O líder do grupo rebelde M23, o brigadeiro-general Sultani Makenga (sentado) |
"Vocês não tem nada a temer", disse o coronel João Maria Vianney Kazarama à multidão no estádio no dia seguinte. "Trabalhem conosco e nos ajudem, e tudo ficará bem."
A região oriental da República Democrática do Congo está há uma década e meia envolvida numa guerra, com rebeldes e soldados do governo cometendo assassinatos pelos morros e florestas das províncias de Kivu do Norte e Kivu do Sul. Os conflitos são em parte desencadeados pela inimizade entre os grupos étnicos hutus e tutsis, e em parte pela competição pela terra, os recursos naturais, minas e um monte de dinheiro.
Mas desta vez muitas coisas parecem diferentes. Os rebeldes do M23 estão tentando ganhar o apoio da população local. Eles estão se retratando como um potência de paz que finalmente trará calma e segurança à região. Para eles, a importante cidade oriental de Goma é a ponte a partir da qual pretendem capturar todo o país. Mas se o grupo não for bem sucedido, o Congo pode muito bem se separar.
Pobreza amarga apesar dos recursos
"A jornada para liberar o Congo começou", proclamou Kazarama no estádio. "Vocês estão preparados para nos seguir?" Ele planeja capturar as cidades de Bukavu e Kisangani e, por fim, a capital Kinshasa, onde pretende depor o presidente Joseph Kabila, que está no poder há 12 anos.
Os rebeldes terão que lutar ao longo de 1.600 quilômetros de floresta para chegar à capital, o que pode levar semanas ou até meses. Mas as suas perspectivas – pelo menos até esta terça-feira, quando havia relatos conflitantes de que eles se retirariam da Goma em resposta às demandas da União Africana – recentemente pareceram melhores do que nunca. A perda de Goma foi um grave revés militar para Kabila, cujo poder está diminuindo também no resto do país.
Em muitos lugares, as pessoas estão se manifestando nas ruas contra o governo. Eles dizem que Kabila é responsável pelos fracassos do Congo. O país, quase tão grande quanto a Europa Ocidental, é rico em recursos naturais, e ainda assim continua terrivelmente pobre. Estradas e ferrovias foram destruídas, escolas e universidades estão em condições miseráveis, e o exército é uma bagunça em ruínas, responsável por tantos crimes quanto seus oponentes.
"Juntem-se a nós", disse Kazarama na quarta-feira (28), num apelo aos soldados do exército regular. "O governo não os paga há muito tempo." Havia um lugar próximo à plataforma onde os soldados do governo e policiais que decidissem desertar podiam depositar suas armas. Enquanto Kazarama falava, a pilha de armas crescia em proporções impressionantes: Kalashnikovs, pistolas, lança-granadas, todo o arsenal de armas baratas com as quais as guerras sujas da África costumam ser travadas.
O pessoal de Kazarama tem prometido que todos os desertores serão alimentados e rearmado em campos de treinamento. Até o final da semana passada, cerca de três mil desertores teriam se juntado aos rebeldes. Se isso continuar, o presidente pode muito bem perder seu cargo e sua vida.
Um presidente fraco e desprezado
Os soldados que permanecem leais ao presidente apesar de sua derrota se retiraram. Eles são transportados ao longo de estradas de terra esburacadas na região de Kivu em velhos caminhões chineses. Eles se agacham nos caminhões, com seus uniformes rasgados, suas bazucas enferrujadas e seus olhos vermelhos e inchados de beber cerveja Primus.
Tiros podem ser ouvidos aqui e ali, enquanto eles passam por Beni, uma cidade ao norte de Goma. Moradores locais não saem das casas de barro, sabendo muito bem o quão perigoso pode ser um grupo de soldados saqueadores derrotado, frustrado e embriagado.
Algumas almas corajosas anunciaram duas manifestações em Beni na manhã desta quinta-feira (29). Um grupo queria ir às ruas contra a ofensiva do M23, enquanto outro pretendia protestar contra o governo incompetente em Kinshasa. Como precaução, o prefeito, que ainda está aliado com o governo, proibiu ambos os protestos. Em vez disso, enviou sua força policial, vestida com uniformes cinza e fortemente armados, para patrulhar as ruas empoeiradas.
Nicaise Kibel Bel Oka olha para fora para os soldados em retirada através das grades das janelas de seu escritório. O editor-chefe do jornal “Les Coulisses” está vivendo uma vida particularmente perigosa no momento. Ele e sua equipe de 11 jornalistas criticaram duramente e com frequência tanto o governo quanto os rebeldes em seu jornal, o que lhe rendeu o prêmio Free Press Award Africa da rede CNN em 2009.
Kibel Bel Oka é também um herói para os cidadãos de Beni. "Kabila é fraco e desprezado entre a população", diz. "Ele é corrupto e incompetente. Como é que ele deveria governar este país se até mesmo o seu exército está virando as costas para ele?" O maior pecado de Kabila, diz Kibel Bel Oka, é que ele não fez nada para conter a influência de Ruanda no Congo.
Ganância mortal
A tragédia do Congo começou em Ruanda, sua vizinha a leste, um país com um exército forte e um governo autoritário. Em 1994, as milícias hutus começaram a atacar os membros do grupo étnico tutsi, matando cerca de 800 mil pessoas em apenas cem dias. Este genocídio é a catástrofe original da África Central.
Um exército tutsi sob o governo do atual presidente de Ruanda Paul Kagame expulsou os assassinos hutus para o oeste e para as selvas do Congo. Com o apoio de Uganda, o exército ruandês perseguiu as milícias no Congo. A justificativa oficial para a incursão em território congolês foi proteger os tutsis que viviam no Congo.
Mas uma vez que eles estavam no Congo, as tropas ruandesas uniram forças com os rebeldes congoleses e avançaram para Kinshasa, onde derrubaram o ditador Mobutu Sese Seko em 1997. Laurent Désiré Kabila, pai do atual presidente, foi nomeado presidente em seu lugar.
Mas isso não levou à paz, uma vez que a luta continuou entre as milícias e as tropas do governo no leste do Congo. Era o início de uma guerra civil cansativa e sem vencedores, alimentada pelo ódio étnico e, acima de tudo, pela ganância mortal. O leste do Congo é rico em minerais como o coltan, utilizado em telefones celulares.
Na verdade, a maioria das reservas mundiais de coltan está no leste do Congo. Milícias obrigaram os moradores locais a trabalhar nas minas, onde retiram o coltan da terra com pás e picaretas. O minério é então enviado para a China e Coréia do Sul através de Uganda e Ruanda.
É difícil reconhecer qualquer objetivo político entre as partes em conflito, que na verdade gira em torno do controle das minas – uma passagem para a riqueza. A guerra se tornou parte da vida cotidiana, e a população local paga o preço. Cinco anos atrás, organizações de ajuda estimaram o número de mortos em cerca de mil por dia.
Congo corre o risco de ser destruído
Mesmo depois de retirar oficialmente suas tropas, Ruanda continuou envolvida, apoiando vários grupos rebeldes com armas, dinheiro e logística. Em 2006, Ruanda cooperou com o grupo rebelde liderado pelo general Laurent Nkunda, cujas tropas realizaram uma terrível carnificina – uma acusação que Ruanda nega até hoje. A pressão internacional eventualmente obrigou Ruanda a retirar o seu apoio a Nkunda. Ele foi preso e, depois de um tratado de paz em 2009, suas tropas foram absorvidas pelo exército congolês.
Na primavera passada, no entanto, várias centenas de ex-soldados de Nkunda, inclusive aqueles que tinham sido acusados de crimes de guerra, desertaram. Eles estabeleceram o grupo M23 na selva, batizando-o com a data do tratado de paz, 23 de março de 2009. O grupo principal é composto por não mais do que 1.500 homens, embora ninguém saiba o número exato. Em todo caso, é muito fraco para capturar Kinshasa, e é por isso que Kazarama está cortejando desertores no exército regular.
O M23 mantém um acampamento na fronteira com Ruanda, e muitos de seus membros foram provavelmente treinados no país vizinho. Ruanda secretamente apoia os rebeldes, fornecendo-lhes armas, uniformes, rádios e equipamentos de orientação.
Mas a evidência da beligerância de Ruanda é tão clara que os Estados Unidos, Inglaterra, Holanda e Alemanha reduziram drasticamente a ajuda ao desenvolvimento para Ruanda no verão passado. Foi a primeira vez, porque depois do genocídio de 1994 os ruandeses puderam contar com os sentimentos de culpa do Ocidente e receberam uma ajuda generosa para a reconstrução.
O editor-chefe Kibel Bel Oka ainda duvida que a marcha dos rebeldes do M23 até Kinshasa terá sucesso, dizendo que é muito, muito perigosa e uma proposta logisticamente difícil. A verdadeira ameaça na visão de Kibel Bel Oka é a de que o país vai quebrar. Enquanto o governo central enfraquecido ficaria com a parte ocidental do país, o M23 poderia assumir o controle do leste rico em minerais. "Ruanda teria alcançado seu objetivo. Mas nós não queremos isso", diz ele.
Há apenas um problema: os rebeldes e os regimes nunca se preocuparam com o que os congoleses querem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário