As plantações verdes de trigo brilham à luz do fim da tarde enquanto o vento lentamente começa a ficar mais forte. Uma nuvem de poeira passa. Isso é bom, diz Abu Abdu, agricultor do vilarejo de Teminnes, localizado no interior do sul da província de Idlib, na Síria. Antes da guerra, o vento da noite era um inconveniente por causa da poeira que ele levantava. Mas, hoje em dia, são as noites sem vento que a população local despreza. É quando os helicópteros da força aérea se aproximam e acontecem os ataques de gás. Com frequência, eles circulam sobre a cidade antes de lançar sua carga.
Normalmente, não há uma grande explosão, apenas o som de uma detonação menor, às vezes apenas o baque de um impacto. A morte chega silenciosamente, como aconteceu na noite de 21 de abril em Telminnes.
Foi a noite em que uma bomba caiu perto do quintal de Abu Abdu. O agricultor diz que a explosão foi silenciosa. "Achei que o ponto de impacto tivesse sido longe daqui", lembra-se. A bomba, que carregava uma pequena quantidade de explosivos e um cilindro de gás, caiu perto. Tão perto que, quando Abu Abdu viu a nuvem, já não tinha mais chance de fugir. "O vapor amarelo subiu, ele cheirava fortemente a cloro e queimava como fogo. Eu não conseguia mais falar nem respirar", disse ele. Os vizinhos o levaram para um hospital improvisado, onde ele foi tratado com oxigênio e anticonvulsivo. "Horas mais tarde, eu mal conseguia mover meus braços, estava tossindo sangue e era um inferno respirar."
Entre 200 e 300 pessoas foram para o hospital de Telminnes naquela noite, sofrendo de queimaduras nas vias respiratórias, dificuldade de respirar e irritação nos olhos. Ninguém mostrava sinais de ferimentos externos. Abu Abdu e outros foram transferidos para hospitais no norte. Os pacientes mais afetados foram levados para a Turquia, onde duas crianças morreram mais tarde.
Abu Abdu voltou para casa desde então, mas ainda sofre de acessos de tosse. Toda noite ele espera que o vento sopre; o regime, diz ele, não arriscará um ataque de gás cloro em tais condições climáticas. "Talvez eles temam por seus soldados em Wadi Deif", diz ele. A maior base do exército na província fica localizada a apenas poucos quilômetros ao sul de Telminnes.
Cloro liberado
Embora Damasco tenha entregue 92,5% de seu estoque de armas químicas, incluindo o sarin, conforme acordado, o governo continua usando gás venenoso contra o povo sírio. Dado o uso do cloro em produtos cotidianos, ele não está incluído na lista de armas que o regime concordou em colocar sob controle internacional. Seu uso contra seres humanos é, contudo, proibido pela Convenção de Armas Químicas, da qual a Síria é signatária.
Pelo menos dez ataques com gás cloro foram realizados desde 10 de abril nas áreas fronteiriças das províncias de Idlib e Hama, incluindo um em Telminnes, três em Al-Tamana'a e seis na pequena cidade de Kfar Zeita e adjacências. A região rural e montanhosa é um campo de batalha que tem sido em grande parte ignorado pelo público. É de difícil acesso, não há grandes cidades na área e ela tem sido cenário de uma luta marcada por ganhos territoriais mínimos. Durante os dois últimos meses, o regime perdeu o controle de vilarejos estrategicamente importantes aqui, e os rebeldes também bloquearam a rodovia entre Hama e Aleppo. Agora parece que Damasco está tentando ganhar uma vantagem com o uso do gás cloro.
A natureza dos ataques parece ser a mesma em cada episódio. Segundo testemunhas, eles envolvem barris de bombas lançados a partir de helicópteros. São artefatos baratos, confeccionados pelos militares. Os barris são preenchidos com explosivos e estilhaços de metal --ou cloro.
Em 12 de abril, a TV estatal síria reportou que a Frente al-Nusra, alinhada à Al Qaeda, havia detonado contêineres com cloro. Mas o regime também fez acusações similares depois dos taques de sarin que aconteceram no ano passado. E uma pesquisa feita pela Spiegel refuta essa nova acusação. Uma equipe da Spiegel conseguiu visitar os três locais dos ataques e falou com pessoas que sofreram ferimentos, testemunhas e médicos no local e também investigou as crateras dos impactos e os destroços dos projéteis. Jornalistas da Spiegel foram os primeiros repórteres estrangeiros a visitar o local.
