Em junho de 1989 o ex-Cônsul dos Estados Unidos em São Paulo, Frank D. Taylor, um nova-iorquino de 50 anos, atendia a morna rotina de seu gabinete de embaixador na plácida - e um tanto marginal - capital da República Dominicana, quando a imprensa norte-americana noticiou que o Brasil planejava construir um satélite de observação militar para o governo do Iraque.
A notícia, publicada originalmente no jornal Folha de S. Paulo, trazia detalhes da empreitada. O artefato, projeto conjunto da indústria aeronáutica Embraer com a fábrica paulista de mísseis Órbita - criada um ano antes - e as Forças Armadas Iraquianas, levaria uma câmera fotográfica de alta resolução, do tipo das que estavam sendo desenvolvidas por especialistas do Instituto de Pesquisas Espaciais brasileiro, sediado em São José dos Campos.
Taylor certamente se lembrava de São José. Nesse município da região do Vale do Paraíba - a meio caminho entre São Paulo e Rio de Janeiro --, estavam concentradas as principais instalações fabris erguidas para transformarem o Brasil em uma potência militar global.
Na virada da década de 1970 para os anos de 1980, época em que o diplomata americano servia na capital paulista, havia rumores de que elas exportavam (ou negociavam) tanques, aviões e pequenos foguetes made in Brazil para o Iraque, a Líbia, para países do Golfo Pérsico e da África - um tipo de fluxo comercial que fugia por completo ao controle de Washington, e que inquietava tanto a embaixada estadunidense em Brasília, quanto o staff consular que Taylor integrava.
Vinte anos depois, Frank Taylor, agora um diplomata aposentado, continua assombrado pelos fantasmas do passado.Recentemente ele assinou um artigo na revista Proceedings, do Instituto Naval dos Estados Unidos - uma das principais publicações do establishment militar norte-americano, onde o tom de polêmica começava pelo título: "Por que o Brasil precisa de submarinos nucleares?" (Proceedings U.S. Naval Institute; issue: June 2009 Vol. 135/6/1,276)
O articulista, que foi oficial da Marinha dos Estados Unidos, diz que o programa do submersível atômico é o argumento de Brasília para superar a resistência de seus "vizinhos regionais", Chile, Argentina e México, à escolha do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas - hipótese ainda sem data para ser estudada a sério no âmbito da ONU, e que países hoje membros desse seleto grupo, como os Estados Unidos, vêm se esquivando de considerar, faz, pelo menos, dez anos.
Taylor claramente desaprova a ideia: "Construir um submarino nuclear representa um substancial investimento de capital para um país que ainda enfrenta grandes desafios de desenvolvimento, e no qual cerca de um terço da população vive abaixo do nível da pobreza". Ele também assegura que, na segunda metade do século XX, "as grandes potências" se convenceram de que "os submarinos convencionais são mais baratos, mais econômicos de manter e operar, mais silenciosos e mais versáteis do que os submarinos nucleares."
E o diplomata ainda adverte: "Apesar de 'as implicações da energia nuclear para submarinos brasileiros' não serem claras neste momento, isso não significa que elas não sejam importantes no futuro. "Estas plataformas (navios) e, sobretudo, a sua capacidade de projetar o poder letal de torpedos e mísseis de cruzeiro em qualquer parte do mundo (...) poderiam constituir incentivo para um agressivo programa no sentido de (o Brasil) adquirir ativos complementares capazes de sustentar uma estratégia de projeção global de poder".
As preocupações do septuagenário Taylor reapareceram também na Europa. Há pouco mais de um mês, o ex-diretor do Departamento de Planejamento do Ministério da Defesa da Alemanha - e analista do Conselho Alemão de Relações Internacionais --, Hans Rühle, escreveu um artigo na revista Internationale Politik sobre o programa nuclear brasileiro. Procurado logo depois pela Deutsche Welle, Rühle não se esquivou: "É preciso lembrar que o Brasil teve três diferentes programas nucleares entre 1975 e 1990. Eles acabaram, mas não está claro o que aconteceu com eles. E constato que, desde 2003, há desenvolvimentos difíceis de interpretar. Por um lado, o Brasil é membro do Tratado de Não Proliferação. Por outro, os inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica se deparam com grandes obstáculos quando querem inspecionar o território. O país também se recusa a permitir controles de centrais nucleares não declaradas oficialmente. E também é preciso dizer que o Brasil tem um programa de submarino nuclear que também está vedado aos inspetores. Sabemos que o grau de enriquecimento de urânio desse tipo de programa permite a construção de armas atômicas".
