Cinco meses após a “revolução do Nilo”, os egípcios, que sonhavam com uma melhora rápida de suas condições, se impacientam a ponto de voltar para a Praça Tahrir
Tanques espalhados pela capital do Egito, Cairo, em foto de 29 de janeiro de 2011 |
De fato, cinco meses após a “revolução do Nilo”, os egípcios estão impacientes. Eles sonhavam com uma democracia e uma rápida melhora em suas condições de vida. Mas a fase de transição promete durar, e a economia se encontra em estado crítico. Os mais pobres se mostram fatalistas ou preocupados. Para eles, Deus e a miséria são ainda e sempre sua realidade diária.
Ele tem 61 anos, mas aparenta 75. Mohamed El Sharkawi acaba de cumprir 16 anos de prisão. Ele nunca teve direito a um julgamento. Desde a chegada de Hosni Mubarak ao poder em 1981, esse engenheiro de comunicações se mostra crítico em relação ao regime, o que fez com que fosse jogado na prisão em intervalos regulares. Cansado, ele acabou emigrando para o Paquistão, onde recomeçou sua vida. Em 1995, Mohamed El Sharkawi foi enviado para trás das grades em Islamabad, sem explicações. Um ano mais tarde, foi extraditado para o Egito, onde iria passar dezesseis anos em detenção administrativa, dos quais dez em isolamento. “Eu rezava. Era tudo que me restava”, ele conta.
Por todo o corpo, ele guarda marcas das muitas sessões de tortura que sofreu. Ele quase não tem mais dentes, e seu peito está deformado. “Quebraram minhas costelas durante os interrogatórios. Meus torturadores queriam que eu confessasse que pertencia à Gamaat Islamiya ou à organização do Jihad, mas era mentira. Toda vez eles gritavam: ‘Fale! Diga alguma coisa!’”, ele lembra.
O que mais o revolta hoje é a impunidade de seus carrascos. “Dois oficiais que me torturaram no centro de interrogatórios Lazoghly do Cairo, Ahmed C. e Cherif A., hoje são agentes livres. Sei o endereço deles. Por que eles ainda não foram presos?”, questiona ele, sofridamente.
Sem o apoio ativo da Anistia Internacional e de um de seus filhos, Abderrahmane, 30, Mohamed El Sharkawi teria caído no esquecimento. Por quinze vezes, o jovem obteve da Justiça egípcia a ordem de libertar seu pai. Em vão. “Eles o transferiam para um local secreto e anunciavam para a imprensa que o haviam soltado. Algumas semanas mais tarde, alegavam que ele teria retomado suas ‘atividades criminosas’ e que tiveram de mandá-lo de volta para a prisão”, explica Abderrahamane.
Foi no dia 17 de março, um mês após a queda de Mubarak, que Mohamed El Sharkawi foi solto. A democracia? Ele não acredita mais nela. “Os Estados Unidos não querem isso no mundo árabe”, diz seu filho. Em setembro, nem ele nem seu pai pretendem votar.
Já Nour (pseudônimo) continua empolgada. Essa jovem de 28 anos garante que “jamais perderá a fé na revolução” nem se esquecerá de sua “dívida de reconhecimento” para com Khaled Said, jovem compatriota morto pela polícia de Alexandria, em junho de 2010, que se tornou um dos símbolos da revolução. No entanto, o caminho que leva até a democracia e a igualdade entre homens e mulheres será longo no Egito. Nour sabe disso, e às vezes sente medo.
Em 2005, essa professora de literatura árabe participava no Cairo de uma manifestação em defesa das liberdades. De súbito, apareceram os baltagia, sicários do partido governista, o Partido Nacional Democrático (PND). Nour descobriu então a arma favorita do PND contra as mulheres: a agressão sexual. “Do nada, senti mãos por toda parte. Um homem começou a tocar meus seios, outro a beliscar minhas coxas, enquanto o terceiro enfiava profundamente seus dedos entre minhas pernas...” Para a jovem, esse episódio foi um trauma. “Naquele dia, pensei comigo mesma: nunca poderei permanecer em um país que respeite tão pouco as mulheres. Mas uma amiga me respondeu: ‘É justamente isso que eles querem: que você desista! Então resista!’”, lembra ela.
Resistir, é isso que Nour faz no dia a dia. Mas o assédio que ela sofre cotidianamente nas ruas do Cairo, assim como todas as egípcias que não usam o véu, lhe “estraga a vida”... Há um ano, Nour enfrenta a mais pesada das proibições no Egito. Ela é apaixonada por um jovem copta, chamado Boutros. “Se meus irmãos ou meus vizinhos descobrirem, vão me matar”, diz ela tremendo. Ela, que é muçulmana, não pode se converter à religião cristã, pois o islã lhe proíbe disso. Já Boutros descarta se tornar muçulmano, “para não trazer vergonha para sua família”, diz ele com desprezo. “No fundo, Boutros odeia o islã. Em alguns momentos ele parece fanático. Ele me diz, por exemplo: ‘Não leia o Corão em voz alta na minha frente, você vai atrair o diabo!’”, ela diz suspirando, ciente de que esse amor não tem saída no Egito de hoje.
