Mulher que perdeu a perna, o marido e um filho em ataque da Otan na província de Helmand é fotografada em campo de refugiados próximo a Cabul, capital do Afeganistão |
No momento em que o presidente Hamid Karzai implora às nações participantes de uma conferência na Alemanha que elas continuem a ajudar o Afeganistão por mais uma década, as consequências da retirada norte-americana já são sentidas pelos funcionários civis da área de auxílio humanitário, fazendo com que aumentem as preocupações quanto à possibilidade de que o Afeganistão seja abandonado e que os progressos penosamente obtidos no país sejam revertidos.
Os Estados Unidos, que fornecem dois terços de toda a assistência para desenvolvimento ao Afeganistão, reduziram o seu orçamento para auxílio externo de US$ 4 bilhões para US$ 2 bilhões, no ano fiscal de 2011, que terminou no dia 30 de setembro último. O orçamento para 2012, que está sendo agora discutido no Congresso, poderá apresentar cortes ainda mais pronunciados.
Uma das organizações mais duramente atingidas até o momento é a CARE, que está bastante envolvida com a construção de escolas e a melhoria da condição de vida das mulheres afegãs, e que perdeu 80% do seu orçamento para trabalhos no Afeganistão. Como resultado disso, ela teve que demitir 400 dos seus 900 funcionários no país, dos quais somente um terço se constituía em indivíduos de nacionalidade não afegã, segundo o diretor do grupo para o Afeganistão, Brian Cavanagh. Outras instituições de auxílio humanitário dos Estados Unidos que estão sofrendo cortes drásticos são o Mercy Corps e o International Rescue Committee.
Ao se considerar que os trabalhos de ajuda humanitária sempre foram enfatizados como sendo uma parte crítica da estratégia de contra-insurgência de longo prazo dos Estados Unidos, esses cortes geraram reações fortes aqui. E o momento em que eles ocorreram – quando está em andamento a retirada de tropas norte-americanas – só fez com que as preocupações se exacerbassem. Segundo um oficial graduado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), 10 mil soldados deverão se retirar até o final de dezembro, e 4.000 deles já deixaram o país.
“Existe o temor de que haja um corte total de verbas e que o Afeganistão seja abandonado à própria sorte, conforme ocorreu na década de noventa, quando as consequências foram péssimas”, diz Hashim Mayar, assessor especial da Agência de Coordenação da Afghan Relief, que representa vários dos grupos de ajuda humanitária que atuam no Afeganistão. “As nossas conquistas não podem ser perdidas”.
Até o momento, o corte de US$ 2 bilhões em auxílios nos últimos 12 meses não provocou a interrupção de programas, segundo uma autoridade norte-americana, porque atrasos do fornecimento e do uso das verbas alocadas nos anos anteriores fizeram com que o dinheiro continuasse disponível, e amorteceram o impacto da medida.
“Nós torcemos para que sejamos capazes de dar continuidade àquilo que chamamos de abordagem de aterrissagem suave, ou seja, um declínio gradual das verbas aplicadas”, diz a autoridade norte-americana, que não quis que o seu nome fosse divulgado, devido às regras internas da sua agência. “Vamos esperar para ver qual será o resultado do processo congressual”.
Segundo a autoridade, os programas que foram encerrados neste ano se baseavam em contratos que já estavam perto de expirar. No entanto, grupos de auxílio humanitário contestam essa versão e dizem que estavam esperando uma renovação desses programas.
A maior perda sofrida pelo CARE foi com o encerramento de um programa educacional que a organização implementava em áreas remotas do país, para meninos e meninas. Centenas de escolas foram fechadas, e 5,000 alunos, especialmente meninas, ficaram sem qualquer alternativa, diz Jennifer Rowel, diretora do departamento de direito do CARE no Afeganistão. Algumas das escolas foram transferidas para a alçada do Ministério da Educação afegão, que não teve capacidade de assimilar todas elas. As meninas foram as mais afetadas porque é mais improvável que elas contem com permissão para se deslocar por grandes distâncias para frequentar uma escola alternativa.
O Mercy Corps, uma outra grande organização norte-americana de auxílio humanitário, teve que encerrar o programa “Trabalho por Dinheiro”, no valor de US$ 32 milhões, que era implementado no norte do Afeganistão. E o orçamento do International Rescue Committee para o Afeganistão no ano que vem é de apenas US$ 9,5 milhões, contra US$ 18 milhões no ano passado, embora a agência ainda tenha esperanças de obter verbas para cobrir essa diferença.
Esses cortes de verbas são perturbadores em um país no qual o desemprego generalizado, especialmente em áreas remotas, é considerado um risco de segurança concreto.
“O auxílio humanitário está diminuindo de forma muita rápida e acentuada”, adverte o diretor regional do International Rescue Committee, Nigel Jenkins. “Nós estamos tentando nos deslocar para áreas nas quais o dinheiro ainda esteja disponível”. Segundo ele, isso significaria, por exemplo, dar início a projetos em áreas mais perigosas do país, como as províncias de Kandahar e de Helmand, no sul, e não em outras áreas mais pobres.
A redução de verbas para auxílio humanitário ocorre em um momento no qual o Afeganistão instituiu o segundo estágio do seu plano de transição, assumindo responsabilidade pela segurança em 24 províncias ou cidades, em áreas nas quais vive a metade da população do país. Em tese, isso significa que será possível que os Estados Unidos e os seus parceiros de coalizão comecem a acelerar o ritmo da retirada da suas forças militares, um processo que deverá ser concluído até 2014.