Nossos jornalistas determinaram que o vilarejo de Al-Tamana'a, na província de Idlib, também foi alvejado, com mais de 100 feridos levados ao hospital após os ataques de gás cloro nas noites de 12 e 18 de abril. Todas as vítimas sofreram com os mesmos sintomas que as de Telminnes: dificuldade de respirar, falta de ar, tosse com sangue, vermelhidão nos olhos e salivação forte. "Em 18 de abril, só levamos os casos mais graves para hospitais maiores", disse um médico. "Então tivemos que evacuar todo mundo quando o gás atingiu a ala e o cheiro de cloro ficou cada vez mais forte." Ele disse que cinco pessoas morreram.
Parte 2: "Talvez tenha sido um teste"
Os piores ataques foram contra Kfar Zeita, a pequena cidade na qual se originaram os primeiros relatos sobre vítimas do gás cloro. Antes da guerra, 25 mil pessoas viviam aqui, mas apenas um décimo da população permanece. O resto fugiu ou morreu. No caminho até a cidade, passa-se por cidades-fantasma, tanques queimados, estradas de terra e um trecho totalmente desolado de rodovia. Apenas poucos quilômetros separam a cidade dos postos militares do regime.
A primeira bomba de cloro foi lançada em 10 de abril, mas ninguém ficou ferido no incidente. "Talvez tenha sido um teste", diz Abdullah Darwish, médico em um dos dois hospitais da cidade que continuam em operação. Na noite seguinte, uma segunda bomba-barril foi lançada a cerca de 400 metros da clínica. Desta vez ela explodiu com uma grande detonação. O médico disse que a viu lançar uma nuvem amarela que loco desceu sobre as casas.
Poucos minutos mais tarde, a primeira das mais de 100 vítimas chegou ao hospital. "A primeira vítima, um refugiado, morreu depois de sofrer ferimentos na cabeça por causa do ataque, mas não por causa do gás", disse ele. O homem tinha vindo de Morek, uma cidade vizinha que havia sido palco de um confronto acirrado. "As pessoas estão fugindo das bombas, mas para onde? Para Kfar Zeita", disse o médico. E, uma vez que elas chegam lá, são bombardeadas novamente. É como sair de um inferno para outro. A filha do homem morreu quatro dias depois --suas vias foram queimadas pelo gás.
Em 12, 16, 18 e 26 de abril, bombas de gás cloro caíram sobre Kfar Zeita e no entorno. Uma bomba feriu cinco pessoas; outra, 50. "Parece que estamos sendo usados como cobaias para as novas armas do regime", disse Darwish. "Eles também usaram lançadores de foguete russos com munição cluster pela primeira vez em Kfar Zeita."
O cirurgião, que fuma sem parar e tem um sorriso à la Jack Nicholson, sabe do que está falando. Ele transformou a clínica privada em um dos melhores hospitais da região. "Podemos fazer cirurgia cardíaca com o tórax aberto e temos até dez médicos aqui, incluindo ortopedistas, cardiologistas e cirurgiões", disse ele. Ele acrescenta que o hospital recebe ajuda da Sociedade Médica Sírio-Americana com sede nos EUA e do governo britânico.
Indícios contra o regime
Mas tudo pode acabar com um piscar de olhos. "O exército sabe exatamente onde nós estamos", disse ele. "Quando ouvimos o barulho dos rotores, olhamos para cima para ver onde as bombas vão cair. Até agora, eles não nos acertaram 16 vezes. Continuamos com nosso trabalho." Parece que o vento os salvou, assim como o medo dos pilotos. De fato, estes voam a uma altura de quatro quilômetros para evitar serem abatidos pelos rebeldes, mas isso faz com que o lançamento de bombas seja muito impreciso.
O ataque em 18 de abril quase atingiu o segundo hospital da cidade, cuja equipe recebe suprimentos de colegas de Abdullah Darwish. Nenhuma das duas bombas-barril que caíram explodiram; elas se abriram no impacto, e o gás saiu mais lentamente, o que pode ter salvado vidas. Foi esse lance de sorte que também forneceu a indicação mais forte de quem é o autor dos ataques.
As bombas, que perderam a forma no impacto, têm todas um revestimento de aço de quase um centímetro de espessura. Dentro há cilindros de um tipo normalmente usado em indústrias com as iniciais gravadas "CL2", bem como o nome da Norinco, suspeita fabricante da China. CL2 é o símbolo para o gás cloro. Cilindros idênticos com os mesmos símbolos gravados foram encontrados em outras bombas-barril que não explodiram em Telminnes, bem como em bombas que detonaram, mas que não foram completamente destruídas, perto da casa do agricultor Abu Abdu.
