Social Icons

https://twitter.com/blogoinformantefacebookhttps://plus.google.com/103661639773939601688rss feedemail

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Jogos de poder no Afeganistão: Criando a estrutura para uma guerra civil


Há uma nova arma na guerra do Afeganistão. É uma arma invisível e onipresente. O serviço de inteligência afegão, o NDS, autorizou o uso de armas de fogo contra o poder dessa arma, mas ela já provocou mortes. Nos seus sermões de sexta-feira, os imames condenam a nova arma como sendo um instrumento diabólico dos infiéis.

A arma é o número 39.

De Herat, no oeste do país, a Cabul, a capital, e Kunduz, que fica no norte, esse é o número associado à prostituição e ao mal. Vendedores de automóveis, que sempre entregam os veículos completos, incluindo as placas, têm que oferecer um grande desconto aos clientes se o 39 fizer parte do número da placa. Mullah Tarakhel, um parlamentar de etnia pashtun, que foi registrado como membro do parlamento número 39, ordenou aos seus guarda-costas que abrissem fogo quando colegas tajiques zombaram dele. Dois homens foram mortos no tiroteio. No grande conselho, ou loya jirga, que se reuniu em meados de novembro, os delegados presentes discutiram com menos paixão o acordo estratégico com os Estados Unidos do que a questão de quem seria designado para o 39º dos 40 comitês – até que eles decidiram simplesmente pular o número 39. “No Afeganistão o número 39 tem um significado muito estranho, que eu não posso lhe dizer”, disse a porta-voz da jirga, Safia Sediqi.

O NDS declarou que insultar uma pessoa referindo-se a ela como “39” é um crime tão grave que o indivíduo insultado tem permissão para defender a sua honra com uma arma. Os clérigos muçulmanos do país veem a mão do demônio no número, e também uma ameaça à Sura 39 do Alcorão.

A crença no significado maligno do número 39 teria começado em Herat no início do ano e se alastrado de lá para todo o país. Segundo os boatos, há em Herat um cafetão cujo endereço começa pelo número 39, e os temidos algarismos fariam parte também do número do telefone e da placa do carro dele.

Ninguém conhece esse cafetão. E ninguém de fato se importa em determinar se a lenda é de fato verdadeira. Mas quase todos temem esse número de azar. Como resultado disso, um país que está sendo atormentado pelo Taleban e que é saqueado pelos seus políticos é ao mesmo tempo vítima de mais uma calamidade para a qual não parece haver antídoto. Isso faz com que se questione se esse absurdo cabalístico poderia revelar o cerne dos problemas do Afeganistão.

Não há dúvida de que poderia, já que isso mostra como esse país está distante daquela imagem que o Ocidente faz dele.

Poucas expectativas

Dez anos após a primeira conferência sobre o Afeganistão, no Hotel Petersberg, próximo a Bonn, mais uma conferência internacional sobre aquele país ocorreu nesta segunda-feira (05/12). Mas os observadores têm poucas expectativas de que haja qualquer resultado além de belos discursos e mais promessas. Dez anos após a derrubada do regime do Taleban, após a morte de 2.734 soldados da Força Internacional de Assistência para Segurança da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) – esse era o número oficial de baixas na última sexta-feira –, e depois de dezenas de milhares de afegãos terem morrido e de terem sido dispendidos centenas de bilhões de dólares, grandes áreas continuam sendo zonas de combate, o governo afegão é incapaz de sobrevier sem proteção estrangeira e o país está imerso na corrupção.

Mas é improvável que os políticos em Bonn falem sobre todos esses problemas. Quando o assunto em pauta é o Afeganistão, a mentira encontra-se atualmente tão enraizada que ela tornou-se a norma. Cada lado apresenta a sua própria versão do Afeganistão. A Otan e os diplomatas falam de “otimismo cauteloso” e fazem previsões sobre um futuro incerto. O presidente Hamid Karzai se apresenta com uma vítima inocente. Karzai vê o seu país assediado por estrangeiros, ainda que ele esteja desmantelando as instituições para garantir a preservação do seu poder.

