A empresa russa que fabrica o lendário fuzil de assalto Kalashnikov passa por dificuldades. Uma suspensão das encomendas pelas forças armadas russas e uma enxurrada de imitações mais baratas a levaram à falência. Mas a empresa espera reviver sua boa sorte com novos modelos e uma campanha global para promover a marca
Izhmash |
Rogozin frequentemente conta histórias de sua época como embaixador da Rússia na Otan. Em Bruxelas, ele diz, ele ouviu mais de uma vez de seus colegas do Ocidente dizerem: “Os otimistas atualmente aprendem inglês, os pessimistas aprendem chinês, mas os realistas aprendem a usar um AK-47”.
É a enésima versão de uma velha piada, e não seria totalmente sem propósito suspeitar que foi o próprio Rogozin que a criou. Mas ela caiu particularmente bem durante a visita de Rogozin à fábrica da Izhmash, na cidade de Izhevsk, no oeste da Rússia, já que sua intenção era de que servisse como um bálsamo para as almas dos trabalhadores locais. De fato, os trabalhadores aqui têm interesse no destino do fuzil de assalto AK-47, porque por trás do nome aparentemente inofensivo da empresa, está a maior fabricante de armas da Rússia –e o berço do famoso Kalashnikov.
Essa arma automática, conhecida em russo simplesmente como uma “avtomat”, recebe até mesmo os mais altos elogios dos americanos, disse Rogozin. As unidades de elite americanas a utilizam, ele acrescentou, apesar do Congresso americano preferir a compra apenas de armas feitas nos Estados Unidos. Colecionadores particulares também abraçaram o fuzil de assalto, ele prosseguiu, notando que as vendas da arma nos Estados Unidos cresceram 50% no ano passado. Ele também mencionou como o Afeganistão ainda pede Kalashnikovs para Moscou, “apesar de terem 140 mil soldados bem armados da Otan dentro de suas fronteiras”.
A Rússia nunca deu ao mundo um carro ou um superjato próprio. Porém mais de 60 anos após seu lançamento, o Kalashnikov parece continuar marchando triunfantemente. Aproximadamente 100 milhões de AK-47 foram fabricados em todo o mundo. A arma ajudou os guerrilheiros nas selvas do Vietnã a derrotarem seus oponentes americanos, os líderes de Moçambique a incorporaram na bandeira de seu país, e o líder da Al Qaeda, Osama Bin Laden, carregava uma em suas aparições em vídeo. Até hoje, Kalashnikovs são equipamento padrão para qualquer exército rebelde na África.
Uma arma muito amada
Mesmo assim, o fuzil não é uma maravilha técnica. Ele não é particularmente refinado, nem é bonito de se ver. O Kalashnikov é mais o Fusca do mercado de armas do que o Porsche: é simples, tosco e indestrutível. “Nenhum fuzil no momento é tão confiável quanto este”, disse recentemente Josh Laura, um ex-marine de Maryville, Tennessee, para o “New York Times”, ao explicar por que comprou um AK-47. Terry Sandlin, um eletricista de Scottsburg, Indiana, disse que escolheu o modelo por causa da “qualidade e versatilidade muito superiores as de que qualquer outro no mercado”.
Os projetistas russos do fuzil tinham a simplicidade em mente desde o início. O Kalashnikov não visava ser um fuzil para soldados profissionais, mas sim uma pequena arma de fogo para as massas de soldados-cidadãos no bloco comunista. Em sua história do Kalashnikov de 2010, intitulada simplesmente de “The Gun”, o jornalista americano Christopher Chivers descreve o AK-47 e a bomba nuclear como “um par incompatível, mas fadado”, explicando: “O guarda-chuva nuclear congelou as fronteiras no lugar e desencorajou uma guerra total entre os exércitos convencionais empilhados na Europa, ajudando a criar as condições nas quais o Kalashnikov (...) (se transformou) na ferramenta predominante da era para violência nas zonas de conflito”.
O fuzil russo, que continua atirando mesmo em meio a tempestades de areia e chuva, foi um favorito nos conflitos desde o início. Os soldados americanos que lutaram na Guerra do Vietnã gostavam de trocar seus fuzis M16 pelos Kalashnikovs que tomavam dos combatentes inimigos mortos ou capturados, porque o AK-47 não falhava nem mesmo na selva úmida.
O músico do exército russo, Dmitri Poltoratski, chegou até mesmo a imortalizar o Kalashnikov em uma canção, cantando: “Eu sei para quem rezar e quem virá em minha ajuda. Meu Deus está pendurado em uma alça de couro e tem o logo de uma fábrica russa. O Kalashnikov é meu único Deus”.
Clonado até a morte
Essa canção foi escrita em 2001, mas as coisas começaram a rolar morro abaixo para o fuzil desde então. Hinos de louvor como os do vice-primeiro-ministro Rogozin são mais precisamente vistos como um sintoma de crise, assim como o atual boom da arma no mercado americano.
