quarta-feira, 24 de outubro de 2012
Rebeldes líbios vivenciam segunda revolução pós-Gaddafi
É hora do intervalo de almoço para os médicos do hospital de campanha montado nos limites de Bani Walid, no terreno de um heliporto militar. Cerca de dez médicos se voluntariaram para acompanhar a ofensiva das brigadas revolucionárias líbias contra esse grande vilarejo em pleno deserto, considerado um reduto gaddafista.
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Eles se sentam de pernas cruzadas, no domingo (21), à sombra das barracas, e os jovens escoteiros que servem de cozinheiros colocam aos seus pés uma grande gamela de ferro branco. Cardápio do dia: espaguete com molho de tomate e carne de camelo.
Os toubibs [médicos] se servem dessa “gororoba líbia” com as mãos, como manda o costume beduíno, enquanto metralhadoras crepitam ao longe. “A batalha ainda levará algum tempo, uma semana ou dez dias”, prevê Ali Zakout, um anestesista de Misrata. “Mas é um sacrifício necessário. Se quisermos recolocar nosso país no caminho certo, é preciso entrar em Bani Walid para deter os partidários de Gaddafi que se escondem ali há um ano. Essa batalha é nossa segunda revolução”.
Um helicóptero Chinook muito velho estaciona na pista, ao lado de dois outros aparelhos menores. Eles fazem rodízio com o hospital de Misrata, a uma centena de quilômetros mais ao norte. No sábado (20), dia negro para os atacadores, mais de 200 feridos e 22 mortos foram registrados, sendo que em Bani Walid; o saldo chegava a quatro mortos e vinte feridos. “A maior parte das vítimas foi atingida por tiros de snipers”, garante Mohamed Abou Shahala, um jovem combatente de Misrata, que descansa em um colchão, em um cômodo adjacente para emergências.
“Os milicianos de Bani Walid usaram a população civil como escudo humano”, ele diz. “não podemos utilizar armas pesadas. Durante o dia avançamos na cidade, mas à noite somos obrigados a nos retirar.” O relevo escarpado da região também favorece os sitiados, que ficam acima de seus adversários. “Os milicianos de Bani Walid se defendem incessantemente, como os de Sirte que protegiam Gaddafi um ano atrás,” acredita o Dr. Zakout. “Isso certamente quer dizer que caciques do antigo regime encontraram refúgio na cidade”.
É necessário olhar para trás. Em 2011, ao contrário de seus vizinhos de Misrata, famosos por terem derrotado as forças pró-Gaddafi, a maioria dos habitantes de Bani Walid tem adotado uma posição de neutralidade, ou até de franca hostilidade em relação à insurreição. Uma atitude que se deve a dois fatores: a lembrança da repressão ordenada por Gaddafi, após um golpe de Estado fracassado conduzido em 1992 por oficiais nativos da cidade; e o estado de dependência de sua população, pobre e pouco instruída, em relação aos subsídios do Estado. Muitos jovens dessa região ingrata entraram para as tropas que deveriam castigar a insolente Misrata, centro de atividade do comércio na Líbia. Uma escolha alimentada pelo velho antagonismo existente entre essas duas cidades desde que um xeque de Misrata foi morto, nos anos 1920, por um membro da tribo Warfalla, majoritária em Bani Walid.
Com a queda de Trípoli, em agosto de 2011, um conselho pró-revolução acabou conseguindo tomar o poder, apesar de tudo. Mas cinco meses depois ele foi tirado pelos pró-Gaddafi, que acusaram seus membros de terem cedido às pressões de Misrata e transferido para seus cárceres – ilegais – residentes da cidade. O conflito entre as duas vizinhas estourou durante o verão, quando ex-rebeldes da cidade portuária foram sequestrados em Bani Walid. Entre eles, Omrane Cha’abane, o homem que descobriu o esconderijo de Gaddafi em Sirte, numa tubulação de concreto. Sua morte em setembro, decorrente de ferimentos infligidos durante sua detenção, causou comoção nacional. O parlamento líbio ordenou que o governo apreendesse seus sequestradores e a tarefa foi confiada a Deraa Libya (“o escudo da Líbia”), uma coalizão de ex-brigadas revolucionárias, que opera sob ordem do ministério da Defesa, no lugar do exército nacional, um corpo que o regime Gaddafi levou com sua queda.
Nas picapes que avançam para o front, atravessando as planícies pedregosas do deserto líbio, os recrutas da “Deraa” se alternam entre a rádio de Misrata e a de Bani Walid. Na primeira, os rumores mais inverificáveis são divulgados, como o que afirmava que dois dos filhos de Gaddafi, Khamis e Hannibal, se encontravam na cidade inimiga. Vale tudo para fazer da queda de Bani Walid uma questão nacional e para conter a fúria da tribo Warfalla, espalhada por todo o país. “Estamos sempre em guerra”, diz Mohamed Khalifa, um homem atarracado de trinta e poucos anos, usando um chapéu de caubói.
Do outro lado, a estação de Bani Walid denuncia “a arrogância” dos habitantes de Misrata e alerta contra “uma segunda Tawargha”. Por ter apoiado Gaddafi e participado das atrocidades cometidas por seus asseclas, esse lugar virou uma cidade-fantasma. Seus 40 mil habitantes foram expulsos com ajuda militar pelos rebeldes de Misrata, que há um ano os impede de voltar para suas terras. “Salem al-Waer, o chefe das forças de Bani Walid, não para de gritar contra as ‘milícias’ de Misrata, como se estivéssemos nos preparando para cometer crimes de guerra”, sorri Refa’at Ahmed, operador de rádio da Deraa Libya.
O novo Estado líbio está apostando pesado neste caso. Se ela terminar em sua vantagem, sem muitos danos, a batalha de Bani Walid pode marcar o início de sua apropriação dos poderes securitários, até então nas mãos dos ex-thuwars (revolucionários). Ela pode oferecer a suas instituições incipientes um primeiro sucesso útil para o futuro. Mas na hipótese de um afundamento dos combates e de um aumento no número de vítimas, um efeito de contágio não é impossível. “É verdade”, reconhece Mustafa Gheryani, um empresário de Trípoli, “Bani Walid é um teste para a nova Líbia. Mas vamos passar, e depois atacaremos a questão mais urgente: a recuperação de nossa economia”.
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