Os próprios afegãos mergulharam no desespero, na desconfiança e nas teorias conspiratórias, em meio a sussurros sobre números mágicos como o maligno 39, ou boatos relativos a uma conspiração secreta entre os norte-americanos e o Taleban. Eles enxergam um processo de criação de uma guerra civil e não querem tropas estrangeiras no seu solo, mas ao mesmo tempo desejam que essas tropas permaneçam no país. Eles estão vendo o poder militar estrangeiro e, no entanto, nove dentre cada dez afegãos não sabem sequer por que essas tropas estão no país. Eles veem a fachada de um governo, mas por detrás dessa fachada eles enxergam apenas o despotismo dos poderosos que recorrem à violência para obter aquilo que desejam.

A palavra otimista que está sendo apresentada pela comunidade internacional é “transição”. Se as forças de segurança afegãs forem capazes de prevalecer por conta própria contra o Taleban quando as tropas estrangeiras se retirarem em 2014, dez anos de intervenção militar e bilhões de dólares em auxílio financeiro não terão sido em vão. E se as forças afegãs puderem conter o Taleban, a comunidade internacional poderá se retirar sem ter que admitir que a intervenção militar no país foi um fracasso.

A política internacional quanto ao Afeganistão ainda se baseia nessa premissa, apesar de todas as tentativas hesitantes de negociar com o Taleban. Esse é um universo que tem tanto a ver com a realidade quanto as manobras militares realizadas em um modelo de área de combate em miniatura tem a ver com a situação real no campo de batalha.

“Parece haver algo de errado com as montanhas”

É uma manhã fresca em Kunduz, em um canto remoto de uma base operada pelo Exército Nacional Afegão, que fica ao lado do campo do Bundeswehr Alemão. Mais ou menos às 9h, cerca de uma dúzia de soldados afegãos se reuniram em frente ao modelo de terreno de combate utilizado pelos instrutores alemães.

No modelo, construído com todo cuidado pelos sargentos Thorsten N. e Sebastian D., um rio feito de plástico azul passa por um campo feito com blocos de concreto e sob uma ponte que foi improvisada com um velho filtro de um aparelho de ar condicionado e parafusos grandes. Uma cadeia de montanhas e vales foi feita com areia, e tampas de garrafa de cores diferentes representam os combatentes do Taleban e os soldados do exército afegão. Um minarete com luzes alimentadas por pilhas completam o cenário.

Os soldados afegãos estão aqui para praticar o posicionamento de patrulhas no terreno. Em outras palavras, eles têm que posicionar tampas de garrafa que representem as suas próprias tropas de maneira a evitar que fiquem sob fogo inimigo.

“Como?”. Os sargentos e os seus intérpretes estão diante de um grupo silencioso de afegãos. Um dos oficiais afegãos cochila constantemente e ameaça cair no chão. Então um outro afegão se manifesta, dizendo: “Bom, eu não gostei do rio. Os rios afegãos são verdes, e não azuis como esse aí!”. Há um murmúrio de aprovação. “E parece haver também algo de errado com as montanhas”.

Os sargentos alemães dizem algo sobre “padrões distintos no terreno” e que aquilo é apenas um modelo. Os afegãos preferem discutir por que o modelo não os agrada. Após uma hora, pontuada por interrupções, um dos afegãos posiciona as tampas de garrafa em uma linha reta no meio do vale. Como resultado, todas as tampas de garrafa representando o exército afegão seriam alvejadas e mortas pelas tampas de garrafa representando o Taleban. O processo inteiro se estende por duas horas.

“Não dá para esperar muito deles”, diz Thomas B., o alemão que comanda o exercício, e que mais tarde dirá de forma resignada que não houve progresso algum.

“Nós somos um exército ridículo”

Essa é uma situação paradoxal. É frequentemente difícil convencer a polícia e o exército afegãos a lutar, mas mesmo assim os Estados Unidos pagam pela maior parte do treinamento, salários, armamentos, refeições, veículos e equipamentos deles.