Ashraf Ghani, o chefe de transição do governo afegão, diz que o governo espera contar com um “dividendo de transição”, segundo o qual aqueles países que se beneficiarem com a redução dos seus gastos militares retornem parte do dinheiro economizado para o Afeganistão com o acréscimo de auxílio para reconstrução e desenvolvimento.
No entanto, neste momento de crise econômica na Europa e nos Estados Unidos, tal medida poderia ser politicamente impopular.
Muita gente da comunidade de auxílio humanitário, mesmo aqueles que foram muito atingidos pelos cortes, não acha que isso signifique perdas devastadoras, pelo menos no curto prazo. Em uma tentativa de utilizar o dinheiro destinado ao auxílio humanitário para ajudar a estratégia militar de contra-insurgência, em certas ocasiões o dinheiro entrou com mais rapidez do que poderia ser dispendido. Agora, pelo menos, muitos esperam que esse dinheiro seja utilizado de forma mais eficiente.
“Existe no seio da comunidade de auxílio humanitário a sensação generalizada de uma redução de verbas poderia ser de fato algo melhor, já que a quantidade de dinheiro despejado no Afeganistão é absolutamente ridícula e não sustentável”, afirma Jenkins. “No ano passado houve a transferência de grande quantidade de dinheiro para desenvolvimento, mas não há dúvida de que grande parte dessas verbas acabou não chegando às mãos daqueles que realmente tinham necessidade delas”.
Em uma referência às organizações não governamentais, a diretora do Mercy Corps no Afeganistão, Christine Mulligan, que está deixando o cargo, afirma: “É possível fazer mais com menos. Será que nós veremos várias ONGs lamentando os cortes de verbas? Talvez não. Esses dois bilhões eram quase que dinheiro novo, e tudo diz respeito ao ritmo dos gastos e a quanto essas ONGs são capazes de gastar e com que velocidade, e não àquilo que elas poderiam fazer pelas pessoas necessitadas”.
Autoridades norte-americanas e várias organizações não governamentais tradicionais têm se estranhado nos últimos anos devido à estratégia dos Estados Unidos de concentrar os auxílios financeiros para desenvolvimento em áreas de conflito, como parte da estratégia militar de contra-insurgência. Alguns criticam isso como sendo a “transformação de auxílio em armas”, e muitos grupos humanitários recusaram-se a participar de projetos em áreas de conflito, o que fez com que o governo norte-americano passasse a confiar quase que exclusivamente em empresas privadas com fins lucrativos.
“Enquanto nós nos focávamos nas necessidades da população, eles analisavam quanto dinheiro poderiam lucrar com tudo isso”, critica Jenkins.
Um relatório do Comitê de Relações Exteriores dos Estados Unidos publicado em junho deste ano observou que 81% do orçamento da Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional no ano fiscal de 2011 foi utilizado no sul e no leste do Afeganistão, onde a insurgência era mais forte e a presença militar dos Estados Unidos maior, embora a pobreza e a falta de desenvolvimento sejam mais críticos em outras áreas do Afeganistão.
“O que nós estamos dizendo é que o desenvolvimento e a segurança precisam de fato caminhar juntos”, diz a autoridade norte-americana. “Eu entendo que haja preocupações em relação a problemas como o uso de verbas para desenvolvimento como arma, mas nós acreditamos de fato que esses dois fatores não podem ser desvinculados um do outro”.
Porém, os grandes projetos dos últimos dois anos se concentraram na estabilização – um termo utilizado pelas forças armadas para designar projetos de efeitos rápidos com o objetivo de reduzir a força dos insurgentes e fornecer rapidamente serviços públicos.
Agora, segundo a autoridade norte-americana, os futuros projetos de auxílio humanitário irão além disso, concentrando-se em esforços sustentáveis para instituir e aperfeiçoar instituições afegãs.
Embora alguns membros da comunidade de auxílio humanitário possam apreciar essa mudança de foco, muitas autoridades afegãs estão profundamente preocupadas. “As pessoas aqui estão achando que eles continuarão cortando as verbas e depois nos abandonarão”, diz Sayed Habib Ahmadi, o diretor afegão do Comitê Conjunto de Monitoramento e Coordenação, que reúne autoridades afegãs e estrangeiras para a discussão das prioridades no setor de auxílio humanitário.
Mas autoridades afegãs já estão reclamando, afirmando, conforme diz Ahmadi, que “o principal problema é que os doadores internacionais não cumpriram aquilo que prometeram”. No entanto, os doadores ocidentais afirmam que o dinheiro prometido ainda está disponível, mas que o governo afegão carece da capacidade para empregá-lo eficientemente e sem corrupção. O resultado disso é que apenas uma parcela de 18% a 20% das verbas norte-americanas alocadas para auxílio humanitário foram de fato empregadas, dizem as autoridades norte-americanas, e o restante continua “depositado”.
Embora isso tenha um efeito de amortecimento do problema, é verdade também que a maior parte dos programas de auxílio humanitário no Afeganistão atualmente opera com dinheiro de alguns poucos países doadores e agências, e não com base em contribuições amplas de indivíduos e fundações. Muitos temem que, à medida que o número de tropas continue a diminuir, haja também uma redução dos compromissos relativos a auxílio humanitário não militar.
O total em auxílio humanitário fornecido ao Afeganistão em 2010 foi equivalente ao produto interno bruto do país, ou US$ 15,7 bilhões, uma quantia que, segundo disse recentemente o Banco Mundial em um relatório, “não tem como ser sustentada”. O Banco Mundial previu que até 2018 haverá uma redução de 90% das verbas de ajuda humanitária ao Afeganistão.
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