terça-feira, 6 de dezembro de 2011
Um estudo analisa como os nazistas fizeram de Germânia um livro venerado pelas SS
Qual é o livro mais perigoso do mundo? É "Mein Kampf", responderão muitos rapidamente. A Bíblia; o Corão; o "Malleus Maleficarum", o grande manual da caça às bruxas; o "Manifesto Comunista"; algum grimório, como o fictício "Necronomicon", "Madame Bovary", "Kamasutra"... As respostas podem ser muito variadas, mas poucos teriam a ideia de considerar seriamente perigosa uma pequena obra como "Germânia", de Tácito, pouco mais de 30 páginas de tratado etnogeográfico com intenção moralizadora, escritas no final do século 1º de nossa era por um historiador romano. No entanto, diabos, que dano causou esse opúsculo!
Para os nazistas foi uma bíblia de sua causa: consideravam que provava a superioridade alemã e foi citado para justificar as leis raciais de Nuremberg. Himmler tinha fixação por essa obra, e já se sabe a que levavam as fixações do "reichsführer". Em 1943 enviou um destacamento das SS à Itália para se apoderar do mais antigo manuscrito que se conserva do livrinho de Tácito, o "Codex Aesinas". Curiosa empreitada nazista: conseguir um livro para venerá-lo, e não para queimá-lo, como era hábito. Himmler atribuía ao manuscrito de "Germânia" um poder tão grande quanto o de outras de suas relíquias favoritas: o Graal, a lança de Longinos ou o martelo de Thor. À diferença desses objetos lendários, o livro era bem real, e o mal que fez, também.
O professor de ciências clássicas da Universidade de Harvard Christopher B. Krebs, especialista em Tácito, dedicou um ensaio apaixonante a explicar a assombrosa história de "Germânia" e seu impacto nas mentalidades - desde os humanistas ao movimento "völkisch", passando pelos românticos - até chegar a ocupar lugar privilegiado nas mesas de cabeceira dos maiores criminosos da história. Sob o eloquente título de "O Livro Mais Perigoso" (tradução espanhola pela editora Crítica), agarrando-se à consideração do grande Momigliano de que "Germânia" merece ocupar um lugar destacado entre os cem livros mais perigosos já escritos, Krebs nos leva em uma viagem fascinante da Roma imperial à Alemanha hitlerista, passando por mosteiros, cortes e bibliotecas, em um percurso pela história das ideias que tem muito de trabalho detetivesco e às vezes parece uma novela de suspense.
Quando tomamos nas mãos "Germânia", tão pequeno que normalmente é editado com outros dois livros breves de Tácito, "Agrícola" e "O Diálogo sobre os Oradores" (na edição da Biblioteca Clássica Gredos, por exemplo, com introduções, tradução e notas de J. M. Requejo), não chegamos a imaginar como se pode comparar essa obra, rápida panorâmica da geografia, dos usos e costumes dos germanos, com uma pistola fumegante. No entanto, quando Krebs o indica, lá estão as considerações que fariam furor ao longo da história até sua utilização pelos nazistas: "Estou quase convencido de que os germanos são indígenas e que de modo algum estão misturados com outros povos [...]. Por não estar degenerados por casamentos com nenhuma das outras nações, conseguiram manter uma raça peculiar, pura e semelhante só a si mesma; daí que sua constituição física, no que é possível para um grupo tão numeroso, seja a mesma para todos: olhos ferozes e azuis, cabelos louros".
Para os nazistas e seus precursores, Tácito demonstrava a continuidade de um povo em uma terra e justificava a política racial. "Voltaremos a ser como éramos", anotou Himmler em seu diário, emocionado pelo "senhorio de nossos antepassados" depois de ler "Germânia". O "reichsführer" até pensou em executar os homossexuais como Tácito indicava que faziam os antigos germanos: afogando-os em cinzas. Simples, corajosos, leais, puros, honrados e até castos: assim se viam retratados muitos alemães em "Germânia". E os SS se identificavam com aqueles guerreiros - reencarnados no arquétipo do ariano -, para os quais supostamente a lealdade era sua honra.
Era, claro, a leitura enviesada que os nazistas faziam de "Germânia". O historiador romano não se referia em seu livro aos supostos antepassados exemplares dos alemães modernos. O conceito de germano não se referia a um povo homogêneo, indígena e puro, suscetível de continuidade étnica, mas sim a uma amálgama de tribos de identidade e destino incerto, pululando nas névoas do passado.
Havia também observações pouco agradáveis de Tácito sobre os germanos e sua pátria. Estas simplesmente eram ignoradas. Por exemplo, Tácito considera que como local para viver a Germânia é repelente; indica que os germanos praticam sacrifícios humanos (isto, curiosamente, incomodava muito aos nazistas, embora eles se entregassem com fruição ao Holocausto); que quando não guerreiam passam a maior parte do tempo sem fazer nada, entregues ao sono e à comida; que crescem nus e sujos, que bebem e brigam entre si continuamente. Chega a dizer de uma de suas tribos, os catos, que "para o que são os germanos têm muita capacidade de raciocínio".
Nada disso impediu que o pobre Tácito, o grande Tácito, passasse a fazer parte do discurso autolegitimador dos nazistas. Teria sido muito pedir que eles soubessem ler bem os clássicos.
Um cônsul romano abduzido por Himmler
Foi um processo de séculos que levou "Germânia" a ser um livro perigoso. É a partir de sua redescoberta, no século 15, que começou a difusão que o transformaria em um terrível instrumento ideológico. Krebs, em um relato que às vezes sugere "O Nome da Rosa" ou o "Código da Vinci", e no qual aparecem caçadores de manuscritos e papas bibliófilos, nos mostra como o texto vai se carregando de significados e interpretações, às vezes com simpáticos disparates como considerar os germanos descendentes de Noé ou dos troianos, para lhes dar "pedigree".
A única crônica dos povos germânicos deixada pela Antiguidade, tendeu-se a considerá-la, em um salto mortal, uma fonte histórica e um retrato fiel do passado alemão, quando o que descreve - com ânimo moralizador e político de comparar o bom selvagem, não adulterado, com o corrupto e decadente romano - é uma confusão de observações apócrifas e lendas.
O mais provável é que Tácito, embora tenha viajado em função de seus altos cargos e parece ter permanecido um tempo na Gália belga, nunca tenha visitado pessoalmente a Germânia. Talvez o livro fosse uma maneira de incitar Trajano a conquistá-la de uma vez, processo paralisado depois da aniquilação das legiões de Varo em Teutoburgo por Armínio no ano 9º.
Ignoramos muitas coisas sobre o historiador, entre elas sua origem (parece que na Gália Narbonense) e as datas exatas de nascimento e morte. Sabemos que foi genro do grande general Agrícola - ao qual consagrou uma elogiosa biografia -, que foi legado e chegou a senador, cônsul e possivelmente procônsul da Ásia. Tudo isso sem dúvida menos importante que sua tarefa como historiador, o melhor de Roma na opinião de muitos e como provam suas "Histórias" e seus "Anais". Krebs destaca como os nazistas tentaram converter o relato de Tácito em uma realidade, "passado em futuro". No epílogo indica que o perigo não passou. E que a culpa não é de Tácito, mas de seus leitores.
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