É difícil provar os ataques com gás cloro. Amostras forenses colhidas por um médico sírio que foram então analisadas por especialistas profissionais em armas contratados pelo jornal inglês Telegraph, que publicou suas descobertas na semana passada, determinaram altas concentrações de cloro nos locais dos impactos. O problema é que o cloro também é usado como alvejante ou desinfetante. Outro é que o gás cloro não deixa o tipo de assinatura química que pode ser detectada na decomposição de produtos do sarin. Contudo, é necessário um helicóptero para lançar bombas de meia tonelada de uma altura tão grande, e os rebeldes sírios não têm helicópteros à sua disposição.
Há outros indícios de que o regime foi o autor dos bombardeios, mas não é possível confirmá-los de forma independente. Enquanto os rebeldes não têm nenhuma arma que podem usar para combater jatos ou helicópteros que voem alto, técnicos da Frente Islamista, a maior aliança rebelde do norte, conseguem interceptar as comunicações de rádio de pilotos e do exército. Eles mantém estações de escuta espalhadas a cada poucos quilômetros em barracas, quintais de fazendas e sob oliveiras. Os homens monitoram as rotas de voo e os anúncios feitos pelo rádio. Eles também enviam seus próprios alertas sobre possíveis ataques via rádio.
Além disso, eles interceptam rotineiramente as comunicações em Wadi Deif, a base militar massiva próxima a Telminnes, como fizeram em 21 de abril, o dia em que duas bombas de gás foram lançadas na cidade. Os rebeldes alegam que um alerta foi transmitido naquele dia para que os soldados tivessem suas máscaras de gás a postos. Horas mais tarde, eles afirmam que os soldados do regime comemoraram pelo rádio que os "terroristas" de Telminnes estavam despachando "muitas ambulâncias" naquele momento.
A rede de transmissão estatal em Damasco continuou informando que a Frente al-Nusra havia sido a responsável pelos ataques de gás. Uma declaração do Ministério de Relações Exteriores em Moscou também afirmou possuir "informações confiáveis" indicando que as alegações contra o regime sírio eram mentirosas. A declaração considerou as acusações como "histeria anti-Síria". Entretanto, autoridades nos Estados Unidos, França e Inglaterra disseram que havia provas de um ataque de gás. Uma investigação da Organização pela Proibição de Armas Químicas deve esclarecer os acontecimentos. Damasco concordou formalmente com o inquérito na semana passada, mas só nas áreas que estão sob controle do regime. Infelizmente, essas áreas não incluem nenhum dos locais atingidos pelos ataques de gás cloro que foram cometidos até agora.
Não há esperança
Atualmente, o regime prevalece militarmente no meio do país --em Homs e em torno de Damasco--, mas está perdendo em direção à periferia, em lugares como Idlib e Hama, no norte, e em Daraa, no sul. A parte leste do país saiu quase que inteiramente do controle de Damasco. Em vez disso, ambos os lados ainda estão obstinados. Ao médico Abdallah Darwish só resta esperar que a próxima bomba também erre o alvo. E, apesar do fato de que quase metade da população fugiu, o presidente sírio Bashar Assad ainda planeja realizar eleições em 3 de junho para afirmar um mandato adicional de sete anos como líder do país. Enquanto isso, os rebeldes continuam a lutar, e grupos religiosos estão ganhando influência.
Em Idlib, a força militar da Frente Nusra, alinhada com a Al Qaeda, aumentou. Ao mesmo tempo, entretanto, ficou mais restrita porque, mais ao leste, as ideias de teocracia já se tornaram uma realidade em lugares onde o Estado Islâmico do Iraque e da Síria prevalece. Seus membros são conhecidos por decapitar oponentes, sequestrar estrangeiros, mas também por tomar como reféns sírios que atrapalham seu regime de terror. Mas, de fato, pouca coisa pode tornar uma teocracia mais impopular do que sua implementação prática. "Parem com essa coisa de cortar as mãos", disse um combatente da Nusra em um pequeno grupo enquanto seu comandante começou a se entusiasmar com uma interpretação radical da sharia. "Não é por isso que estamos lutando."
Em Telminnes, dois médicos passaram a fornecer ajuda prática para as pessoas. Eles viajam de mesquita em mesquita com um projetor e uma apresentação para fornecer às pessoas dicas do que fazer no caso de um ataque de gás venenoso. Elas devem retirar as roupas, ir para um local mais alto o mais rápido possível e caminhar contra o vento. "No caso do gás cloro, é possível ver o vapor amarelo", eles alertam, "mas o sarin é invisível". Apenas algumas dicas para a vida cotidiana na Síria esfacelada pela guerra.
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Depois que os terroristas detonaram armas químicas para incriminar Assad e conseguir intervenção estrangeira, eu não acredito em mais nada.
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