O que Frank Taylor imagina, e o alemão Rühle desconfia, parece uma certeza para o físico brasileiro José Goldenberg, autoridade internacional na área de energia. Na última semana de junho passado ele declarou à imprensa paulista (Revista "Época", edição de 28 de junho de 2010) que o governo brasileiro quer ter a bomba atômica. Goldenberg observa: a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) só pode fiscalizar instalações oficiais, e o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) subscrito por Brasília não permite à AIEA investigar instalações suspeitas.
"Os Estados Unidos temiam o desenvolvimento de programas nucleares secretos no Iraque, no Irã e na Coreia do Norte", lembra o especialista. "Em 1997, criou-se o Protocolo Adicional do TNP. Ele autoriza inspecionar qualquer instalação passível de uso nuclear, como o reator secreto do Irã, revelado em 2009. Desde 2008, os EUA pressionam o Brasil a assinar o Protocolo Adicional. O governo se recusa. O Irã de hoje poderá ser o Brasil de amanhã", conclui Goldenberg.
Noticiário causou mal-estar
Entre 1989 e 1990, os jornais paulistas acompanharam o esforço exportador da indústria bélica brasileira no mundo árabe, bem como as tentativas dos militares de estreitarem a cooperação com o Iraque. Os "furos" da imprensa alertaram a vigilância dos Estados Unidos e causaram problemas para o então chefe do Departamento Comercial do Itamaraty, embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima
Entre 1989 e 1990, os jornais paulistas acompanharam o esforço exportador da indústria bélica brasileira no mundo árabe, bem como as tentativas dos militares de estreitarem a cooperação com o Iraque. Os "furos" da imprensa alertaram a vigilância dos Estados Unidos e causaram problemas para o então chefe do Departamento Comercial do Itamaraty, embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima
Todo esse jogo de pressões não é mais do que um remake da chamada "potência brasileira" - filme antigo e de produção grandiosa, concebido na segunda metade da década de 1980 pelas ambições de um punhado de graduados militares brasileiros.
O que Frank Taylor imagina, e o alemão Rühle desconfia, não é mais do que um remake da chamada "potência brasileira" - filme antigo e de produção grandiosa, concebido na segunda metade da década de 1980 pelas ambições de um punhado de graduados militares brasileiros.
Em 1989, a preparação da "potência" seguia a todo vapor, na esteira do indiscutível sucesso das exportações de armamentos fabricados em São Paulo para o Oriente Médio e outras áreas do Terceiro Mundo.
A 17 de abril de 1988, uma intensa barragem de artilharia produzida por foguetes terra-terra Astros 2, fabricados pela empresa Avibras, de São José dos Campos, revelou-se decisiva para expulsar da península iraquiana de Faw, cerca de 15.000 soldados iranianos que haviam se entrincheirado naquele pedaço árido de terra dois anos antes. Além do Exército do ditador Saddam Hussein, também a força terrestre da Arábia Saudita comprara os caminhões blindados que disparavam os foguetes Astros. No primeiro semestre de 1989, começaram a circular nos bastidores de Brasília rumores ainda mais sensacionais: cientistas nucleares iraquianos mantinham reuniões secretas, no Rio, com autoridades do programa nuclear brasileiro; e em salas discretas às margens da Rodovia Presidente Dutra - com vista para os agradáveis jardins internos do Instituto de Pesquisas Espaciais -, técnicos civis e militares do Iraque discutiam uma cooperação binacional destinada a prover os iraquianos de um satélite de observação militar.
Em maio daquele ano, o ex-diretor do (então) Centro Técnico Aeroespacial (CTA) da Força Aérea Brasileira, brigadeiro Hugo de Oliveira Piva, deixara escapar que sua empresa particular, a HOP, despachara 23 engenheiros aeronáuticos brasileiros para o Iraque, a fim de estabelecer cooperação na área de mísseis e foguetes. O Brasil tinha muitos projetos nesse campo: o Piranha, para ser disparado de um avião contra outro; o de um míssil antiaéreo derivado do modelo inglês Thunderbold, e o de um modelo antitanque cópia do projeto italino MAF - Missile d'atacco di Fanteria (Míssil de Ataque da Infantaria).
Para agosto de 1989 era aguardada a notícia que podia ser considerada como "a cereja sobre o bolo": a encomenda, pela Arábia Saudita, de 312 exemplares do Al Fahd, um modelo de tanque de guerra desenhado pela companhia paulista Engesa - a mesma que já fornecera veículos blindados de reconhecimento e de transporte de tropas ao Iraque, à Líbia, à Jordânia e a vários outros países árabes e africanos. O negócio com os sauditas, estimado em 2,2 bilhões de dólares significaria não apenas a redenção financeira da Engesa (conjunto de seis fábricas que operava no vermelho desde 1979), mas a ascensão da indústria bélica brasileira a uma posição entre as cinco nações que mais exportavam armamentos no planeta.