O Taleban, por outro lado, está copiando sistematicamente os métodos de guerra modernos, colocando gazes para curativos e garrafas com infusões nas suas trincheiras com dias de antecedência, e organizando emboscadas complexas. Eles até descobriram como empregar os modelos de terreno de combate. Em um vídeo de uma hora sobre o ataque ao Hotel Intercontinental em Cabul, em junho deste ano, os combatentes são vistos em uma sala de conferências. Um homem com uma vareta na mão explica ao grupo o ataque planejado, de frente para um modelo do hotel de um metro de altura e de prédios secundários e guaritas. Isso é suficiente para deixar um homem como Thomas B. com inveja.

As tropas do governo afegão participam de combates, mas somente quando os soldados não se afastam dos seus postos sem autorização durante semanas, ou quando os oficiais não estão ocupados vendendo gasolina no mercado negro. Em diversas ocasiões, os soldados do Bundeswehr em Kunduz utilizaram câmeras e dispositivos de visão noturna para observar os seus aliados afegãos roubando gasolina dos seus próprios veículos durante a noite. O general Fazil, que foi o comandante de uma unidade do exército afegão em Kunduz até o ano passado, era conhecido por roubar e vender dezenas de milhares de litros de óleo diesel do exército todos os meses. O apelido dele entre os alemães era “Diesel Fazil”. Ele chegou até mesmo a organizar uma expedição de roubo de gasolina que atuaria durante um período no qual ele estivesse participando de um treinamento para oficiais superiores na Alemanha.

“Nós somos um exército ridículo”, diz um homem que certamente sabe sobre o que está falando. Afinal de contas, ele é um oficial militar graduado. Há uma reunião por semana da qual participam coronéis, comandantes de batalhões e oficiais encarregados de operações. Todos eles têm uma coisa em comum: eles estavam lutando pelo lado errado na década de oitenta. Todos eles falam russo.

Assediados pelos norte-americanos

Como jovens oficiais na época, eles continuaram leais ao governo, ainda que este tivesse sido tomado pelas tropas de ocupação soviéticas. Eles foram a Moscou e a Leningrado. O coronel Nadir, que organiza as reuniões, ainda usa o distintivo de paraquedista soviético que ganhou com os seus 420 saltos.

Depois veio a guerra civil, seguida pelo regime do Taleban e por anos no exílio. Depois disso, os norte-americanos chegaram e aliaram-se aos piores comandantes militares tribais. Mas até mesmo os norte-americanos perceberam que os oficiais mais profissionais, aqueles dotados de maior integridade, eram aqueles que aprenderam a profissão com o inimigo na década de oitenta.

Muitos membros da liderança das forças armadas e da polícia ainda conversam atualmente em russo. Eles permaneceram no Afeganistão pelo seu país, pelo senso de dever e por um salário baixíssimo que mal cobre o custo da vodca que bebem aos finais de semana. Mas que tipo de exército é esse que permite que os norte-americanos o assediem? Ou melhor, um exército que é obrigado a permitir que os norte-americanos o assediem, já que os Estados Unidos estão pagando por tudo.

“Eu sempre combaterei. Sou um oficial”, afirma Nadir, que vai ficando colérico à medida que fala. “Mas os soldados só comparecem porque são pagos. Ele vêm por causa das três refeições por dia. E se eles não forem mais pagos...”. Nadir faz um gesto no ar para ilustrar o dilema.

Ele não gosta do Taleban, porque o Taleban quer matá-lo. “Mas eles têm o próprio orgulho. Algo que nós não temos”.

“E quanto aos norte-americanos?

"Nye govori! Nye sprossi!". Não fale! Não pergunte!

O coronel que está do lado dele diz: “Eles são todos uns idiotas. Idiotas!”. Não é que eles sejam más pessoas, diz Nadir, reduzindo um pouco o furor da sua retórica. Dizemos isso porque eles gastaram bilhões de dólares para treinar um exército de oportunistas corruptos cuja lealdade – se é que existe alguma – está reservada para os seus próprios grupos étnicos. “Sem os norte-americanos, o nosso exército fragmentar-se-á em unidades pashtuns, tajiques e hazaras”, prevê Nadir.


