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quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Codinome "Kid": espião americano da Stasi conta sua história

Distrito Marienfelde, Berlim, outono de 1983: O dia em que Jeff Carney ajudou a salvar o mundo tinha apenas quatro horas. Carney, especialista em vigilância das Forças Aéreas dos EUA de 20 anos de idade, estava sentado diante do equipamento que usava para espionar o Oriente. Era o turno da noite, e não havia nada de especial a assinalar.

Então seu supervisor lhe contou sobre uma operação secreta que ocorreria algumas horas depois. Era uma espécie de jogo de guerra e envolvia caças norte-americanos, que entrariam dentro da faixa de risco do espaço aéreo soviético, provocando sinais de alarme na tela dos radares russos e um estado geral de confusão. A ideia era deixar o outro lado tão nervoso com a manobra que iniciasse os procedimentos de emergência e assim os revelasse aos EUA.

Mas e se os russos pensassem que era um ataque real e lançassem um contra-ataque? Carney, que trabalhava como agente do Ministério de Segurança do Estado da Alemanha Oriental, uma agência conhecida como Stasi, há alguns meses, tinha poucas horas para agir. Primeiro, teve que terminar seu turno. Em seguida, correu para encontrar-se com seu contato na Stasi, um professor em Berlim Ocidental. Sua mensagem chegou a tempo, e os soviéticos foram alertados que era uma manobra falsa, não um ataque real.

Mais tarde, depois de desertar para a Alemanha Oriental, Carney recebeu a medalha de ouro da "Fraternidade das Armas" do diretor da Stasi, Erich Mielke. Entretanto, após a queda do Muro de Berlim, a justiça norte-americana condenou Carney a 20 anos no forte Leavenworth, uma prisão militar no Kansas. Carney, de codinome "Kid", foi um dos principais agentes que a Stasi usou para infiltrar-se nas forças armadas norte-americanas em Berlim Ocidental. Os norte-americanos estimaram o prejuízo causado por "Kid" em US$ 14,5 bilhões (cerca de R$ 29 bilhões), pelos segredos que repassou em um período de mais de dois anos.

Um mundo de mentiras e traições
Carney, liberado depois de cumprir 11 anos de sentença, escreveu suas memórias sobre a vida nos dois lados da Guerra Fria. No livro de 700 páginas ele revela os pontos de vista de um ex-espião e oferece uma janela para um mundo que desapareceu há 25 anos. Era um mundo de mentiras e traições, disfarces e enganos, de entregas na floresta e de uma lata de chá gelado Lipton com uma câmera em miniatura aparafusada na base. Carney usou a câmera como agente da Stasi para tirar fotos de arquivos e mais arquivos de espionagem dos EUA.

As muitas passagens censuradas sugerem que o livro em si é verdadeiro. As Forças Aéreas dos EUA e a NSA passaram cerca de um ano examinando o livro e julgaram que muitas passagens deveriam permanecer em segredo até hoje, e portanto foram censuradas. Ainda assim, o que os censores deixaram intocado oferece uma visão emocionante do dia-a-dia na frente de combate invisível de espionagem Leste-Oeste.

Carney ingressou na aeronáutica no verão de 1980. Ele tinha apenas 17 anos, e o serviço militar oferecia uma fuga de uma família pobre que nem sempre tinha o suficiente para comer. Os três anos que aprendeu alemão na escola lhe renderam o ingresso no Grupo de Segurança Eletrônica 6912, no distrito de Marienfelde, em Berlim, onde problemas com seus comandantes, seu estado mental frágil e o medo de que sua homossexualidade fosse descoberta levaram-no a mudar de lado, no dia 22 de abril de 1983. Depois de ir a um bar, ele atravessou a fronteira entre Berlim Oriental e Ocidental, no posto de policiamento Charlie, e dirigiu-se aos perplexos guardas da fronteira da Alemanha Oriental, sem que as agências de inteligência ocidentais percebessem o que tinha acontecido. Agentes da Stasi foram imediatamente chamados para a cena, e Carney disse-lhes que queria morar na Alemanha Oriental. Mas eles tinham uma função melhor para ele. Eles o mandaram de volta para Berlim Ocidental como informante dentro da sua unidade.

Um ano depois, a aeronáutica transferiu Carney para os Estados Unidos com uma promoção, para se tornar treinador de outros especialistas em vigilância. Ele continuou suas atividades de espionagem até que, finalmente, ficou com medo e fugiu para Berlim Oriental, por meio da embaixada da Alemanha Oriental no México. Em Berlim Oriental, a Stasi deu a Jeffrey Carney a identidade de Jens Karney, um funcionário dos correios. Como não apenas sabia inglês, como também o jargão militar dos EUA, ele passou a fazer a escuta das comunicações da embaixada dos EUA em Berlim Oriental e da missão militar dos EUA em Potsdam, até a queda do Muro de Berlim. Em abril de 1991, quando Carney estava trabalhando como motorista de metrô para a Autoridade de Transportes de Berlim, ele foi preso por uma unidade do Gabinete de Investigações Especiais das Forças Aéreas (OSI) e levado de volta para os Estados Unidos.

"Eu realmente não deveria te contar isso…"
Suas primeiras entregas para a Stasi, feitas enquanto ainda estava em Berlim, em 1983, incluíram os grossos manuais de treinamento para os especialistas de vigilância dos EUA. Carney os escondeu nas botas de borracha de seu traje de proteção e contrabandeou-os para fora do posto de escuta americano em Marienfelde. Enquanto trabalhava lá, descobriu que os documentos militares secretos dos EUA muitas vezes ficavam largados ali e que os segredos às vezes viravam fofocas, antecedidas pela frase: "Eu realmente não devia te contar isso, mas..."