O Ministério da Defesa russo, antes o maior comprador do Kalashnikov, parou no ano passado de comprar a arma. O chefe do exército russo notou que pilhas de fuzis já lotavam os depósitos de armas do país, superando a demanda em “doze vezes”. Ele prosseguiu descrevendo o rifle como datado, dizendo que a era das guerras em grande escala tinha acabado e que um tipo diferente de arma é necessário para conter conflitos locais. Precisão, em vez de uma chuva constante de fogo contra as tropas inimigas, é o que é necessário, ele disse. Os planos pedem pela destruição de 4 milhões de fuzis AK-47 até 2015.
Em consequência, os negócios vão mal na fábrica em Izhevsk. A empresa criada pelo czar Alexandre 1º há 200 anos, para fabricação de mosquetes em preparação para a guerra contra Napoleão, a empresa que recebeu ordens de Stálin para fabricação de um rifle de assalto semelhante ao MKb 42(H) alemão durante a Segunda Guerra Mundial, está falida desde o primeiro semestre, após acumular 62 milhões de euros de prejuízos em 2011 e uma dívida de 136 milhões de euros. A produção da fábrica caiu pela metade e a própria empresa foi colocada sob controle de uma holding estatal maior.
Mesmo assim, os problemas da fábrica não podem ser atribuídos apenas à decisão dos militares russos de pararem de comprar a arma. Outro motivo é o fato do mercado global ter sido inundado de Kalashnikovs. O AK-47 foi clonado em quase todo continente, com cópias fabricadas em Belarus, Bulgária, Romênia e Sérvia, nos países africanos e particularmente na China –frequentemente sem licença. A maioria dessas armas também é mais barata do que a original russa.
Depositando as esperanças em novos modelos
Os chefes em Izhevsk tentaram evitar o desastre ampliando as ofertas da empresa. Apesar de costumar fabricar canhões para caças e munição de artilharia, a empresa agora se concentra em armas para caça e esporte.
Um desses produtos é o Saiga, uma versão civil do Kalashnikov que está fazendo sucesso no mercado americano. O Saiga não é o mesmo fuzil de assalto usado pela Al Qaeda ou pela milícia Al Shabab na Somália –mas sua aparência é a mesma. O Saiga tem um cano liso, em vez do cano estriado que provoca um giro perigoso nas balas disparadas pelo Kalashnikov real, e não tem um sistema totalmente automático.
O modelo também não é totalmente novo. Ele foi desenvolvido nos anos 70 para caça a saigas, uma espécie de antílope que agora está ameaçada, nas estepes do Cazaquistão. O líder do Kremlin, Leonid Brejnev, que era apaixonado por caça, deu sinal verde para sua fabricação.
Mas mesmo com o aumento das vendas, o Saiga ainda tem apenas um nicho no mercado de armas americano. O único consolo para seus fabricantes russos é que o fuzil não precisa temer a concorrência barata da China no mercado americano, porque a importação de armas chinesas semelhantes é ilegal nos Estados Unidos desde 1994.
Mesmo assim, ninguém em Izhevsk quer acreditar que este seja o fim de uma tradição de 200 anos. De fato, ainda há esperança –e ela atende pela abreviação AK-12.
AK-12 é o nome do novíssimo Kalashnikov, um que a empresa diz não ter nada em comum com o velho. Foi por causa desse fuzil que o vice-primeiro-ministro Rogozin viajou até Izhevsk.
Dizem que o novo Kalashnikov é uma maravilha, a arma suprema para os fomentadores de guerras. Ele pode receber mira laser, lançador de granada e um dispositivo de visão noturna. Ele pode disparar oito balas, rajadas de três balas ou em modo plenamente automático. Dizem que ele consegue atingir um alvo com precisão mesmo com rajadas rápidas. E seu pente pode conter 60, em vez de 30 balas.
Mas os jornais russos estão chamando o AK-12 de “blefe”, dizendo que o novo fuzil de assalto é apenas uma versão enfeitada do velho Kalashnikov. Ainda não se sabe se ele encontrará espaço no exército russo.
Uma ofensiva de promoção da marca
Até que essa decisão seja tomada, a Izhmash planeja se concentrar em resolver um assunto que ela reconhece ter negligenciado há anos: a divulgação de sua marca. Agora ela lançou uma campanha global para dar novo brilho ao nome Kalashnikov. A cidade próxima de Glasov produz uma vodca chamada Kalashnikov, que é vendida em enormes garrafas na forma do fuzil. Há versões de brinquedo do AK-47 feitas na China, e uma empresa chamada MMI, na cidade alemã de Solingen, detém os direitos para venda de relógios e guarda-chuvas com o logo Kalashnikov. A Izhmash também planeja usar o nome em uma linha de roupas de luxo.
Mas antes, Mikhail Timofeyevich Kalashnikov, o projetista original do rifle, terá que aprovar o plano. Ou talvez um de seus três filhos o faça, porque Kalashnikov, que recebeu duas vezes o título de “Herói do Trabalho Socialista” e “Herói da Federação Russa”, tem 92 anos e sua saúde é ruim. Ninguém lhe disse que o rifle que ele inventou agora é evitado pelo exército russo. Segundo o jornal “Isvestia” de Moscou, fazê-lo seria “um duro golpe para uma pessoa de sua idade”.
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