Sucesso das operações “matar ou capturar”

O Taleban, que, segundo a Otan, precisa ser derrotado para que a estabilidade seja restaurada, encontra-se bem mais enfraquecido militarmente ao final de 2011 do que se encontrava há apenas um ou dois anos. As tentativas de negociar com eles não contribuíram muito para isso. Em meados de novembro, cerca de 2.700 insurgentes ingressaram no programa de integração Conselho Afegão de Grande Pacificação, feito para combatentes que desejam sair do Taleban, e no qual a Alemanha investiu 50 milhões de euros. Mas, pouco depois, muitos deles já reclamavam de que o dinheiro, os empregos e os carneiros que lhes prometeram jamais se materializaram.

Na verdade, o que causou mais danos ao Taleban foram as operações focadas das forças especiais norte-americanas do tipo “matar ou capturar”. Uma rede mais densa e aparentemente mais confiável de informantes, bem como a expansão maciça da interceptação de telefonemas, possibilitou às forças dos Estados Unidos concentrar os seus ataques sobre comandantes talebans, incluindo aqueles que vivem em vilas remotas. Somente na província de Kunduz, unidades militares dos Estados Unidos mataram mais da metade dos líderes talebans. Batalhas contra as tropas da Otan que duravam vários dias, como aquelas que o Bundeswehr Alemão enfrentou em Kunduz até o final de 2010, são cada vez menos comuns em todo o Afeganistão. Muitos comandantes e combatentes talebans receberam ordens de retornar às cidades paquistanesas de Peshawar, Quetta e Karachi e esperar.

Mas eles não foram derrotados. Eles só estão imitando os norte-americanos de forma própria. Eles matam os líderes dos seus inimigos – governadores, generais e políticos afegãos – com precisão fatal, e estão se preparando para o dia em que os estrangeiros forem embora. Ataques ocasionais em Cabul, como aqueles contra o Hotel Intercontinental ou a sede da Força Internacional de Assistência para Segurança, parecem espetaculares, mas na verdade exigem bem menos combatentes do que as batalhas tradicionais.

As agências de inteligência ocidentais observam com irritação que o Taleban tem transferido propositalmente o comando das suas atuais operações para combatentes uzbeques ou até mesmo para militantes afegãos rivais leais ao comandante militar tribal Gulbuddin Hekmatyar. Mas, apesar dos problemas, existe uma coisa que o Taleban não perdeu: a sua coesão. E isso é algo que os inimigos dele não têm.

Khanabad fica muito atrás de Kunduz no mapa mental que os alemães fazem do Afeganistão. Na verdade, esse é um distrito adjacente ao distrito de Kunduz que, durante anos, foi simplesmente pacífico demais para gerar notícias na imprensa.

Apesar das reclamações ocasionais por parte de moradores locais que dizem que o dividendo da paz está proporcionando a eles menos ajuda do que aquela recebida pelas áreas de atuação dos insurgentes, a pequena cidade de Khanabad está florescendo. Os mercados estão repletos de produtos, a União Europeia está desembolsando 12 milhões de euros para reparar um canal de irrigação, há projetos de construção de estradas em andamento e, o mais importante de tudo, a cidade está sendo administrada por pessoas íntegras. Esse é o trabalho do chefe do distrito, Nizamuddin Nashir, o último membro de uma lendária dinastia de industrialistas afegãos. O avô dele criou a – já extinta – fábrica de tecidos de algodão Spinzaar há mais de um século. No seu auge, a companhia empregava 30 mil pessoas e operava empresas de construção, uma fábrica de porcelana e hotéis em Kunduz e em todo o norte do Afeganistão.

Os meninos engraxates em frente à barraca de kebab têm a mesma opinião que o Bundeswehr e o exército dos Estados Unidos em relação a Nashr, afirmando que ele de fato não é corrupto e é um excelente administrador. O próprio Nashir diz que não sabe quanto mais tempo poderá durar. Khanabad, esta pequena ilha funcional, está sendo ameaçada por aqueles que deveriam protegê-la.

