refere como “Sam”, todo dia por telefone: “Nós queremos ajudá-lo a encontrar um lugar onde possa se esconder”.

 No dia 16, a “Spiegel Online” soube que o ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Guido Westerwelle, pediu ao Ministério do Interior para proibir a entrada de Jones na Alemanha. O Ministério do Interior disse posteriormente que a entrada do pastor no país “vai contra os interesses de manutenção da ordem pública”. A medida foi tomada em resposta a uma informação sugerindo que grupos de direita alemães anti-islâmicos, como o Pro Deutschland e Pro NRW, queriam convidar Jones a visitar a Alemanha nos próximos dias.

O fato de dois cristãos coptas e dois cristãos fundamentalistas estarem aparentemente ligados ao filme é um desdobramento perigoso para as minorias cristãs no Oriente Médio. Cerca de 14 milhões de cristãos vivem lá, com o Egito sendo lar de aproximadamente 8 milhões de coptas. Na semana passada, o papa Bento 16 chegou ao Líbano. Sua visita visava mostrar que os cristãos pertencem ao Oriente Médio e ele pretendia promover um diálogo.

Acima de tudo, os cristãos coptas no Egito são aqueles que podem precisar de ajuda e diálogo. Por séculos, eles são oprimidos e humilhados, e vira e mexe os extremistas muçulmanos incendeiam suas igrejas. E desde que manifestantes na Praça Tahir conseguiram derrubar Hosni Mubarak, e o controle do país pelo ditador deixou de garantir a paz nas ruas, eles passaram a sofrer ainda mais: em outubro de 2011, 24 coptas morreram quando tanques do exército passaram por cima dos cristãos que protestavam após um ataque contra uma igreja.

O cineasta Nakoula agora colocou os coptas em ainda maior risco. Há uma semana no sábado (15), o veneno de sua propaganda começou a surtir efeito. No canal de TV religioso egípcio “al Nas”, o apresentador xeque Khalid Abdullah exibiu trechos da versão em árabe do vídeo: a menina, o burro e o profeta ridículo. Khalid Abdullah é alguém que deseja incitar ultraje tanto quanto Nakoula –exceto que ele está do outro lado e buscando incitar o ódio contra os coptas.

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