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terça-feira, 24 de julho de 2012

Le Monde: A Síria que já foi libertada tenta organizar o pós-Assad


Imagem de Bashar al-Assad é queimada durante confronto entre insurgentes e forças leais ao regime do ditador sírio, em Aleppo, nesta segunda-feira (23)

Acabou. Bashar al-Assad caiu. Não de verdade, evidentemente, o regime sírio ainda está bem instalado em Damasco, apesar de impressionantes reveses. Mas, entre Aleppo e Azaz, nessa região no extremo norte do país, sua queda parece ser a única coisa absolutamente certa nesses tempos em que nada mais o é.

No chão de uma fazenda, cerca de dez homens estão sentados em círculo; gente simples, que fala pouco e teoriza ainda menos. Caminhões de batatas transportam ruidosamente a colheita do dia, com mulheres e crianças penduradas em cachos na caçamba. Logo atrás, ressoa um tiro de morteiro. As pessoas se espantam: normalmente, os bombardeios começam por volta das 20h. Depois alguém repete: “É o fim do Bashar”. Quando? Como? Quem ainda estará vivo? Ninguém considera importante responder a essas perguntas.

Aqui, as estradas não estão bloqueadas por nenhum posto de controle do regime: o exército agora só controla o espaço aéreo, um pedaço de fronteira, e Aleppo, a segunda maior cidade do país.

Quanto ao resto, essa faixa de 60 quilômetros de extensão que vai até a Turquia escapou completamente das estruturas oficiais. As escolas, o trem, o correio, as administrações, os governos locais, tudo foi parando aos poucos nesses últimos meses à medida que os funcionários públicos recuavam para Aleppo ou Damasco. Os últimos a partir foram os policiais. “Foi naquele momento que entendemos que não teria mais volta”, disse alguém. “Concordamos morrer por isso”.

Na entrada do vilarejo de Akterine, uma mão escreveu tranquilamente uma única palavra com tinta branca sobre uma cabana de madeira: “Liberdade”. É um dos postos de controle do Exército Livre da Síria (ELS). Em frente, cinco gigantes surpreendentemente loiros dividem três kalashnikovs, que eles giram com respeito em suas cascudas mãos de lavradores rurais. Moradores do vilarejo venderam suas peças de ouro ou joias de casamento para comprá-las na Turquia. Se necessário, empilharão pedras para conter os tanques, mas há dois meses que eles não têm sido vistos aqui. A situação parece ainda mais espantosa pelo fato de que essa região por muito tempo foi uma das menos ativas do país, com as mãos na agricultura e a cabeça no comércio, pouco preocupada com os assuntos da capital, mesmo quando a onda de revoltas começou em todo o país, em março de 2011.

Em Jibrin, um professor se lembra da primeira manifestação no vilarejo, talvez há um ano: cinco pessoas encapuzadas, com somente uma delas munida de uma lanterna, se plantaram no meio da noite no centro de um campo. Eles ousaram permanecer ali por exatos seis minutos antes de saírem correndo.

Por volta da meia-noite, o anúncio do ocorrido caiu como uma bomba sobre o vilarejo. As pessoas saíram gritando: “A revolução está chegando!” Eles se mostravam divididos, muitos temiam os golpes e a tortura. “Eu já fui preso duas vezes: uma porque era suspeito de estar envolvido com política. Quanto à outra, não me deram nenhum motivo”, explica um comerciante. Ele fala sobre isso tranquilamente, como algo trivial na vida de um homem.

Todo o vilarejo de Jibrin fez súplicas aos cinco para não protestarem mais. Na semana seguinte, eram oito deles. Para fugir das prisões, alguns começaram a dormir nos campos, um outro teve de fugir para Londres, outro ainda fechou sua loja. Ao final de vários meses, a procissão se arriscou a aparecer em plena luz do dia no vilarejo. Quem sabe o que não teria acontecido se a polícia não tivesse começado a bater no meio da rua em um homem que fumava sob um pórtico? A jogar uma mulher no chão? A atirar na multidão?

Um pedreiro foi o primeiro a morrer durante uma passeata em Marea, um grande vilarejo da região, próspero e civilizado. Ali houve no total 28 vítimas, 50 em Tal Rifat, quase 70 em Azar. Um analista de sistemas da região, que fez vídeos dos acontecimentos, lança um convite para que venham assisti-los.

Nesse momento, o calor e a luz são escaldantes, talvez 50 graus. Em sua casa, o ventilador está parado. A eletricidade não funciona durante várias horas por dia, tampouco há abastecimento de combustível. O analista de sistemas acredita que são punições contra a região: aqui vivem somente sunitas, assim como a maioria da população. Havia alguns membros da comunidade alauíta, geralmente nomeados a postos de poder. “Como sempre”, explica o analista de sistemas. “Somente eles têm uma chance de ser bem sucedidos, nós não.” Os alauítas em questão fazem parte daqueles que fugiram quando a situação começou a reverter. Na cidade, a taxa de câmbio do dólar já disparou de 48 para 78 libras sírias. O preço da carne triplicou, o do cigarro também. O analista vendeu seu celular, um Nokia de última geração.

Ele tenta se lembrar de como era a vida antes da revolução --é o termo consagrado aqui--, mas não consegue.

Ao mesmo tempo em que serve refrigerantes, ele mostra em seu monitor fotos do pedreiro crivado de balas na rua principal. “As pessoas se radicalizaram quando viram que a polícia as matava simplesmente porque elas saíam de casa”, ele comenta. Então, cada vilarejo começou a se organizar para proteger as manifestações e aqueles que a polícia ameaçava. Os chabiha, especialistas em trabalho sujo do regime, foram sequestrados e espancados.