Havia, nesses dias, outros planos ainda mais secretos. O principal deles, uma rede de túneis que vinha sendo escavada em um polígono de tiro utilizado pelos aviões da Aeronáutica para testar os seus sistemas de armas (bombas, canhões e metralhadoras) no sul do estado do Pará. Essas tubulações serviriam a testes nucleares subterrâneos, semelhantes aos que a Coreia do Norte realiza atualmente. A ideia das provas atômicas no subsolo paraense havia sido engendrada ainda durante o governo Ernesto Geisel (1974-1979), por uma equipe de militares considerados a elite da "potência". Dela faziam parte, entre outros, o engenheiro Hugo Piva, e o oficial de artilharia do Exército Octávio Medeiros. Com a posse do general João Figueiredo como sucessor de Geisel na chefia do governo brasileiro, Piva foi chefiar o Centro Técnico Aeroespacial em São José dos Campos, e Medeiros foi nomeado para a direção do Serviço Nacional de Informações - posto no qual apoiaria com entusiasmo a aproximação entre cientistas nucleares do Iraque e do Brasil.
Essas atividades secretas ocorriam em meio a uma feroz guerra de bastidores.
Ainda em 1986, Israel, por exemplo, tentou desacreditar o sistema Astros 2, da Avibras, divulgando que os foguetes brasileiros enfrentavam um problema de repercussão harmônica - espécie de vibração descontrolada que os fazia explodir tão logo eles deixavam os seus tubos de lançamento. Tratava-se, na verdade, de uma ação preventiva ao lançamento, pela indústria militar israelense, do seu próprio veículo lançador de foguetes de artilharia, o LARS 160, que fez pouquíssimo sucesso internacional - na América do Sul foi comprado apenas pela Venezuela.
A empresa norte-americana General Dynamics, que tinha um projeto semelhante - chamado MLRS -, também tentou atrapalhar as vendas do Astros 2, mas usando de outra estratégia: denegrir a capacidade técnica e fabril do Brasil. Foram os próprios militares do Exército da Arábia Saudita que revelaram o assédio norte-americano ao produto brasileiro. Com uma interessante informação adicional: a de que durante um voo de testes cobrindo trajetória modesta, não superior a 30 quilômetros, um foguete disparado pelo MLRS errara seu target por 800 metros - quando o normal seria que ele se afastasse do alvo por não mais do que 5% ou 10% dessa distância.
O cerco da concorrência não foi tão danoso para a indústria bélica brasileira quanto o "fogo amigo" da área econômica encastelada em Brasília. Sucessivos cortes dos créditos que mantinham o funcionamento das fábricas de armamentos forçaram a concordata da Avibras em janeiro de 1990 e a falência da Engesa no primeiro semestre de 1993. A Embraer chegou perto desse destino na segunda metade da década de 1990, mas uma associação de investidores privados e públicos com a indústria aeronáutica francesa livrou-a da ameaça.
"A PAZ SÓ SE CONQUISTA COM PODER"
Ministro do Exército entre 1985 e 1990, período que representou o auge do projeto "Brasil Potência", o general Leônidas Pires Gonçalves, hoje com 88 anos, lamenta que o governo José Sarney, "tenha deixado a Engesa morrer". E sentencia: "Faltou sensibilidade". A seguir, uma reflexão do militar sobre a época áurea do Brasil como produtor e exportador de armamentos:
"Antes da Revolução (de março de 1964) o Brasil era apenas o 48º maior produtor de armamentos do mundo; ao final dela éramos o 8º. É constatação feita pela equipe do (ex-ministro da Fazenda, Mário Henrique) Simonsen, não por mim. Quando a Engesa se envolveu na disputa pela venda de tanques ao exército saudita, concorreu com modelos da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos. Sugeri que o próprio presidente Sarney fosse à Arábia Saudita, defender essa venda. Fui criticado por um jornalista de São Paulo. Depois contei a ele que o (presidente François) Mitterrand havia ido lá fazer a mesma coisa, e que a (primeira-ministra britânica Margaret) Tatcher também foi, com status de homem. Nosso tanque venceu nos dois aspectos: o do desempenho mecânico no deserto e no da precisão do tiro. Foi o único que acertou oito disparos no alvo. Mas aí Washington forçou a venda do M-1 Abrams, e perdemos a concorrência. O fim da guerra fria reduziu muito as compras de armamentos pelos governos, e exportar para o Oriente Médio virou uma saída importante para as indústrias que forneciam esses produtos. Mas a verdade é que tivemos problemas internamente. De uma feita fizemos (Exército e Engesa) uma postulação pequenininha (por recursos) ao Banco do Brasil, e foi uma dificuldade para ele nos dar uma ajuda. Teve até um diretor do banco que disse que era uma vergonha para o país fabricar armas. Mas a paz é uma utopia do espírito humano. A Paz só se conquista com o Poder".
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