Mulheres libanesas lamentam a morte de um ente querido morto entre confrontos entre o Hizbollah e milicias Ahbash, em Beirute, em 2010 |
"Não é possível que não afete o Líbano", comentava meses atrás a este jornal um veterano observador político libanês. A incógnita é em que medida a guerra vai contaminar o pequeno vizinho desmembrado da Síria pela potência colonial francesa depois da queda do Império Otomano, e onde há apenas sete anos ainda estavam mobilizados 15 mil soldados de Damasco. Porque são muitos os ingredientes que podem propiciar explosões mais violentas do que a que sofre Trípoli desde a última segunda-feira (20).
Fiéis de qualquer das confissões, às vezes parentes, vivem dos dois lados da fronteira; os interesses econômicos sírios em Beirute são - à margem dos que consideram o Líbano parte da Síria - enormes; as fraturas sectárias entre os 4 milhões de libaneses são centenárias; as seitas sunitas, xiitas, cristãs e drusas se armaram até os dentes, e um bom punhado de países poderosos também travam uma guerra com seus testas-de-ferro em campo.
A fagulha - poderia valer qualquer dos acontecimentos hoje cotidianos: sequestros, ataques a lojas de sírios, ameaças de matar reféns, frequentes bloqueios de estradas no aeroporto de Beirute ou em passagens de fronteira - pode gerar um enorme incêndio, embora os atores em cena, libaneses e estrangeiros, não o pretendessem. Muitas potências - Síria, EUA, França, Arábia Saudita, Catar, Irã - jogam nessa macabra partida. Mas é o presidente Bashar Assad, encurralado em seu palácio em Damasco, quem parece levar a iniciativa desestabilizadora, que encontra sempre resposta imediata. No Líbano ninguém espera. Ninguém confia em ninguém. A deterioração da situação, por paulatina que seja, faz soar os alarmes com mais estridência que nunca.
"Enquanto a crise na Síria continua se deteriorando, a situação no Líbano é cada vez mais precária e o apoio internacional ao governo e às forças armadas libanesas é cada vez mais importante", disse na última quarta-feira (22) o subsecretário-geral da ONU para Assuntos Políticos, Jeffrey Feltman, diante do Conselho de Segurança. Ex-embaixador dos EUA em Beirute na última década, Feltman expressou "a preocupação" da ONU diante "das tentativas de envolver o Líbano nos acontecimentos da região", apesar do compromisso das autoridades do país de se manter à margem da crise. O diplomata americano não o disse explicitamente, mas seu dedo acusador apontava para Damasco.
Em 9 de agosto, um ex-ministro da Informação, o cristão partidário do regime sírio Michel Samaha, foi detido em posse de explosivos. As evidências de que planejava atentar contra líderes ou povoados sunitas devem ser de tal calibre que inclusive o Hizbollah, firme aliado de Assad, evita sair em defesa de Samaha. Os 4,2 milhões de libaneses estão conscientes de que os próximos dias e semanas serão decisivos.
O primeiro-ministro libanês, Najib Mikati, que vê a coisa chegar, ampliava ao máximo o elenco dos responsáveis, diferentemente de Feltman: "Nenhum partido político pode considerar que não tem responsabilidade pelos recentes acontecimentos e suas repercussões. Nossa prioridade agora é evitar as lutas [sectárias]... Mas está claro que várias partes querem empurrar o Líbano para o conflito". O exército se pronunciou em uma linha semelhante, embora mais contundente.
O comando das forças armadas arremeteu em um comunicado contra dirigentes políticos de todo matiz: "Os políticos, à margem de sua afiliação e suas diferenças, devem se abster de alimentar os combates, deixar de se intrometer nos acontecimentos em Trípoli e assumir sua responsabilidade neste tempo crucial". E advertiu contra as "tentativas de criar mais tensão e aproveitar a situação regional".
É temerário prever acontecimentos em semelhante vespeiro, mas algumas vozes respeitadas reduzem a probabilidade de que irrompa outra guerra civil como a que arrasou o Líbano entre 1975 e 1990, sanguinária e fratricida como poucas. "Foi como um campeonato de futebol, todos lutaram contra todos e duas vezes", descreve um especialista.
"A emergência do Hizbollah como a milícia mais poderosa significa que ninguém começará uma guerra civil porque o Hizbollah pode derrotar rapidamente qualquer combinação de inimigos. Ao mesmo tempo, o governo, apoiado pelo Hizbollah, e as forças de segurança estão agindo mais decisivamente que antes e sufocando as pequenas irrupções violentas em todo o país", escreveu na semana passada o analista Rami Khouri. No entanto, ele não descarta o risco: "Os libaneses tiveram muitas oportunidades na última década para cair em outra guerra civil e sempre deram um passo atrás da beira do precipício... Mas ao mesmo tempo estão sempre preparados para chegar ao precipício".
E se o Líbano cair pelo barranco a guerra será travada sobretudo nas cidades. Porque nelas residem, muito misturados, os fiéis das 18 confissões que coabitam os 10.452 quilômetros quadrados do que há 40 anos era um paraíso mediterrâneo.
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