Cidade do Cairo |
Parte da magia desta grande cidade, mesmo quando abalada por turbulências políticas, reside na sua aparente capacidade de absorver qualquer revolta, desafiar as probabilidades, superar tudo -dos engarrafamentos à burocracia- e sobreviver. Como o Nilo, a sua referência, o Cairo tem o fascínio do eterno.
A grandeza de nenhum edifício resiste à marcha de poeira, e, no entanto, a cidade retém algo da sua inefável majestade. As lutas dos seus muitos milhões de habitantes estão sempre aparentes, mas sua dignidade em meio às dificuldades é menos visível. A cidade derrota verdades simples.
Isso é bom. Gostamos das nossas verdades simples hoje em dia. Preto ou branco é o que queremos. "Só que", responde o Cairo, "eu sou cinza!".
A turbulência política do Egito pós-revolucionário é óbvia. Menos óbvia é a forma como a sabedoria e o bom humor daqui temperam e moldam os fatos. Uma coisa é viver num país como a Síria, com fronteiras desenhadas no começo do século 20 por algum burocrata britânico dispéptico, onde a tentação da dissolução nunca está muito abaixo da superfície. Outra coisa é ser parte de uma terra e uma cultura tão antigas quanto as do Egito.
Comecei a pensar nisso durante a rebelião de dois anos atrás na praça Tahrir, que levou à queda de Hosni Mubarak. Toda noite, dezenas de milhares de pessoas, incluindo mulheres e crianças, saíam da praça através do estreito espaço entre dois tanques. O potencial para um desastre era alto. Um momento de pânico ou de afobação poderia levar a um tumulto e a um banho de sangue. Mas a civilidade, o respeito e a paciência prevaleceram.
Tais verdades nos dizem mais sobre as perspectivas de longo prazo de um país do que fatos mais imediatos e chamativos. A humanidade da Itália, o otimismo do Brasil e a abertura dos EUA são qualidades que as estatísticas não conseguem mensurar. Da mesma forma, não há contagem ou pesquisa que identifique essa qualidade que encontrei na praça Tahrir. Não é à toa que o Egito, ciente do preço e da inutilidade da guerra, foi o primeiro país árabe a fazer a paz com Israel.
Gosto de parar no Cairo para sentir os ritmos da cidade. Como muitos lugares, o Cairo oferece dois universos distintos.
Há os estabelecimentos globalizados, reluzentes, com ar-condicionado, onde você toma um café com leite pelo mesmo preço de Paris ou Nova York. Aqui o tempo corre na velocidade do século 21. Noticiários e desfiles de moda passam na TV.
E há então o mundo lento no qual a maioria dos cairotas vive e ri, com suas espeluncas oferecendo chá ou café doce e porções de feijões ("ful"). Você poderia viver feliz durante alguns dias com os feijões não globalizados pelo preço de um daqueles cafés globalizados. Muitos cafés no mundo lento oferecem "shishas" (narguilés) para fumar tabaco com aroma de maçã enquanto você vê o dia ir embora. É um ritual agradável de observar. Um homem de movimentos precisos abana as brasas, sacudindo-as em uma concha metálica escurecida, antes de colocá-las com uma pinça, uma a uma, no narguilé. Nada é feito com pressa aqui, porque nada vai mudar.
Confundimos atividade e movimento com realizações. Pode-se ganhar mais com uma pausa. Cada época tem suas ilusões. Recentemente, li uma revista de 1938. Um editorial dizia: "A máquina deixou os homens frente a frente como nunca antes na história. Paris e Berlim estão mais perto hoje do que aldeias vizinhas estavam na Idade Média. Em certo sentido, a distância foi aniquilada".
Isso foi mais de meio século antes da invenção da internet. É importante desacelerar, no mínimo porque estamos longe de ser os primeiros humanos a acreditar que o mundo se acelerou. Mesmo no mundo lento do Cairo há surpresas. Enquanto eu fumava "shisha" num modesto estabelecimento da rua Kasr el Nil, uma amiga observou que o local anunciava uma conexão wireless.
"Qual é a senha?", perguntou ela ao proprietário.
"Nike", respondeu ele, que continuou passando um café.
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