Geralmente, ele ganhava apenas 300 marcos alemães por suas informações para a Stasi. Ele escreve que o dinheiro não era tão importante para ele, mas que queria fazer algo contra a política agressiva dos Estados Unidos. Mas ele percebeu a importância das informações para Alemanha Oriental quando disse ao seu contato que queria experimentar algumas drogas de fortalecimento muscular para o seu hobby -longos passeios de bicicleta por Berlim. Em pouco tempo, a Stasi tinha lhe proporcionado o melhor que a máquina de doping da Alemanha Oriental tinha a oferecer: turinabol oral, um esteroide anabolizante na forma de comprimidos azuis, com o qual a Alemanha Oriental reforçava até os seus nadadores e atletas, que se tornaram medalhistas olímpicos.

Mais tarde, em uma biblioteca da aeronáutica no Texas, Carney fotografou o conteúdo de um grande número de pastas de arquivos contendo documentos secretos. Ele afirma que um dos documentos que ele descobriu revelava que os americanos estavam falsificando os números quando comparavam o poderio militar do Oriente e do Ocidente. Para exagerar a ameaça do Oriente, eles incluíam em suas estimativas um grande número de tanques desativados que haviam sido colocados em exposição em várias cidades após a guerra, como monumentos à glória do Exército Vermelho.

De acordo com Carney, outra lista que encontrou continha sete nomes: membros de esquadrões da morte que tinham sido treinados nos Estados Unidos para executarem assassinatos por encomenda em seus respectivos países. Mas a Força Aérea cortou maiores detalhes das memórias de Carney.

Telegramas da embaixada
Após desertar para a Alemanha Oriental, Carney percebeu rapidamente que não tinha amigos por lá, apenas agentes de inteligência que queriam usá-lo. Ou livrarem-se dele. No início, a Alemanha Oriental queria mandá-lo para a Suécia. Mas temendo que ele revelasse segredos, o Departamento Principal de Reconhecimento encontrou trabalho para ele em casa, em uma unidade de reconhecimento de rádio que interceptava as transmissões da Embaixada dos EUA e da missão militar dos EUA na Alemanha Oriental.

As gravações eram feitas usando gravadores Uher SG-561 da Alemanha Ocidental, que a Alemanha Oriental só conseguiu comprar depois de receber um empréstimo considerável em um acordo intermediado pelo então governador da Baviera, Franz Josef Strauss. As fitas cassete para os dispositivos Uher eram obtidas diretamente na fronteira, onde eram confiscadas de turistas ocidentais.

Em suas memórias, Carney conta como estudava as conversas gravadas para descobrir as preferências das secretárias da Embaixada dos EUA, de modo que os agentes da Stasi pudessem cortejar as mulheres com um perfil mais preciso. Em uma ocasião, ele ouviu a conversa de uma funcionária da embaixada que dizia que estava precisando de uma empregada doméstica. Logo depois, uma faxineira colou um anúncio em pontos de ônibus ao longo da rota da mulher para o trabalho. Quando foi contratada, a faxineira abriu as portas da diplomata aos agentes da Stasi.

Nostalgia do antigo regime
Os norte-americanos, é claro, sabiam que estavam sendo monitorados, o que por vezes levava a conversas bizarras. Após a explosão da boate La Belle, em Berlim Ocidental em 1986, que era frequentada por soldados norte-americanos, um carro de aparência suspeita passou pela Embaixada dos EUA em Berlim Oriental. Um diplomata disse preocupado ao telefone: "Se vocês alemães orientais estiverem ouvindo, eu tenho a placa de um carro para vocês".

Suspeitava-se que a Líbia estava por trás do ataque, e o carro estava registrado em nome da missão da Líbia em Berlim Oriental. Os norte-americanos queriam que a Stasi impedisse os líbios de cometerem novos atentados.

Hoje, 10 anos após a sua libertação da prisão militar, Carney mora em Ohio com seu filho adotivo. Sendo ex-presidiário e traidor, ele não consegue encontrar um emprego permanente. Sua tentativa de estabelecer-se novamente em Berlim -do outono de 2010 até o outono de 2011- também foi um fracasso. Alguns conhecidos seus do passado, incluindo alguns que não eram da Stasi, tentaram ajudá-lo e encontraram um trabalho em uma editora especializada em livros nostálgicos do antigo regime, com autores como Margot Honecker e Egon Krenz. Inicialmente, o livro de Carney também seria publicado pela editora, mas no final, ela desistiu.

Seu livro tampouco coincidia com a visão de mundo dos ex-funcionários da Stasi, pois apresenta tanto os americanos quanto os membros da Stasi sob uma luz desfavorável. "Você não é justo conosco", reclamou um ex-coronel da Stasi.

O salário mensal de Carney começou a declinar, até que já não estava ganhando dinheiro suficiente para ter autorização de residência. Com o seu regresso aos Estados Unidos, a editora perdeu os direitos do livro, e Carney perdeu seu último resquício de fé em seus antigos companheiros. "Alguns ficaram visivelmente felizes de se livrar de mim. Não quero mais saber dessas pessoas". Mas isso só torna as coisas mais difíceis para Carney no futuro. Ele quase não tem mais amigos, nem mesmo seus antigos companheiros falsos.

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