Nour sempre se sentiu atraída pelo cristianismo. Quando tinha 14 anos, um dia ela desenhou uma cruz em seu braço. “Percebi com espanto que o céu não estava caindo sobre minha cabeça!”, ela conta aos risos. Hoje, ela permanece “no meio do caminho” entre as duas religiões. No islamismo, ela gosta da constante preocupação pelo próximo e do “dever de fazer o bem”. Do Evangelho, uma frase a comove: “Aquele que nunca pecou que atire a primeira pedra”.
No Egito, o país mais povoado do mundo árabe (84 milhões de habitantes), as tensões entre religiões, latentes durante o governo de Mubarak, parecem ter reavivado desde a revolução. “A indulgência das forças de segurança deixou o terreno livre para os extremistas muçulmanos”, queixam-se os laicos, e mais ainda os coptas (10% da população). No dia 7 de maio, em Imbaba, bairro popular do Cairo, quinze pessoas morreram no incêndio de uma igreja.
Alto e magro, de barba grisalha e rosto ascético, todo vestido de preto, Abanob fala em tom exaltado, brandindo uma cruz e um frasco de água benta. Se “o diabo” continuar a se interpor entre coptas e muçulmanos, ele garante, o país acabará pegando fogo. Esse bispo copta de uma igreja de Imbaba dedica um verdadeiro ódio ao marechal Tantawi que, na liderança do Conselho Supremo das Forças Armadas (CSFA), dirige o país enquanto espera pelas eleições legislativas e presidenciais previstas para setembro. Segundo Abanob, Hussein Tantawi faz o jogo da Irmandade Muçulmana e dos salafistas, em detrimento dos coptas. “A revolução ainda não aconteceu no Egito!”, garante ele raivosamente.
Na Cidade dos Mortos, imensa necrópole onde dezenas de milhares de egípcios se instalaram por falta de moradia, é a resignação que prevalece. “Aqui a vida é nula! Não espero nada da revolução, me entrego para Deus!”, resmunga uma mulher de cerca de cinquenta anos, carregando com dificuldades um balde d’água. Wafaa fala com vontade. Seu marido está desempregado desde fevereiro. Ele trabalhava na construção civil, setor que hoje se encontra parado. Aos 42 anos, essa mãe de seis filhos nutre um sonho para o Egito: “Um presidente que se interesse pelos jovens, e dê a eles trabalho e moradia!”
Seu marido, Tahar, leva na testa a zebiba, a mancha característica dos muçulmanos pios que esfregam a cabeça no chão cinco vezes por dia ao fazerem as preces. Ele se sente bem na Cidade dos Mortos. Seu pai e seu avô moraram ali antes dele. Eles construíram a pequena casa onde hoje mora a família, entre as sepulturas de mármore. Já Wafaa quer a qualquer preço que seus filhos saiam daqui. “É uma vergonha morar em um cemitério”, ela diz. Toda sexta-feira ela vigia de perto seu filho mais novo, de 7 anos. “Senão, em troca de um pedaço de pão ele serve de guia para as famílias que vêm rezar por seus mortos!”, diz ela, indignada. Ela e Tahar votarão nas eleições de outono? “Sim, mas ainda não sabemos em quem”, eles respondem.
“Meus filhos estão entusiasmados desde a queda de Mubarak. Eu tenho que me esforçar para permanecer otimista”, confessa Ahmed Meguid, empresário que até então era próspero. Tudo o preocupa, a começar pelo índice de crescimento, que não deverá passar de 1% este ano. “Até então, nosso PIB girava em torno de 7%, e a economia egípcia era citada como exemplo enquanto o mundo inteiro estava em recessão”, ele se queixa. Entretanto, Ahmed Meguid sabe que a situação não podia durar. No governo de Mubarak, o Egito havia desenvolvido “uma forma de esquizofrenia”, ele diz, e as distâncias se aprofundavam entre os “ultrarricos” que exibiam “fortunas intoleráveis” e os “ultrapobres”, que viviam com menos de US$ 2 por dia.
“A revolução não acabou. Ainda temos três ou quatro anos de semicaos”, acredita Khaled Al Khamissi. Autor do best-seller “Taxi”, que conta de uma forma irresistível conversas de taxistas cairotas, esse escritor e documentarista é também um bom observador da sociedade egípcia. Ele ressalta que forças titânicas têm se entrechocado no Egito pós-Mubarak: o Conselho Supremo das Forças Armadas, os revolucionários egípcios, eles mesmos divididos entre laicos e islâmicos, mas também os Estados Unidos e Israel, sem esquecer a Arábia Saudita – que tenta impedir as revoltas que ocorrem no mundo árabe, por medo de também ser atingida. “Todas essas forças levam a uma implacável queda de braço. Mas tenho confiança”, ele garante. “Vamos ganhar no final das contas, mesmo que tenhamos de perder algumas pequenas batalhas”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário