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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Bósnia adia reconstrução pós-guerra e parece fadada a repetir o passado

Tucídides uma vez escreveu que a guerra é uma professora violenta – querendo dizer, suponho, que se deve aprender com brutalidades do passado. No entanto, os Bálcãs, um lugar que sofreu demais o horror, parecem fadados a repetir o passado. A guerra que estripou a Bósnia terminou há mais de 15 anos, entretanto o processo de reconciliação está longe de ser completo. A reconstrução do pós-guerra é sempre um desafio, mas a Bósnia vem a adiando em níveis inacreditáveis. Por quê?

Quando os líderes da Bósnia se sentaram em uma monótona base aérea de Ohio em dezembro de 1995 e assinaram os Acordos de Dayton, encerraram três anos de brigas que devastaram a pequena e confinada república e mataram cerca de 100 mil bósnios. Eu cobri aquela guerra, e voltei para o país várias vezes – especialmente à capital, Sarajevo, que sofreu um sítio de 1.425 dias. Hoje a fumaça, o cheiro de queimado e as multidões de pessoas maltrapilhas aglomeradas em esquinas esperando para fugir do ataque de atiradores são só lembranças.

No entanto, há uma sensação de que tudo pode estourar novamente. Quando eu pergunto a meus amigos bósnios sobre a possibilidade de uma volta da violência, alguns se horripilam, mas outros concordam e me dizem que os motoristas de táxi de Sarajevo – 90% dos quais são ex-combatentes – falam a respeito constantemente. A Bósnia realizará eleições parlamentares e presidenciais em 3 de outubro, e a campanha está produzindo hostilidades. Apesar de um esforço internacional de reconstrução que custou cerca de 4 bilhões de libras, a Bósnia está uma bagunça. Sua economia está capengando; a corrupção e as divisões étnicas são abundantes.

Talvez isso não seja de se espantar, visto o que aconteceu ao povo. Um amigo, que era um comandante de linha de frente durante a guerra, uma vez descreveu a transição que ele teve de fazer. “Que diabos sabia eu sobre a guerra? Sou um advogado”, disse. Mas ele tinha “uma ótima coordenação de mãos e olhos”, que ajudava quando ele teve de começar a usar armas. Pessoas como ele, sem nenhuma inclinação para combates, de repente se viram defendendo suas ruas, sua vizinhança, sua cidade. Quando a guerra acabou, essas mesmas pessoas foram jogadas para um período de paz. E a vida na paz nunca é tão simples quanto parece quando você está sentado em uma trincheira desesperado para que a guerra termine.

A guerra na Bósnia foi parte do colapso da Iugoslávia entre 1991 e 1995. O Acordo de Dayton encerrou a guerra, mas cristalizou as divisões étnicas que criou. O novo Estado ao qual ele deu origem, a Bósnia-Herzegóvina, foi dividido em duas partes: a Republika Srpska para sérvios, e a Federação Bósnia para muçulmanos e croatas. Cada uma tem uma miríade de camadas de governo; a Federação Bósnia é subdividida em 10 cantões, ou condados. Sarajevo ainda é a capital, mas as duas entidades menores têm mais poder que o Estado, bem como seus próprios presidentes, parlamentos, governos e representantes. As entidades controlam a justiça, o comércio, a educação, a saúde e a manutenção da ordem, e o Estado cuida da alfândega, do financiamento de instituições, do exército e do controle de tráfego aéreo. Tudo isso em um país com cerca de dois terços da área da Escócia, e, com uma população de 4,6 milhões, um pouco menos de gente. Não é de se surpreender que o acordo tenha gerado tensão e brigas internas. “Dayton parou a guerra”, diz um diplomata. “Mas não adianta nada se você para a guerra e tem brigas políticas acontecendo continuamente”.

Até agora, a Bósnia tem sido vigiada pela comunidade internacional sob forma do Escritório do Alto Representante (OHR, na sigla em inglês), criado para representar e proteger o Estado. O OHR, que foi dirigido por Paddy Ashdown – um ex-líder dos Democratas Liberais do Reino Unido – entre 2002 e 2006, deve trabalhar com comunidades para “garantir que a Bósnia se torne uma democracia pacífica”. Mas os bósnios o veem com desconfiança e supostamente há planos para descartá-lo em favor de um enviado europeu mais poderoso que poderia forçar a aprovação de uma nova ordem constitucional.

Haveria bons motivos para uma jogada como essa. No mínimo porque as divisões étnicas na Bósnia têm piorado desde que a guerra acabou. O problema é que o sistema agora reforça, em vez de minimizar, as diferenças étnicas. Um novo termo foi cunhado após a guerra para descrever os bósnios muçulmanos: bosniaks. E agora há muitas escolas na Federação Bósnia que segregam seus alunos. A suposição parece ter sido que um certo grau de separação étnica seria inevitável após a guerra, mas que com o tempo a confiança voltaria e a mistura na interação surgiria espontaneamente. Mas isso não aconteceu.

A situação econômica não ajudou. O desemprego está em 40% e a renda média na Bósnia é inferior a 5 mil libras por ano, então os jovens não viajam pelo país e veem como os outros vivem.

Sarajevo, que já foi uma inspiração para a mistura étnica, agora é predominantemente muçulmana. As muitas mesquitas, construídas depois da guerra, ficam lotadas. A cidade é inundada por refugiados muçulmanos do leste da Bósnia, muitos deles analfabetos, que foram expulsos de seus vilarejos por nacionalistas bósnios sérvios. A Federação Bósnia se tornou um pequeno Estado muçulmano na Europa.

Se você perguntar às pessoas que vivem na Federação Bósnia a respeito de Dayton, a maioria reclamará. Eles sentem que os políticos os abandonaram, que as linhas de frente congelaram após a guerra, e que os valentões foram recompensados. Mas na Republika Srpska as pessoas provavelmente defenderão Dayton. “É a Bíblia deles”, disse Tanja Topic, uma analista política de Banja Luka, capital da Republika Srpska. “Porque ele criou seu país. Ele os define”.

O cerne do problema político é o desequilíbrio de poder entre as duas entidades e o Estado. Ele resultou em uma briga pueril entre Haris Silajdzic, o presidente muçulmano da Bósnia, e Milorad Dodik, primeiro-ministro sérvio da Republika Srpska. Dodik sugerirá – ou até dirá, como fez em 2006 – que a Republika Srpska deixará a federação. Silajdzic responderá que eles estão unidos por Dayton. Quando perguntei a Silajdzic se Dodik estava falando sério a respeito de deixar a federação, ele disse: “Talvez ele queira”. Então ele fez uma pausa e sorriu. “E talvez eu queira comprar o Havaí”.

Dayton poderia ter feito mais para ajudar a dissolver as divisões étnicas, mas os bósnios também têm uma responsabilidade à qual muitos não estão correspondendo. “Ninguém aqui tem culpa coletiva”, disse uma instruída jovem bósnia sérvia em um café de Banja Luka. Ela mesma insistiu que a Sérvia não deveria pagar pelo que um bando de milicianos deturpados fez. “Não fui para Srebrenica e matei ninguém”, disse, tomando um café espresso e ajeitando seus Ray-Bans. “Não cavei as covas. Por que todo o povo sérvio deveria levar a culpa?”

Outros, em especial os bosniaks, acreditam que o país nunca avançará na direção de um período de verdade-e-reconciliação à maneira sul-africana até que haja algum tipo de reconhecimento coletivo do massacre de Srebrenica, no qual quase 8 mil muçulmanos foram mortos por bósnios sérvios em julho de 1995. (Em março o parlamento sérvio aprovou em votação acirrada uma resolução “condenando” crimes de guerra em Srebrenica, de fato pedindo desculpas mas não chegando a chamá-lo de genocídio.)

Há também a complicada questão da identidade. Quem é o povo bósnio? São ex-iugoslavos? Muçulmanos, croatas, sérvios, eslavos, judeus, eslovacos, ciganos? Não ajuda o fato de que, pelo Acordo de Dayton, os políticos tenham de pertencer a um dos três “povos constituintes” – bosniaks, croatas ou sérvios – para se candidatar às eleições parlamentares ou presidenciais. Como diz Srecko Latal, um ex-jornalista que agora é analista dos Bálcãs para o International Crisis Group, uma ONG de resolução de conflitos: “Este é um casamento onde três parceiros estupram uns aos outros”.

Por que deveríamos nos importar? No mínimo, porque não é do interesse da Europa que a Bósnia-Herzegóvina se torne um Estado falido. “Você não consegue encontrar um único ataque terrorista na Europa sem o envolvimento de cidadãos da federação”, afirmou Dodik depois que uma bomba explodiu na Bósnia em junho. Foi um exagero bizarro, mas que alude a um problema real. O Ocidente, que vem observando os resultados da guerra do Iraque, e procurando uma saída do Afeganistão, deveria atentar para a reconstrução da Bósnia.

Então o que se pode aprender com isso? Certamente a guerra poderia ter se encerrado antes – a guerra de 1999 em Kosovo, combatida pela Otan, durou só três meses. E a esperança de que as divisões étnicas da Bósnia se dissipariam após a guerra se mostrou utópica. Dayton deveria ter feito mais em matéria de medidas para garantir a representação de todos os grupos relevantes, assim como para criar espaço social e político de forma a construir confiança entre os grupos.

O que pode ser feito agora? Livrar-se da OHR e deixar que a Bósnia se mantenha sozinha – como já foi discutido discretamente na União Europeia – seria um bom primeiro passo.

A verdadeira questão, no entanto, é mais filosófica. “Só queremos saber quem somos”, disse Latal. “Estamos lutando pela alma do povo bósnio”. E os bósnios pararam de esperar ajuda do exterior, disse. Durante a guerra, os habitantes de Sarajevo penduraram bandeiras americanas feitas em casa em suas janelas bombardeadas, acreditando que os Estados Unidos enviariam ataques aéreos para levantar o sítio. Mas tiveram de esperar mais de mil dias até que alguém viesse. Desta vez, disse Latal, se tudo der errado, “sabemos que só podemos contar com nós mesmos”.

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