Aumentando de número como galinhas

“Eu comecei com exatamente 28 talebans”, diz Nashir, um advogado que tem um bigode no estilo Clark Gable e um senso de humor seco. “Eles assumiram uma posição na parte mais remota do distrito. Dois anos atrás, o serviço de inteligência colocou a Arbakai, a milícia anti-Taleban, no encalço deles. No início havia 300 homens. Depois que eles resolveram o problema representado pelo Taleban, o número passou para 500, e depois para 900, e desde então não para de aumentar, como se fosse uma criação de galinhas”. Segundo Nashir, o NDS paga às milícias até que o contingente destas chegue a 1.500 homens. Depois disso o pagamento é cancelado.

“No entanto, há agora quase 4.000 combatentes da milícia neste distrito, que estão agora lutando uns contra os outros por poder e por dinheiro para que forneçam proteção. Isso quando não estão acertando contas antigas”, diz Nashir, acrescentando que essa luta já provocou mais de cem mortes. Ele demora quase 15 minutos para desenhar um diagrama mostrando os 24 principais comandantes das milícias, as suas lutas e as alianças temporárias.

Quando irrompeu uma batalha entre milícias em agosto passado, envolvendo disparos de morteiros e de lançadores de granadas-foguetes, Nashir pediu ajuda ao Exército Nacional Afegão. “O objetivo era fazer pelo menos com que houvesse um cessar fogo. Mas quanto tempo isso durará?”.

Nashir mantém alianças heterodoxas. “Eu tenho bons vínculos com os norte-americanos e com o Taleban. Se eles quisessem me matar, nada seria mais fácil. Mas eu não sou corrupto. Eles deixam pessoas como eu em paz. Os inimigos do desenvolvimento de um verdadeiro Estado no Afeganistão são principalmente os mafiosos que se encontram no próprio governo. Eles não desejam um Estado! Tudo o que eles querem é preservar o status quo e continuar faturando! Se tivéssemos paz no país, não haveria mais lugar para esses elementos”.

“Enquanto isso, todo mundo está se preparando para o momento em que as forças internacionais se retirarem em 2014. Quando os estrangeiros forem embora, a guerra civil começará”, afirma Nashir. Os prenúncios dessa guerra civil puderam ser presenciados no sul do país há alguns anos, quando comandantes como Matiullah Khan, em Uruzgan, e Abdul Raziq, em Kandahar, criaram os seus próprios feudos, com a ajuda dos norte-americanos e os milhões de dólares que receberam para escoltar os comboios dos Estados Unidos.

Cometendo os próprios erros

Mas o outrora tranquilo norte do país está começando a desmoronar. Em Mazar-e-Sharif, o governador Mohammed Atta está usando milhões de dólares obtidos com o contrabando de petróleo, o tráfico de drogas e a proteção militar para armar as suas próprias milícias. O vice-presidente Mohammed Fahjim nomeou o famoso comandante militar tribal Nazri Mohammed prefeito de Faizabad, no nordeste do Afeganistão. Em Baghlan, unidades tajiques da força policial nacional e combatentes pashtuns agregados à polícia local trocaram tiros no final de agosto, depois que um coronel da polícia estuprou um garoto que morava no bairro do comandante pashtun.

A polícia local, apoiada pelos norte-americanos e sob a supervisão do Ministério do Interior, deveria na verdade combater o Taleban. Mas o comandante da polícia, Nur ul-Haq, protegido pelas forças especiais norte-americanas da província, está coletando dinheiro dos agricultores locais em troca de fornecimento de proteção, e os seus homens são acusados de terem cometido vários assassinatos. “O que você quer de mim?”, grita ele ao telefone. Ruídos de espancamentos e gritos podem ser escutados ao fundo. “Eu não tenho nada a ver com o governo. Eu faço o que quiser!”.

Os norte-americanos não estão repetindo os erros dos russos, ao contrário do que diz muita gente. Na verdade, eles estão cometendo os seus próprios erros. Assim como eles armaram comandantes militares tribais e criminosos de guerra na década de oitenta para que estes lutassem contra a ocupação soviética, e novamente em 2002, meramente porque estes indivíduos eram inimigos dos seus inimigos, os norte-americanos estão agora transformando criminosos em aliados.

Mas existe também uma insatisfação crescente dos países integrantes da Força Internacional de Assistência para Segurança. Uma avaliação feita pelas forças armadas suecas em Mazar-e-Sharif classificada como “secreta” critica duramente a formação de milícias. Segundo o relatório sueco, os combatentes do chamado Projeto de Proteção à Infraestrutura Crítica “provavelmente cometerão mais violações dos diretos humanos básicos do que a força policial regular devido à falta de escolaridade e de fiscalização”. O relatório continua: “Isso só faz agravar a situação, já que não existe nenhum mecanismo para a implementação de ações disciplinares contra o Projeto de Proteção à Infraestrutura Crítica na esfera afegã. Isso poderá fazer com que parcelas da população apresentem uma maior tendência a ingressar ou apoiar a insurgência”. Além disso, segundo o relatório sueco, não existe nenhum plano para que a milícia seja dissolvida e desarmada no futuro – como se os norte-americanos não se importassem com o que acontecerá depois que eles partirem.

O general alemão Markus Kneip, como “COM RC North”, ou comandante de todas as tropas da Força Internacional de Assistência para Segurança no norte do Afeganistão, foi pego no meio desse fogo cruzado. Quando os suecos se opõem a certa coisa, os norte-americanos tentam implementá-la com toda determinação. “Eu levo muito a sério as preocupações dos suecos”, admite Kneip. “Não são sequer os norte-americanos que estão fazendo pressões, mas sim o governo afegão. Eles querem mais homens e mais bases, enquanto que nós estamos pisando no freio. É claro que nós não queremos apoiar criminosos conhecidos!”.

Em uma entrevista concedida a “Der Spiegel”, o presidente Karzai insistiu que jamais ouviu falar do Projeto de Proteção à Infraestrutura Crítica e que ele se opõe terminantemente a milícias “que não sejam controladas pelo Ministério do Interior”.

“Uma receita para guerra civil”

As forças internacionais pretendem transferir a responsabilidade pela segurança dos Estado afegão para os afegãos dentro de dois anos. Mas o próprio Estado está há muito se desintegrando devido aos seus problemas internos. “O que falta no cerne do governo é lealdade”, critica Thomas Ruttig, codiretora organização Afghanistan Analysts Network. Ruttig ajudou as Nações Unidas a organizar a loya jirga de 2002, na qual o então enviado especial dos Estados Unidos, Zalmay Khalilzad e o então secretário da Defesa norte-americano, Donald Rumsfeld, asseguraram que os comandantes militares tribais da guerra civil seriam capazes de recuperar o poder – com Karzai no comando, um homem que era considerado um fantoche por todos os lados envolvidos no conflito. “O que eles não estão enxergando é que há uma proliferação descontrolada de milícias adversárias, bem como a hipertrofia de forças armadas cujas lealdades tendem a se direcionar para os seus ex-comandantes militares tribais, e não para o governo em Cabul. Não há nada capaz de aglutinar esses grupos, especialmente depois da retirada das tropas ocidentais. Isso é uma receita para guerra civil”.

O Taleban pode não ter sido jamais capaz de entender muito bem o resto do mundo. Mas eles entendem o Afeganistão. Eles sabem também que o que importa não é quem vence primeiro, mas sim quem sobra no final.

Um comentário:

  1. Muito explicativa e correta essa visão do Afeganistão, até "Alexandre o Grande" teve problemas seríssimos nessa parte do mundo. Os Russos deram com os burros n'água lá.
    Essa aventura só serviu para a industria de defesa americana continuar a dar as cartas e desenvolver armas e doutrinas novas. Ser um contraponto à futura expansão chinesa e impor
    um cerco estratégico com seu poderio militar, tenho minhas duvidas, que estão sendo enrolados pelo Paquistão tenho certeza, esse a China já comprou e ganhou.

    ResponderExcluir