Alguns foram mortos, também. Quando os comboios militares chegaram, pouco depois, em maio de 2012, foram atacados.

No computador do analista de sistemas continuam a passar outros vídeos de corpos queimados ou de gente chicoteada, todo um martirológio de uma violência crua, que o tremido das imagens, feitas por amadores, torna ainda menos suportável. A bem dizer, aqui quase se tornou um ritual receber hóspedes com esses filmes. Educadamente, o dono da casa pergunta: “E vocês viram o das sete pessoas de uma mesma família mortas em suas casas a facadas pelos soldados de Bashar, perto de Aleppo?” Oferecem para fazer cópias. Eles as olham e olham, até não conseguirem mais manter os olhos abertos. Um ano atrás, talvez, elas teriam causado terror.

Hoje, elas estimulam o povo, e fazem parte plenamente da revolta e de sua dinâmica. Nas profundezas de cada vilarejo, meninos agitam, como em uma reivindicação, celulares sem chips nem rede, só para registrar esse país proibido onde qualquer foto tirada em vias públicas, mesmo que seja de seu próprio casamento, pode mandar qualquer um para a masmorra.

Ao longo dos campos, separadas por fileiras de girassóis, metade das casas estão vazias. Três helicópteros  sobrevoam. Outro dia, eles metralharam uma criança, e depois um rapaz em uma moto e um outro em uma ceifadeira.

Todos os dias os bombardeios recomeçam, em um canto ou em outro, às vezes em vários.

A estratégia parece tão policial quanto militar: apavorar as pessoas. É comum cruzar, à beira de alguma estrada, com um pai de família se preparando para fugir, empilhando móveis e filhos na traseira de um caminhão. Eles cruzam com exilados políticos que fazem o caminho inverso, voltando ao vilarejo após 30 anos no Iêmen ou na Arábia Saudita. Eles choram, exultam, juram que não partirão novamente.

Em toda parte há exemplos de prédios de instituições bombardeados pelo próprio exército de Bashar Assad, hospitais, conselho municipal ou regional, centros de recrutamento militar, deixando a estranha impressão de um regime que sabota a si mesmo.

“Eles têm medo que nos instalemos lá”, explica Youssef Châabane, um dos únicos a se identificar. Com a fuga do chefe da municipalidade de Tal Rifat, ele foi escolhido para substituí-lo pelas famílias importantes da cidade. Elas também designaram membros seus para trabalhar com ele, 20 no total.  A maioria deles são, como Châabane, empresários que trabalham sobretudo com os países do Golfo ou a Turquia. Ele brinca: “Conseguimos ganhar dinheiro em qualquer lugar, menos na Síria. Assad e sua família pegaram tudo, os outros não têm nada”.

Ele queria um “país simples”, onde fosse possível fazer negócios “normalmente”, ir sem medo ao supermercado com a família, construir sua casa sem baksheesh [propina], dizer o que bem entendesse na rua. Serviços locais voltaram a funcionar, como se nada tivesse acontecido, um tribunal local e a coleta de lixo.

Châabane espera que tudo ande rápido agora e que ele possa deixar a política. Ele acha tudo isso complicado demais. Quando lhe perguntam o que ele pensa sobre o Conselho Nacional Sírio (CNS), a principal força de oposição fora do país, Châabane não diz nada. A maior parte das pessoas tem a mesma reação que ele. Outras se enfurecem.

“Não precisamos de gente assim, que só trabalha para si mesma. Onde eles estão hoje? Eles não ajudam nem mesmo os refugiados sírios nos acampamentos na Turquia. Não precisamos deles. Faremos tudo sozinhos.” Na rua, meninos perguntam se alguém tem uma câmera. Eles gritam: “Kofi Annan, olhe pra gente: estamos morrendo na TV”.

Mais adiante na estrada, o comandante Tarik, das forças sírias livres, se instalou com seus homens em uma das muitas escolas. Nos armários, os boletins escolares das crianças foram amontoados em pilhas. Todos levam na capa a foto de Bashar Assad. Aos 15 anos, cada aluno deve assinar sua adesão ao partido Baath. O comandante Tarik era desempregado antes da revolução, depois foi contador em uma empresa de construção civil. É um homem bonito, com presença, e provavelmente ele encontrou na situação atribulada do país um lugar que lhe convinha melhor: ele dirige um dos sete grupos municipais do ELS, que também teve a adesão de um eletricista, um camponês e três de seus próprios irmãos.

O comandante Tarik mostra fotos dele mesmo com uniforme, mas o outro, do exército de Bashar al-Assad. Foi seu tempo de serviço militar. Antes da revolução, ele provavelmente teria sentido orgulho de servir o país. Teria sido uma honra. Mas só os alauítas conseguiam os postos, ele diz. Não quiseram saber dele.

O ELS é hoje acusado pelo governo de receber armas do Qatar. O comandante Tarik ergue uma sobrancelha. Ele bem que gostaria. E da França também. E da Inglaterra. E de qualquer lugar que fosse. Ele repete: “Guns, guns, we need guns” [“armas, armas, precisamos de armas”]. É a única frase em inglês que ele conhece.

Em Damasco, Bashar al-Assad anunciou que retomaria o controle de tudo com severidade. O mês do Ramadã acaba de começar e, para o primeiro dia de jejum, foguetes caíram sobre a região logo no começo da manhã. Os bombardeios continuaram durante todo o dia.

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